Luigino Bruni: ‘Economia de Francisco: voltada primariamente aos bens comuns e não aos bens privados’

O Programa Pátio da Cruz, da TV PUC-SP, entrevistou o coordenador científico da Economia de Francisco, o economista e professor universitário italiano Luigino Bruni

Stefania Casellato

“Economia de Francisco. Os jovens, um pacto, o futuro” deveria ser um encontro presencial, dirigido a jovens economistas e empreendedores do mundo inteiro, comprometidos com uma proposta de humanização da economia, construção de uma sociedade mais justa e defesa do meio ambiente. Convocado pelo Papa Francisco e inspirado em São Francisco, aconteceria em 2020, em Assis. A pandemia mudou tudo, o evento aconteceu de modo virtual e originou um processo que hoje implica uma grande mobilização de jovens, com projetos voltados ao bem comum em todo o mundo.

Os eventos da Economia de Francisco continuam acontecendo, e o Programa Pátio da Cruz, da TV PUC-SP, entrevistou o coordenador científico da Economia de Francisco, o economista e professor universitário italiano Luigino Bruni. A seguir, alguns trechos da entrevista, cujas perguntas foram propostas por jovens que têm participado do processo no Brasil.

Como podemos conceituar a Economia de Francisco e quais são suas características hoje?

Luigino Bruni – Não é fácil sintetizar o que é a Economia de Francisco atualmente. Como nos disse o Papa, é um processo e não só um evento ou um projeto. Também não é uma teoria em particular ou uma experiência econômica específica. Como todo processo, tem a característica de não poder ser controlado. Se tentamos controlar um processo, ele morre ou torna-se muito, muito pequeno. Se queremos que esse processo, que o Papa Francisco considera dos mais importantes de seu pontificado, cresça e se torne uma grande árvore, com muitos frutos, temos que renunciar a controlá-lo. Isso significa não ter uma equipe central ou um grupo de economistas, tais como eu, controlando o processo, dizendo o que é e o que não é Economia de Francisco. Não sabemos tudo o que está acontecendo ao redor do mundo em nome da Economia de Francisco. É como uma nova planta, cheia de novos ramos, novas flores, crescendo com diferentes cores, diferentes identidades e conteúdos. É uma realidade que está muito viva, na Europa, na Itália, em Portugal, na Argentina, no Brasil, que avança na África.

A primeira ideia, porém, que foi surgindo nesses anos, é uma reconsideração da pobreza. O capitalismo a considera como alguma coisa muito má, muito negativa, que deve ser eliminada. Pobreza é má, riqueza é boa. Eu penso que, com Francisco, existe um certo tipo de pobreza positiva, que pode surgir quando eliminamos ou reduzimos a pobreza negativa. Se eliminamos essa pobreza, a miséria e a privação, as pessoas podem escolher a partilha de bens, uma vida que não se orienta só pelo ter mais, na qual se pode reduzir os impactos ambientais sobre o planeta. Assim se pode dizer que a pobreza pode não ser uma maldição, mas sim uma bênção.

Em segundo lugar, temos a centralidade dos bens comuns, aqueles que são partilhados por todos, tais como o próprio planeta, o meio ambiente, a atmosfera, os oceanos, os mares e as florestas. Essas coisas são muito importantes para a Economia de Francisco. Ela é uma economia voltada primariamente aos bens comuns e não aos bens privados, como a economia que ensinamos normalmente nas faculdades. Primeiro, a centralidade dos bens comuns, a seguir o lugar dos bens privados. Se destruirmos os bens comuns, destruímos tudo.

Ainda que a Economia de Francisco se perceba como um processo, não como um projeto, podemos falar em metas ou objetivos que ela deve ter, em nível local, regional e global?

O fato de a Economia de Francisco ser um processo não quer dizer que ela não deva almejar ter frutos concretos. Quando pensamos na imagem mais característica de um processo, nos vem à mente a figura de uma criança. Ora, uma criança tem necessidades muito concretas, como educação, esportes, lazer etc.  Nesse sentido, nós acompanhamos hoje, no mundo, cerca de uma centena de projetos e iniciativas concretas. Os jovens buscam coisas muito concretas. Sua concretude, contudo, é marcada pela busca de um ideal.

O Papa nos pede não apenas para fazer para os pobres, mas com os pobres, colocar as periferias no centro das decisões. Como podemos, como Economia de Francisco, colaborar nesse processo?

O protagonismo dos pobres é muito importante. Quando pessoas que não são pobres começam a trabalhar pelos pobres, o fazem segundo a sua visão de mundo – que não corresponde nem à visão de mundo nem à necessidade dos pobres. Mas, quando estão juntos, encaminham-se para uma verdadeira solução dos problemas. Nessa perspectiva, o princípio da subsidiariedade, da Doutrina Social da Igreja (DSI), é muito importante: quem tem a maior competência para resolver os problemas é quem os está vivendo; então cabe aos não pobres e às instituições ajudar (subsidiar) os pobres a resolver os problemas em sua própria perspectiva. Não apenas junto com os pobres, mas dando protagonismo a eles, pois os não pobres, quando tentam fazer as coisas junto com os pobres, frequentemente acabam se sobrepondo a eles. Quando as políticas sociais e a cooperação tendem a se sobrepor aos pobres, o resultado é muito pequeno – como pode ser visto nas ações desenvolvidas pelos europeus na África, nas últimas décadas, por exemplo.

No Brasil, temos procurado nos opor a um sistema econômico que não respeita as pessoas, os mais pobres e o meio ambiente. Nesse sentido, na sua opinião, a Economia de Francisco é anticapitalista?

Hoje em dia, o termo capitalismo abrange muitas realidades, muito diferentes entre si. Vai desde as grandes corporações internacionais até as pequenas empresas familiares, as cooperativas, as organizações sem fins lucrativos etc. Se pensamos o capitalismo exclusivamente como um sistema em que a busca pelo lucro se sobrepõe ao respeito pela pessoa, pelos mais pobres e pelo meio ambiente, a Economia de Francisco é, sem dúvida, anticapitalista. Porém, se pensamos em todas as suas outras dimensões, não seria adequado nos colocarmos como “anti”. Em primeiro lugar, porque se nós nos definimos como “anti” caímos numa postura negativista, em que tudo nos parece errado e só nós somos certos. No mundo, contudo, as coisas não são apenas brancas ou pretas, certas ou erradas. Existe sempre uma grande zona de sombra, entre a luz e a escuridão. Isso vale para a economia, para a política, para a família, para a Igreja… A Economia de Francisco deve distinguir esse capitalismo que só visa ao lucro de uma economia social de mercado. Sem mercado, teríamos menos liberdade, menos democracia e menos oportunidades para superar a pobreza. O Papa Francisco realmente diz “não” para uma economia excludente, mas nós temos que encontrar aquela economia para a qual dizer “sim”. Nesse sentido, dizer “sim” significa apontar para o futuro, apontar para uma sociedade melhor.

Vemos, nas últimas décadas, a ascensão de uma direita que une o pensamento tradicionalista com o neoliberalismo. Contudo, nos últimos tempos, principalmente com a pandemia, tem sido revalorizada a presença do Estado na economia. Como a Economia de Francisco vê essas questões?

Devemos ser muito claros no uso dos termos. Se olhamos a Europa, em países como França, Alemanha ou Itália, por exemplo, vemos que esse neoliberalismo é muito difícil de encontrar. Se olhamos no concreto e não na ideologia, encontramos uma grande presença do Estado na economia. Além disso, hoje estamos numa nova onda do Estado, que ocorre com a pandemia, mas que deverá continuar depois. Durante a pandemia, redescobrimos a importância da economia e da política, em todos os níveis, do local ao central. Mas essa redescoberta da importância do poder público, essa constatação de que o livre mercado não é suficiente para resolver os problemas da sociedade, já vem dos anos anteriores à pandemia. No mundo concreto, vemos que o Estado sempre esteve presente na vida econômica.

Este é o grande paradoxo do liberalismo: se você quer ter liberdade de mercado, você tem que ter a presença do Estado, pois sem essa presença os mercados se tornam monopolistas e não há mais liberdade. A liberdade do mercado é garantida por meio de uma forte ação política. Nós criamos essa ideologia neoliberal, que passa a encarnar tudo o que existe de mal, mas na realidade é apenas uma ideia que passa pela cabeça de alguns economistas, políticos e de algumas instituições, em alguns momentos e alguns países.

A Economia de Francisco quer ser muito concreta. Então, em um país concreto, como o Brasil ou a Itália, como podemos construir uma relação melhor entre Estado e mercados? Quando vemos essas situações concretas, percebemos que, muitas vezes, os problemas têm menos a ver com a ideologia neoliberal e muito mais com questões concretas como a corrupção. A Economia de Francisco não quer ser ideológica. A ideologia significa que a ideia é mais importante que a realidade e não que as ideias são mudadas em função da realidade. A Economia de Francisco é “anti-ideológica”. Temos que nos esforçar para termos nossa mente livre de ideias preconcebidas para podermos nos abrir, entender a realidade e encontrar os melhores caminhos para a mudança.

Um dos temas mais discutidos na economia atual é a dicotomia entre o sistema produtivo e o sistema financeiro. Como a Economia de Francisco vê essa questão? Como esses dois sistemas podem colaborar para a construção de uma nova economia?

Na economia globalizada, os grandes investidores se tornam, direta ou indiretamente, proprietários das grandes empresas internacionais. Assim, uma característica da economia do século XXI é não existir essa distinção evidente entre sistema financeiro e sistema produtivo, de tal modo que, se você não entende as finanças, você não entende a economia. Não é possível pensar nas finanças como papéis, valores abstratos em comparação com a produção de bens concretos. Hoje, as duas coisas estão imbricadas. Além disso, grande parte do setor produtivo, como os pequenos produtores e as cooperativas, depende do acesso ao crédito para operar. Como ensina Muhammad Yunus, um economista ganhador do Prêmio Nobel, esse acesso ao crédito é um direito humano. Então, temos que mudar a capacidade de acesso ao crédito dos pequenos e microprodutores. Não é à toa que Yunus foi um dos primeiros a se interessar e acompanhar o desenvolvimento da Economia de Francisco.

Em seu chamado aos jovens, o Papa Francisco diz que essa economia mata, não respeita a pessoa, exclui e devasta a natureza. Ele chamou, na Fratelli tutti e em outras ocasiões, a essa economia de neoliberalismo. O que o senhor pensa sobre isso?

Em primeiro lugar, temos que constatar que o termo neoliberalismo é usado pelo Papa, mas não tanto assim. Não é fácil entender o que o próprio Papa pensa quando fala em neoliberalismo porque esse tema é muito vago, muitas vezes entendido mais como um slogan. Contudo, quando vemos o que acontece concretamente em países como o Brasil, a devastação da floresta, as pessoas em situação de rua etc., estamos diante de um problema só econômico, só político ou ambos? Estamos diante de um problema econômico causado pelo neoliberalismo ou de um problema político causado pela corrupção?

A dimensão econômica, a dimensão política, até a cumplicidade, e a omissão dos consumidores estão de tal modo enredadas que não se pode separar uma da outra. Nesse sentido, é mais adequado dizer que esse sistema, com tudo que há nele, mata.

A Fratelli tutti abrange vários temas, inclusive alguns econômicos. Entre esses, devemos sublinhar, por exemplo, a prioridade da destinação universal dos bens em relação à propriedade privada. A propriedade privada é um meio para se atingir o objetivo da destinação universal dos bens e não o contrário. Essa é uma posição da Doutrina Social da Igreja, mas que é frequentemente esquecida.

Outro ponto importante, na Fratelli tutti, é a relação entre a crise da migração, as mudanças climáticas e a economia. Por outro lado, é importante – para entender essa questão – olhar a história de Francisco de Assis e do franciscanismo. São Francisco era totalmente contrário ao uso do dinheiro por seus confrades. Na primeira versão da Regra franciscana, dizia que os frades não deveriam nem mesmo tocar em dinheiro. Contudo, alguns séculos mais tarde, foram os criadores dos primeiros bancos populares na Itália e na Europa, porque perceberam que esses bancos seriam importantes para que os pobres não fossem vítimas dos usurários. 

A Economia de Francisco não deve apenas denunciar uma economia que mata, que exclui, mas encontrar os caminhos para uma economia que não mata, não exclui, mas promove a pessoa e a vida.

A entrevista, com perguntas em português e respostas em italiano, pode ser vista na íntegra no YouTube.

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