O Cardeal Secretário de Estado em conversa com a mídia vaticana no segundo aniversário do ataque “indigno e desumano” do Hamas contra Israel, que provocou a destruição da Faixa: pedimos a libertação dos reféns e o fim dessa espiral perversa de ódio e violência. Em Gaza, as consequências são “desastrosas e desumanas”. Não basta dizer que é inaceitável o que está acontecendo e depois permitir que ocorra. Impressionado com as manifestações pela paz. O antissemitismo é um câncer a ser erradicado.

Passaram-se dois anos desde aquele dia terrível, desde o ataque terrorista perpetrado pelo Hamas contra Israel e desde o início daquilo que se tornou uma verdadeira guerra que arrasou a Faixa de Gaza. Recordamos esses acontecimentos e o que se seguiu com o cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin.
Eminência, estamos entrando no terceiro ano desde o trágico ataque de 7 de outubro. Como recorda esse momento e o que ele significou, na sua opinião, para o Estado de Israel e as comunidades judaicas no mundo?
Repito o que tive oportunidade de dizer naqueles dias: o ataque terrorista perpetrado pelo Hamas e por outras milícias contra milhares de israelenses e migrantes residentes, muitos dos quais civis, que estavam prestes a celebrar o dia de Simchat Torá, na conclusão da semana da festa de Sucot, foi desumano e injustificável. A violência brutal perpetrada contra crianças, mulheres, jovens e idosos não pode ter qualquer justificação. Foi um massacre indigno e – repito – desumano. A Santa Sé expressou imediatamente sua total e firme condenação, pedindo imediatamente a libertação dos reféns e manifestando sua proximidade às famílias afetadas durante o ataque terrorista. Rezamos e continuamos a rezar, assim como continuamos a pedir que se ponha fim a essa espiral perversa de ódio e violência que corre o risco de nos arrastar para um abismo sem retorno.
O que o senhor gostaria de dizer às famílias dos reféns israelenses que ainda estão nas mãos do Hamas?
Infelizmente, já se passaram dois anos, alguns deles morreram, outros foram libertados após longas negociações.
As imagens dessas pessoas mantidas prisioneiras nos túneis e reduzidas à fome me impressionam profundamente e me entristecem. Não podemos nem devemos esquecê-las. Lembro que o Papa Francisco, no último ano e meio de sua vida, fez 21 apelos públicos pedindo a libertação dos reféns e se encontrou com algumas de suas famílias. Seu sucessor, o Papa Leão XIV, continuou a fazer esses apelos. Expresso a eles toda a minha proximidade, em oração diária por seus sofrimentos, continuando a garantir toda a nossa disponibilidade para fazer o que for possível para que possam abraçar seus entes queridos sãos e salvos ou, pelo menos, receber os corpos daqueles que foram mortos, para que sejam dignamente sepultados.
Ao recordar o primeiro aniversário do ataque de 7 de outubro, o Papa Francisco falou da “vergonhosa incapacidade da comunidade internacional e dos países mais poderosos de fazer silenciar as armas e pôr fim à tragédia da guerra”. O que é necessário para a paz?
Hoje, a situação em Gaza é ainda mais grave e trágica do que há um ano, após uma guerra devastadora que causou dezenas de milhares de mortos. É necessário recuperar o senso da razão, abandonar a lógica cega do ódio e da vingança, rejeitar a violência como solução. É direito de quem é atacado se defender, mas mesmo a legítima defesa deve respeitar o parâmetro da proporcionalidade. Infelizmente, a guerra que se seguiu teve consequências desastrosas e desumanas… Fico impressionado e aflito com a contagem diária de mortos na Palestina, dezenas, às vezes centenas por dia, muitas crianças cuja única culpa parece ser a de terem nascido lá: corremos o risco de nos habituarmos a esta carnificina! Pessoas mortas enquanto tentavam alcançar um pedaço de pão, pessoas soterradas sob os escombros de suas casas, pessoas bombardeadas em hospitais, em acampamentos, deslocados forçados a se moverem de um lado para outro daquele território estreito e superpovoado… É inaceitável e injustificável reduzir os seres humanos a meras “vítimas colaterais”.
Como podemos julgar os episódios de antissemitismo que aumentaram significativamente em várias partes do mundo nos últimos meses?
São uma consequência triste e igualmente injustificada: vivemos de notícias falsas, da simplificação da realidade. E isso leva aqueles que se alimentam dessas coisas a atribuir aos judeus, como tal, a responsabilidade pelo que está acontecendo hoje em Gaza. Sabemos que não é assim: há também muitas vozes de forte dissidência que se levantam do mundo judaico contra a forma como o atual governo israelense agiu e está agindo em Gaza e no resto da Palestina, onde – não nos esqueçamos – o expansionismo muitas vezes violento dos colonos quer impossibilitar o nascimento de um Estado palestino. Vemos o testemunho público dos familiares dos reféns. O antissemitismo é um câncer a ser combatido e erradicado: precisamos de homens e mulheres de boa vontade, educadores que ajudem a compreender e, acima de tudo, a distinguir… Não podemos esquecer o que aconteceu no coração da Europa com o Holocausto, devemos nos empenhar com todas as nossas forças para que esse mal não ressurgir. Ao mesmo tempo, devemos garantir que nunca sejam justificados atos de desumanidade e violação do direito humanitário: nenhum judeu deve ser atacado ou discriminado por ser judeu, nenhum palestino deve ser atacado ou discriminado por ser palestino e por ser, infelizmente, considerado um “terrorista em potencial”. A perversa corrente de ódio está destinada a gerar uma espiral que não pode trazer nada de bom. É lamentável ver que não conseguimos aprender com a história, mesmo a recente, que continua a ser mestra de vida.
O senhor falou de uma situação insustentável e mencionou os muitos interesses em jogo que impedem o fim da guerra. Quais são esses interesses?
Parece evidente que a guerra perpetrada pelo exército israelense para derrotar os militantes do Hamas não leva em conta que tem diante de si uma população em grande parte indefesa e reduzida ao limite de suas forças, em uma área disseminada de casas e prédios arrasados: basta ver as imagens aéreas para perceber o que é Gaza hoje. Parece-me igualmente evidente que a comunidade internacional se mostra, infelizmente, impotente e que os países capazes de exercer uma influência real até hoje não o fizeram para deter a carnificina em curso. Não posso deixar de repetir as palavras muito claras proferidas a esse respeito em 20 de julho passado pelo Papa Leão XIV: “dirijo à comunidade internacional o apelo para que observe o direito humanitário e respeite a obrigação de proteger os civis, bem como a proibição de punição coletiva, uso indiscriminado da força e deslocamento forçado da população”. Palavras que ainda aguardam para serem acolhidas e compreendidas.
O que pode fazer, então, a comunidade internacional?
Certamente pode fazer muito mais do que está fazendo. Não basta dizer que é inaceitável o que está acontecendo e continuar permitindo que isso aconteça. É preciso questionar seriamente a legalidade, por exemplo, de continuar fornecendo armas que são usadas em detrimento da população civil. Infelizmente, como vimos, até agora as Nações Unidas não foram capazes de impedir o que está acontecendo.
Mas há atores internacionais que seriam capazes de exercer uma influência maior para pôr fim a essa tragédia, e é preciso encontrar uma maneira de dar às Nações Unidas um papel mais eficaz em pôr fim às muitas guerras fratricidas em curso no mundo.
O que acha do plano apresentado pelo presidente Trump para chegar a uma trégua e ao fim da guerra?
Qualquer plano que envolva o povo palestino nas decisões sobre seu futuro e permita acabar com essa matança, libertando os reféns e impedindo a morte diária de centenas de pessoas deve ser acolhido e apoiado. O Santo Padre também expressou seu desejo de que as partes aceitem e que finalmente se possa iniciar um caminho de paz.
Como avaliar as posições das sociedades civis que se manifestam, inclusive em Israel, contra as políticas de guerra do governo israelense e a favor da paz?
Embora, por vezes, estas iniciativas, devido à violência de alguns agitadores, corram o risco de transmitir uma mensagem errada aos meios de comunicação social, impressiona-me positivamente a participação nas manifestações e o empenho de tantos jovens. É um sinal de que não estamos condenados à indiferença. Temos de levar a sério esse desejo de paz, esse desejo de empenho… Está em jogo o nosso futuro, está em jogo o futuro do nosso mundo.
Há quem defenda, mesmo dentro da Igreja, que diante de tudo isso é preciso antes de tudo rezar, não sair às ruas para não fazer o jogo dos violentos…
Sou batizado, sou crente, sou padre: para mim, a oração incessante diante de Deus para que Ele nos assista, nos ajude e intervenha para pôr fim a tudo isso, apoiando os esforços das mulheres e dos homens de boa vontade, é essencial, diária, fundamental. O Papa Leão nos convidou mais uma vez a rezar um Terço pela paz no dia 11 de outubro. Mas gostaria também de lembrar que a fé cristã ou é encarnada ou não é… Somos seguidores de um Deus que se fez Homem assumindo nossa humanidade e nos testemunhou que não podemos ser indiferentes ao que acontece ao nosso redor e também longe de nós. Por isso, a oração nunca será suficiente, mas também nunca será também suficiente o compromisso concreto, a mobilização das consciências, as iniciativas de paz, a sensibilização, mesmo que isso signifique parecer “fora do mundo”, mesmo que isso signifique arriscar: há uma maioria silenciosa – composta também por muitos jovens – que não se rende a essa desumanidade. Eles também são chamados a rezar. Acho profundamente errado pensar que nosso papel, como cristãos, é nos trancarmos nas sacristias. A oração também exige um compromisso, um testemunho, escolhas concretas.
O Papa Leão não se cansa de pedir a paz. O que pode fazer a Santa Sé nesta situação? Qual pode ser a sua contribuição e a de toda a Igreja?
A Santo Sé, por vezes incompreendida, continua a pedir paz, a convidar ao diálogo, a usar as palavras “negociação” e “tratativa”, e o faz com base num profundo realismo: a alternativa à diplomacia é a guerra perpétua, é o abismo do ódio e da autodestruição do mundo. Devemos gritar com força: paremos antes que seja tarde demais. E devemos agir, fazer tudo o que for possível para que não seja tarde demais. Tudo o que for possível.
Por que é importante o reconhecimento do Estado da Palestina nesta fase?
A Santa Sé reconheceu oficialmente o Estado da Palestina há dez anos, com o Acordo Global entre a Santa Sé e o Estado da Palestina. O Preâmbulo desse acordo internacional apoia plenamente uma resolução justa, abrangente e pacífica da questão da Palestina, em todos os seus aspectos, em conformidade com o direito internacional e todas as resoluções pertinentes da ONU. Ao mesmo tempo, apoia um Estado da Palestina que seja independente, soberano, democrático e viável, incluindo a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza. O mesmo acordo identifica este Estado não em oposição a outros, mas capaz de viver lado a lado com seus vizinhos, em paz e segurança. Vemos com satisfação o fato de vários países do mundo terem reconhecido o Estado da Palestina. Mas não podemos deixar de notar com preocupação que as declarações e decisões israelenses vão na direção oposta, ou seja, pretendem impedir para sempre o possível nascimento de um verdadeiro Estado palestino. Esta solução – o nascimento de um Estado palestino – após o que aconteceu nos últimos dois anos, parece-me ainda mais válida. É o caminho, o de dois povos em dois Estados, que a Santa Sé tem seguido desde o início. Os destinos dos dois povos e dos dois Estados estão interligados.
Como está a comunidade cristã local, após o duro ataque à Sagrada Família, e por que seu papel no cenário do Oriente Médio é importante?
Os cristãos de Gaza, como vimos, também foram atacados… Fico emocionado ao pensar nessas pessoas que estão determinadas a permanecer e que rezam diariamente pela paz e pelas vítimas. É uma situação cada vez mais precária. Procuramos estar ao lado deles de todas as formas, graças às atividades do Patriarcado Latino de Jerusalém e da Caritas. Agradecemos aos governos e a todas as instituições que se empenham em fazer chegar ajuda e permitir que os feridos graves sejam socorridos. O papel dos cristãos no Oriente Médio foi e continua sendo fundamental, mesmo que seu número esteja diminuindo. Gostaria de lembrar que eles participam de todas as maneiras nas vicissitudes de seu martirizado povo palestino, cujos sofrimentos compartilham.
Fonte: Vatican News