‘Sede mar de bem, porto acolhedor e farol de paz’, exorta o Papa aos participantes dos Encontros Mediterrâneos

Em um dos mais longos e abrangentes discursos de seu pontificado, Francisco lembrou que as realidades vividas pelos países banhados pelo Mar Mediterrâneo espelham os desafios globais. Ele fez um amplo chamado à defesa da dignidade humana – desde os nascituros, passando pelos migrantes e idosos – e criticou uma cultura mundial que perpetua a violência e as guerras

Fotos: Vatican Media

Durante sete dias, em Marselha, na França, mais de 120 representantes de Igrejas e jovens das cinco margens do Mar Mediterrâneo, que banha 30 países localizados na Europa, na África e na Ásia, refletiram sobre os atuais desafios políticos, econômicos e ambientais da região, mas também as suas esperanças para o futuro, com especial enfoque na atual crise migratória.

Na manhã do sábado, 23, aconteceu o encerramento desta que foi a 3a edição dos Encontros Mediterrâneos, com a participação do Papa Francisco. As duas primeiras ocorreram nos anos de 2020 e 2022, nas cidades de Bari e Florença, ambas na Itália.

Francisco fez um longo discurso na seção de encerramento do evento no Palais du Pharo, em Marselha, que foi acompanhado pelas autoridades civis e eclesiásticas, entre as quais o presidente francês, Emmanuel Macron, com o qual o Papa teve um encontro reservado após o evento.

Francisco iniciou seu discurso saudando a todos e recordando as origens da cidade de Marselha, fundada por navegadores gregos provenientes da Ásia Menor, uma cidade que apresenta, conforme observou o Papa, “um caráter compósito e cosmopolita: acolhe as riquezas do mar e dá uma pátria a quem já não a tem. Marselha diz-nos que, apesar das dificuldades, a convivência é possível e geradora de alegria”, disse, recordando que em seu desenho no mapa ela se apresenta como “o sorriso do Mediterrâneo”.

UM MAR DE POVOS QUE ESPELHA A FRATERNIDADE

O Papa, então, alicerçou seu discurso em três realidades de Marselha: o mar, o porto e o farol.

Inicialmente, destacou que “uma maré de povos fez desta cidade um mosaico de esperança, com a sua grande tradição multiétnica e multicultural”, e rica por sua pluralidade.

Lembrou, também, que os intercâmbios entre os povos tornaram o Mediterrâneo berço de civilizações, “mar transbordante de tesouros”, um vasto ambiente de encontro “entre as religiões abraâmicas, entre o pensamento grego, latino e árabe, entre a ciência, a filosofia e o direito, e entre muitas outras realidades” e por essa razão “transmitiu ao mundo o valor sublime do ser humano, dotado de liberdade, aberto à verdade e carecido de salvação, que vê o mundo como uma maravilha a descobrir e um jardim a habitar, sob o signo de um Deus que estabelece alianças com os homens”.

O Papa recordou, ainda, que no Lago Tiberíades ou Mar da Galileia, se concentrava na época de Cristo uma grande variedade de populações, cultos e tradições e que foi justamente nesta ‘Galileia dos gentios’ (cf. Mt 4,15) que se deu a maior parte da vida pública de Jesus. “Este perene mar da Galileia convida a contrapor, à divisão dos conflitos”, enfatizou.

Francisco lembrou que o Mar Mediterrâneo concentra os desafios do mundo inteiro, nos países de suas cinco margens – Norte de África, Médio Oriente, Mar Negro-Egeu, Balcãs e Europa latina – sob os quais recaí o crítico problema das mudanças climáticas. “Como é importante salvaguardar a floresta mediterrânea, um tesouro único de biodiversidade!”, comentou.

“Em suma, este mar, ambiente que oferece uma abordagem única da complexidade, é ‘espelho do mundo’ e traz em si uma vocação global à fraternidade, única via para prevenir e superar conflitos. Irmãos e irmãs, no mar dos conflitos de hoje, estamos aqui a fim de valorizar a contribuição do Mediterrâneo, para que volte a ser laboratório de paz. Pois esta é a sua vocação: ser lugar onde países e realidades diferentes se encontrem com base na humanidade que todos partilhamos, e não nas ideologias que se contrapõem”, apontou.

CONSTRUÇÃO DA PAZ E ATENÇÃO AOS POBRES

O Pontífice apontou, ainda, que o Mediterrâneo ensina ser possível a construção de um pensamento conciliador e comunitário, tão necessário ao atual momento da humanidade “quando nacionalismos antiquados e belicosos querem fazer cair o sonho da comunidade das nações! Mas lembremo-nos de que, com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se ao passado, não se constrói o futuro”.

O Papa, então, indagou sobre por onde começar a construir a paz. “Nas margens do Mar da Galileia, Jesus começou por dar esperança aos pobres, proclamando-os bem-aventurados: atendeu às suas necessidades, curou as suas feridas e, antes de tudo, proclamou-lhes a boa nova do Reino. É preciso recomeçar daqui: do grito muitas vezes silencioso dos últimos, e não dos primeiros da turma que, apesar de estarem bem, levantam a voz”, disse, exortando que se escute e se acolha os pobres – “porque são rostos, não números. A mudança de ritmo das nossas comunidades consiste em tratá-los como irmãos, cujas histórias devemos conhecer, e não como problemas molestos”.

Francisco destacou, ainda, que apenas o empenho das instituições não será suficiente para resolver as mazelas sociais: “é preciso um sobressalto de consciência para dizer ‘não’ à ilegalidade e ‘sim’ à solidariedade, que não é uma gota no mar, mas o elemento indispensável para purificar as suas águas. Com efeito, o verdadeiro mal social não é tanto o crescimento dos problemas, como sobretudo a diminuição do cuidado que se lhes presta”.

O Papa, então, listou uma série de situações que indicam a indiferença atual com o valor da vida humana: “Hoje, quem se faz próximo dos jovens abandonados a si mesmos, presa fácil da criminalidade e da prostituição? Quem se faz próximo das pessoas escravizadas por um trabalho que deveria torná-las mais livres? Quem cuida das famílias amedrontadas, com medo do futuro e de trazer ao mundo novas criaturas? Quem presta ouvidos ao gemido dos idosos abandonados que, em vez de ser valorizados, acabam estacionados, com a perspectiva falsamente dignificante de uma morte doce, quando na realidade é mais salgada que as águas do mar? Quem pensa nos bebês não nascidos, recusados em nome de um falso direito ao progresso, que é, ao contrário, um retrocesso nas necessidades do indivíduo? Quem olha com compaixão para além da própria margem a fim de ouvir os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente?”.

MAREM MORTUUM

E como era amplamente esperado, Francisco foi enfático ao tratar sobre o drama dos migrantes na atualidade, obrigados a abandonar suas terras e não reconhecidos como seres humanos em sua plena dignidade quando chegam a outros países em busca de refúgio, isso quando não morrem pelo caminho.

“Há um grito de dor que ressoa mais do que qualquer outro e está a transformar o mare nostrum em mare mortuum, a mudar o Mediterrâneo de berço da civilização em túmulo da dignidade. É o grito sufocado dos irmãos e irmãs migrantes”.

Francisco, então, partiu ao segundo ponto de seu discurso, o porto, recordando que Marselha sempre foi uma porta aberta para o mar, para a França e para a Europa, mas que hoje os portos do Mediterrâneo têm se fechado alimentado pelos temores da “invasão” e da “emergência”.

“Mas, quem arrisca a vida no mar não invade, procura acolhimento. Quanto à emergência, o fenômeno migratório não é tanto uma emergência momentânea, sempre boa para difundir propaganda alarmista, como sobretudo um dado real dos nossos tempos, um processo que envolve em torno do Mediterrâneo três continentes e que deve ser governado com sábia clarividência: com uma responsabilidade europeia capaz de enfrentar as dificuldades objetivas. O mare nostrum clama por justiça, com as suas margens que de um lado transudam opulência, consumismo e desperdício, enquanto do outro há pobreza e precariedade”, enfatizou.

“Também aqui o Mediterrâneo espelha o mundo, com o Sul que faz apelo ao Norte: tantos países em vias de desenvolvimento, atribulados por instabilidade, regimes, guerras e desertificação, que olham para os países que estão bem, num mundo globalizado onde estamos todos conectados, mas onde os desníveis nunca foram tão acentuados”, observou, recordando as preocupações de muitos pontífices e de toda a Igreja nas últimas décadas com estas situações de desigualdade social e da necessidade de acolher aos que mais sofrem.

“É certo que estão à vista de todos as dificuldades em acolher, proteger, promover e integrar pessoas não esperadas; o critério principal, porém, não pode ser a manutenção do próprio bem-estar, mas a salvaguarda da dignidade humana. Aqueles que se refugiam junto de nós não devem ser vistos como um peso a carregar: se os considerarmos irmãos, aparecer-nos-ão sobretudo como dons”, observou. “A história chama-nos a um sobressalto de consciência para prevenir um naufrágio de civilização”, enfatizou, apontado para caminhos de acolhida aos migrantes e refugiados.

“Contra a terrível chaga da exploração de seres humanos, a solução não é rejeitar, mas assegurar, segundo as possibilidades de cada qual, um largo número de entradas legais e regulares, sustentáveis graças a um acolhimento por parte do continente europeu, no contexto de uma colaboração com os países de origem… A integração é fadigosa, mas clarividente: prepara o futuro que, quer queiramos quer não, ou será juntos ou não existirá; ao passo que a assimilação, que não tem em conta as diferenças e permanece rígida nos próprios paradigmas, faz com que a ideia prevaleça sobre a realidade e compromete o futuro, aumentando as distâncias e gerando a formação de guetos, que fazem crescer hostilidades e impaciências”.

O Papa lembrou, ainda, que a Igreja “adora a Deus e serve os mais frágeis, que são os seus tesouros. Adorar a Deus e servir os outros é o que conta: não a relevância social ou a consistência numérica, mas a fidelidade ao Senhor e ao homem. Trata-se dum testemunho cristão, frequentemente heroico”, ressaltou, recordando o testemunho de santos e pessoas de boa vontade na França que estenderam seu olhar e deram atenção aos mais pobres.

“É bom que os cristãos sejam insuperáveis na caridade; e o Evangelho da caridade seja a magna carta da pastoral. Não somos chamados a chorar os tempos passados nem a redefinir uma relevância eclesial, somos chamados ao testemunho: não a bordar as palavras do Evangelho, mas a dar-lhes carne; não a medir a visibilidade, mas a gastarmo-nos na gratuidade”, exortou. “Que a Igreja seja porto de esperança para os desanimados. Seja porto de restabelecimento, onde as pessoas se sintam encorajadas a fazerem-se ao largo na vida com a força incomparável da alegria de Cristo”, concluiu.

FARÓIS DE ESPERANÇA

Na parte final de seu discurso, Francisco aludiu à imagem do farol, símbolo comum a uma cidade portuária como Marselha.

“Que rastos luminosos podem orientar a rota das Igrejas mediterrânicas? Pensando no mar, que une tantas comunidades crentes diversas, creio que se possa refletir sobre percursos de maior sinergia, talvez avaliando mesmo a oportunidade duma Conferência dos Bispos do Mediterrâneo, que permita novas possibilidades de intercâmbio e dê maior representatividade eclesial à região. E pensando ainda no porto e na questão migratória, poderia ser proveitoso trabalhar em prol de uma pastoral específica ainda mais conectada, de modo que as dioceses mais expostas pudessem assegurar melhor assistência espiritual e humana às irmãs e aos irmãos que chegam necessitados de tudo”, observou.

Francisco recordou, ainda, que os jovens são “a luz que indica a rota futura”, e aludiu ao fato de Marselha ser uma cidade universitária, com cerca de 35 mil estrangeiros, 5 mil dos quais estrangeiros. “De onde começar a tecer as relações entre as culturas, senão das universidades? Aqui os jovens são fascinados, não pela sedução do poder, mas pelo sonho de construir o futuro. Que as universidades mediterrânicas sejam laboratórios de sonhos e estaleiros de construção de futuro, onde os jovens amadureçam encontrando-se, conhecendo-se e descobrindo culturas e contextos simultaneamente vizinhos e diversos. Assim se abatem os preconceitos, curam as feridas e evitam retóricas fundamentalistas”, apontou.

Lembrou, ainda, que o desafio da educação não se limita à formação universitária, mas a todas as etapas da vida. “Para isso bem pode contribuir a Igreja, colocando ao serviço as suas redes de formação e dando vida a uma ‘criatividade da fraternidade’”.

Francisco comentou ainda sobre o desafio de uma teologia mediterrânica, “que desenvolva um pensamento aderente à realidade, ‘casa’ do humano e não apenas do dado técnico, capaz de unir as gerações ligando memória e futuro, e de promover com originalidade o caminho ecumênico entre os cristãos e o diálogo entre crentes de diferentes religiões. É bom aventurar-se numa investigação filosófica e teológica que, bebendo nas fontes culturais mediterrânicas, restitua esperança ao homem, mistério de liberdade, que tem necessidade de Deus e do outro para dar sentido à sua existência. E é preciso também refletir sobre o mistério de Deus, que ninguém pode pretender possuir ou dominar, antes deve ser subtraído a todo o uso violento e instrumental, cientes de que a confissão da sua grandeza pressupõe em nós a humildade dos indagadores”.

Por fim, a todos exortou: “Continuai para diante! Sede mar de bem, para fazer frente às pobrezas de hoje com uma sinergia solidária; sede porto acolhedor, para abraçar quem procura um futuro melhor; sede farol de paz, para atravessar, através da cultura do encontro, os tenebrosos abismos da violência e da guerra”.

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