Como evitar as fake news sem colocar em risco a liberdade de expressão?

Especialistas ouvidos pelo O SÃO PAULO apontam caminhos para que novas legislações sobre o tema não facilitem expedientes de censura

Combater a disseminação de falsas informações e notícias – fake news  – no ambiente virtual é a proposta central de dois projetos de lei, de similar conteúdo, que tramitam no Congresso Nacional: o PL 2630/20, no Senado, e o PL 2927/20, na Câmara dos Deputados.

Em ambos, prevê-se a criação da Lei de Defesa da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, a chamada “Lei das Fake News”, com regras para o uso e a operação de redes sociais e serviços de mensagem privada via internet, sendo aplicável a provedores com, pelo menos, 2 milhões de usuários registrados.

Entre os pontos estabelecidos nos PLs estão a obrigatoriedade de que as plataformas solicitem a identidade dos usuários para criar contas; estabeleçam um limite de contas por usuário; proíbam o uso de perfis falsos e de robôs ou redes de robôs, bem como a adoção de ferramentas de compartilhamento de mensagens em sites e aplicativos que não sejam certificados pelas plataformas. Além disso, a criação ou operação de contas falsas será enquadrada no crime de organização criminosa (Lei 12.850/2013) e poderá ser considerada como crime de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998).

(crédito: Memyselfaneye/Pixabay)

Polêmicas

Um dos pontos polêmicos da redação original do PL 2630/20 é o que permite a exclusão de conteúdos pelas plataformas quando estes forem identificados como fake news por verificadores independentes de fatos (fact-checkers).

Uma nova versão do texto, que ainda será apreciada no Senado, proíbe que as plataformas removam qualquer conteúdo por considerá-lo fake news e indica que caberá ao Comitê Gestor da Internet, órgão multissetorial responsável por diretrizes na área, criar um grupo para elaborar uma proposta legislativa contra informações enganosas, além de definir o que é desinformação e estruturar um código de boas práticas para os verificadores.

“É preciso muito cuidado. Queremos mesmo que empresas como Facebook e Twitter, por exemplo, monitorem tudo o que circula nas redes e passem a derrubar contas em função do que elas considerarem desinformação? Como a lei descreve desinformação? Por isso, só acredito num processo educacional amplo de conscientização da população por emissoras de TV, escolas, igrejas, clubes e sociedade para não compartilhar nada antes de checar”, afima Pollyana Ferrari Teixeira, pós-doutora em Comunicação e professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP.

Pela nova redação do PL 2630/20, as plataformas somente poderão intervir em contas e perfis inautênticos em relação à distribuição de conteúdo impulsionado em massa. Ainda assim, o usuário será notificado da ação e lhe devem ser dados meios para recorrer da decisão.

Necessidade de amplo debate

Na avaliação do advogado Miguel da Costa Carvalho Vidigal, diretor da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), a legislação brasileira já dispõe de mecanismos suficientes para coibir falsidades, calúnias, injúrias e difamações: “Qualquer projeto de lei que queira ir além do nosso regramento atual deveria impreterivelmente ser objeto de um longo debate nacional e, sobretudo, fora de um momento de crise sanitária, como o que vivemos hoje”.

Opinião similar tem Carlos Alberto Di Franco, advogado e doutor em Comunicação: “Não vejo necessidade de outros instrumentos. Minha sensação é de que, no fundo, o que se quer, sob a aparência de proteção da sociedade, é controlar as redes sociais”.

Para Aldo Quiroga, jornalista da TV Cultura e professor na PUC-SP, a solução deve resultar de um amplo debate feito com toda a sociedade. “Votações virtuais sem dar voz aos especialistas no assunto podem nos levar por um caminho de difícil correção. É preciso levar em conta que o mundo pós-pandemia terá um acirramento dos mecanismos de controle pelos Estados, com a justificativa sanitária. No entanto, certamente, serão usados para controle de movimentos sociais e dissidências. É nesse contexto que uma lei como essa entraria em vigor. Por isso, é preciso muita cautela”.

Alexandre Gonçalves, doutorando em Comunicação na Columbia University, nos Estados Unidos, recordou que “diversos ativistas de direito digital afirmam que mudanças tão drásticas deveriam ser precedidas por um amplo debate com a sociedade civil”. Ele apontou, ainda, que a maioria das plataformas estão sediadas nos Estados Unidos e, assim, “mudanças significativas somente acontecerão quando os Estados Unidos decidirem legislar sobre as políticas de comunicação adotadas pelas plataformas”.

ANÁLISES

O jornal O SÃO PAULO consultou oito especialistas de diferentes áreas do saber para que respondessem à seguinte pergunta, cujas respostas são apresentadas a seguir:

Como coibir as fake news sem que haja o risco de censura ou de se atentar contra a liberdade de expressão?

(Arquivo pessoal)

“Não se combate fake news com tutelas ineficazes do Estado, pois isso pode atingir direto a liberdade de expressão. Quem vai dizer o que podemos ou não consumir? Quem vai definir o que é ou não fake news? O Estado? Transferir para o Estado a tutela da liberdade é muito perigoso. Fake news se combatem não com menos informação, mas com mais informação, e informação mais qualificada.” Carlos Alberto Di Franco, advogado, doutor em Comunicação e consultor e colunista do jornal O Estado de S. Paulo

(Agência Câmara)

“Até hoje, não vi nenhum país, instituição ou pensador que tivesse uma resposta clara e completa para essa indagação. Só o diálogo amplo, a diversidade das perspectivas, a contribuição dos vários saberes e, além disso, a experiência prática, é que vão nos indicar possíveis soluções. Há, porém, alguns princípios bem estabelecidos como, por exemplo, o de que nunca deve haver censura prévia de conteúdo ou o de que não há liberdade de expressão para difamar, injuriar e caluniar. O nosso desafio, neste momento, é fazer as perguntas certas. Os tipos penais de difamação, injúria e calúnia não são suficientes? Há falsidades que devem ser ‘toleradas’? Qual é o procedimento por meio do qual se define algo como falso? E a pergunta mais delicada: quem terá a competência de julgar a veracidade ou falsidade de uma informação? Agências estatais, entidades não governamentais ou as próprias plataformas digitais? Enquanto não tivermos respostas razoavelmente seguras, não podemos aprovar nenhuma regulação, sob pena de atingirmos gravemente a liberdade de expressão.” Enrico Misasi, deputado federal (PV-SP)

(Luciney Martins/ O SÃO PAULO)

“Por um lado, acho importante garantir que todo o conteúdo publicado tenha assinatura. Quando é fácil identificar e responsabilizar judicialmente o autor, produtores de conteúdo pensam duas vezes antes de publicar uma notícia difamatória ou caluniosa. As plataformas digitais podem desempenhar um papel importante nesse sentido. Elas devem empregar todos os instrumentos ao seu alcance para evitar perfis falsos. Ao mesmo tempo, devem oferecer ferramentas para que usuários e pesquisadores possam rastrear a origem de uma informação dentro da plataforma. Por outro lado, acho perigoso que as plataformas adotem os pareceres de fact-checkers na hora de decidir a remoção de um conteúdo. Acredito que fact-checkers podem desempenhar um serviço inestimável para a qualidade do debate democrático, mas esse poder se converteria em abuso se seus pareceres implicarem a censura do conteúdo que foi julgado impróprio. Na prática, haveria um enorme incentivo para capturar o poder decisório dos fact-checkers para controlar o que as pessoas veem nas suas mídias sociais.” Alexandre Gonçalves, jornalista, graduado em Ciência da Computação e doutorando em Comunicação na Columbia University, nos Estados Unidos

Quiroga

“Esse é o grande dilema deste momento. Não há uma resposta fechada para isso, mas certamente a solução passa pelo fortalecimento das instituições democráticas, que precisam, com urgência, colocar freio à sanha autoritária deste tempo. É bom lembrar que o marco legal que temos já dá uma base importante para coibir os abusos nas figuras da injúria, calúnia e difamação. O combate às informações falsas é o grande desafio para a democracia neste tempo. A manipulação da opinião pública com notícias sem fundamento já definiu eleições no velho e no novo continentes e, aqui, a Suprema Corte ainda se manifestará sobre isso. E desse posicionamento dependerá a manutenção do Estado Democrático de Direito. Em paralelo, o jornalismo profissional é o antídoto, com sua prática constante de checagem dos fatos, que agora ganha ainda mais destaque.” Aldo Quiroga, jornalista da TV Cultura e professor da PUC-SP

“As fake news não são notícias, nem informações, nem expressão de um pensamento. Elas são uma montagem, com a finalidade específica de detratar, ofender, difamar, alcançar interesses próprios, pessoais ou grupais, corporativos, políticos e econômicos. Portanto, combater fake news não é propriamente combater uma fofoca, uma mentira qualquer, um equívoco, embora isso já fosse muito a ser combatido. Mais do que isso, é combater a execução de um plano que faz mal às pessoas e instituições, que muda o rumo das coisas, que, injustamente, fará vencedor quem não seria se não houvesse fake news. De forma alguma a coibição das fake news atentará contra a liberdade de expressão e de opinião, que, por mais divergentes que possam ser, devem ser sempre verdadeiras.” Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB

(Signis Brasil)

“Esse mal, que tem afetado negativamente as relações sociais, e até o desenvolvimento do País, é a prova de uma sociedade doente e com expectativas torpes sobre um mundo fantasioso. É urgente que haja, primeiramente, uma consciência individual e coletiva dos cidadãos, bem como as autoridades devem trabalhar no sentido de criar leis e outros instrumentos que punam autores de fake news. O cuidado para que não se fira a liberdade de expressão passará pelo respeito às opiniões contrárias, pois ninguém é dono de uma verdade absoluta. Outro ponto importante é não deixar de lado a apuração dos fatos de maneira rigorosa e imparcial. No Brasil, temos condenado mais do que apurado e julgado.” Alessandro Gomes, bacharel em Comunicação Social, mestre em Ciências das Religiões e presidente da Signis Brasil

Fake news são mentiras e devem ser enfrentadas pelo compromisso pessoal com a verdade. As melhores leis serão ineficazes diante de alguém que prefere as mentiras cômodas à verdade. Um hábito salutar é darmos, nas polêmicas, um ‘direito de resposta’ a quem pensa diferente de nós, procurando materiais bem fundamentados que mostram as questões sob outra ótica. No plano institucional, as melhores soluções serão as formuladas em fóruns em que usuários, plataformas da internet e gestores públicos dialoguem para ver como inibir fake news sem criar censura. O diálogo entre os três atores da internet minimiza o risco de ações malévolas de um ou outro grupo. Antes que leis, difíceis de promulgar e mais ainda de corrigir quando inadequadas, o melhor são códigos de conduta flexíveis e amparados legalmente, que vão sendo aprimorados à medida que avançam os debates e os recursos disponíveis.” Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, biólogo e coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

Miguel Vidigal

“Talvez lapidar o instituto do direito de resposta fosse um caminho mais correto. Na aplicação deste regramento, que é amparado tanto na Constituição Federal quanto em Legislação específica (Lei 13.188/15), o ofendido tem 60 dias para pedir direito de resposta, e o suposto ofensor, ao receber a resposta, tem sete dias para publicar, oferecendo ao ofendido o mesmo destaque que deu quando da publicação falsa ou ofensiva. Em caso de recusa daquele que publicou a suposta fake news de divulgar a resposta do ofendido, judicializa-se a questão e, embora a lei determine que a sentença de primeira instância deva ser prolatada em 30 dias, infelizmente encontramos uma morosidade enorme, e a solução acaba se dando muitas vezes anos depois, quando, por vezes, a acusação já nem é mais lembrada.

Os prazos para garantir a defesa do ofendido são, portanto, muito longos e acabam ajudando essa lentidão, dando pouca efetividade à lei. As informações hoje correm e se atropelam umas às outras e, dessa forma, permitir que a resposta possa demorar para ser publicada não ajuda em nada o combate às fake news. Soma-se a isso que não são raras as decisões judiciais que inocentam personalidades e veículos de imprensa tradicionais de ofensas que eles teriam proferido, com o simplório argumento de que ‘é do feitio dele se expressar daquele modo’.  

É preciso, portanto, que a Lei 13.188/15 tenha nova redação e ofereça menos burocracias, ajudando na celeridade do direito de resposta. Sobretudo, é necessário, porém, que grandes corporações e mesmo juízes parem de determinar, a seu bel-prazer, qual narrativa pode ser aceita e qual deve ser combatida: ou se quer excluir todo tipo de notícias falsas ou teremos a censura implantada no País.” Miguel da Costa Carvalho Vidigal, advogado e diretor da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp)

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