Declaração do Papa sobre homossexuais foi editada com fragmentos de entrevista de 2019

Cineasta utilizou trechos retirados do contexto original de uma entrevista do ano passado para compor afirmação do Pontífice a respeito das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo

Nesta quarta-feira, 21, os meios de comunicação repercutiram uma declaração atribuída ao Papa Francisco, extraída de um trecho do documentário “Francesco”, exibido no Festival de Cinema de Roma, nessa mesma data.

No vídeo dirigido pelo cineasta russo Evgeny Afineevsky, Francisco aparece dizendo: “As pessoas homossexuais têm direito de estar em uma família. São filhos de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deverá ser descartado ou ser infeliz por isso. O que precisamos criar é uma lei de união civil. Dessa forma eles são legalmente contemplados. Eu defendi isso”.

Essa afirmação imediatamente ganhou as manchetes dos principais noticiários que a definiram como uma mudança de posicionamento da Igreja Católica em relação à união de pessoas do mesmo sexo.

Contudo, nesta quinta-feira, 22, a versão italiana do site Aleteia verificou que a declaração contida no documentário foi extraída e editada de fragmentos de uma longa entrevista concedida pelo Pontífice à vaticanista mexicana Valentina Alazraki, da rede Televisa, em maio de 2019 (assista à íntegra, em espanhol, aqui). Foram identificados quatro trechos reunidos em uma única declaração exibida pelo filme.

TRECHOS ORIGINAIS

Na versão original, o Papa Francisco declara que ficou irritado com a forma como os jornalistas receberam sua famosa resposta “Se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”, dita durante a entrevista coletiva a bordo do voo de retorno do Rio Janeiro, após a Jornada Mundial da Juventude, em 2013.

O Santo Padre explicou à jornalista que, na ocasião, expressou-se sobre a integração em das pessoas com orientação homossexual na família e afirmou compreender que: “As pessoas homossexuais têm direito de estar em uma família”. Esse foi o primeiro trecho destacado o documentário “Francesco”.

No entanto, apenas uma parte dessa afirmação foi colocada no filme, sendo o trecho completo o seguinte:

“As pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma família, as pessoas com orientação homossexual têm direito de estar em uma família, e os pais têm o dever de reconhecer aquele filho homossexual, aquela filha homossexual. Não se pode expulsar alguém da família e tornar sua vida impossível por isso”.

CONTEXTO

O tema da discussão, portanto, dizia respeito ao lugar do filho homossexual em uma família heterossexual, ao contrário do contexto no qual foi inserida a declaração, imediatamente após o relato do ativista Andrea Rubera, que vive uma união civil homoafetiva e recebeu um telefonema do Papa Francisco, em 2015, após ter escrito uma carta ao Pontífice. Tal edição, sugere, portanto, que Francisco está falando sobre a realidade das chamadas “famílias homoparentais”.  

O trecho removido da declaração original foi substituído pela frase: “São filhos de Deus, têm direito a uma família”. De fato, foi pronunciada pelo Papa na mesma entrevista, mais adiante, quando ele lamentava o título de um jornal que dizia: “O papa manda homossexuais ao psiquiatra”, após uma declaração feita aos jornalistas no retorno da viagem para a Irlanda, em 2018, a respeito de pessoas que são expulsas de suas casas por terem orientação homossexual, que posteriormente, foi esclarecida pela Sala de Imprensa da Santa Sé.

Foi nesse contexto que o Papa, então, respondeu aos que o questionavam: “São filhos de Deus, têm direito a uma família”. Essa frase foi inserida no vídeo enquanto é mostrada uma imagem de padres concelebrando na Capela Santa Marta.

O texto da Aleteia chama a atenção, ainda, que tais afirmações do Papa foram feitas justamente quando ele exortava aos jornalistas a não interpretarem suas palavras fora do contexto e sublinhou que o fato de os homossexuais terem direito a uma família “não significa aprovar os atos homossexuais”.

‘UNIÕES CIVIS’

O quarto trecho da montagem, não aparece na versão original da entrevista de 2019 e parece ter sido cortado pela jornalista mexicana e nem mesmo está na transcrição oficial publicada pelo site Vatican News.

O contexto corresponde ao fato de Valentina Alazraki  ter observado que o Papa Francisco se opôs ao “casamento” homossexual quando era Arcebispo de Buenos Aires, na Argentina, e que, paradoxalmente desde sua chegada a Roma, ele, na avaliação dela, parecia “muito mais liberal” do que quando estava em seu país de origem.

A resposta do Pontífice começa assim: “Sempre defendi a doutrina. É curioso, no que diz respeito à lei do ‘casamento entre pessoas do mesmo sexo’ …  é incongruente falar de ‘casamento’ do mesmo sexo”.

No vídeo, a jornalista lhe faz uma pergunta e o documentário “Francesco” indica ter sido tirada daí a frase final do Papa, tanto que o corte é perceptível e a concatenação parece coerente: “O que devemos fazer é uma lei de convivência civil: eles têm o direito de serem protegidos legalmente. Eu tenho defendido isso”. O Papa usou a expressão “convivencia”, que, em espanhol, significa tanto convivência como coexistência. Na legenda do documentário, o termo foi traduzido para “civil union”.

DECLARAÇÕES ANTERIOES

No entanto, o mesmo artigo ressalta que a afirmação original do Papa é menos inédita e bombástica do que sugere edição feita no documentário. Afirmações quase idênticas já haviam sido feitas por Francisco no livro-entrevista “Politica e società” (2017), com o sociólogo Dominique Wolton, no qual o Santo Padre declarou: “Casamento” é um conceito histórico. Sempre, na humanidade, e não só na Igreja, trata-se de um homem e de uma mulher. Você não pode mudar isso assim, como se nada tivesse acontecido […]. É a natureza das coisas, é isso. Vamos chamá-los de “uniões civis”.

O diretor Evgeny Afineevsky, homossexual e militante dessa causa, já havia produzido um longa-metragem em 2009 sobre a questão da inclusão de homossexuais em uma família judaica.  O mesmo, expressou surpresa que a declaração do Papa tenham criado tamanha “tempestade”.

Em entrevista ao jornal italiano Avvenire, o jesuíta Padre Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, que assistiu o documentário na pré-estreia em Roma, confirmou que é um filme construído com pequenos trechos de vídeos e enfatizou: “Não há nada de novo: o que me impressiona é a capacidade de Francisco em ouvir”, disse.

(Fonte: Aleteia-Itália)

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Luís Eugênio Sanábio e Souza
Luís Eugênio Sanábio e Souza
4 anos atrás

De fato, compreende-se a manipulação e descontextualização. Certamente que isto é desonesto e nocivo, porque altera o sentido exato que o Papa quis estabelecer. Contudo, eu penso que a Santa Sé deveria se manifestar para dirimir as dúvidas e a confusão que o documentário causou. Eu penso que o devido respeito aos fieis exige uma explicação oficial da Santa Sé Apostólica, até mesmo para evitar a dispersão e o escândalo do rebanho, isto é, do povo de Deus que deseja ser fiel ao Papa.

Cesar Saldanha
Cesar Saldanha
4 anos atrás

Como vimos, há uma prática jornalística mundial e aqui no Brasil de desconstruir aqueles que são bons, não estou falando de Jair Bolsonaro, longe disso, que ele por si só se alto flagela.

Miguel Carneiro
Miguel Carneiro
4 anos atrás

Se o diretor do documentário alterou a frase, colocando o papa numa tremenda fria e a Igreja toda em polvorosa, por que esse diretor foi recebido essa semana ainda pelo papa com bolos e velas? Numa tremenda intimidade, cordialidade e “carinhos” de amnbas as partes?

Vicente L
Vicente L
4 anos atrás

Na verdade, com o comportamento equivocado do atual papa, pode-se notar o enfraquecimento da Igreja e nenhuma providência é tomada no sentido e esclarecer o que se vem ocorrendo ultimamente em declarações controversas do chamado Santo Padre. Meu Deus, onde vamos parar?

José Maria
José Maria
4 anos atrás

O papa Francisco é fiel às suas convicções pessoais que, nesse ponto não coincide com a tradição da Igreja. Por essa dissonância, falha ao “confirmar os irmãos na fé”, posto fazer declarações desastradas, mas que no seu conjunto demonstram particular coerência e constância.
Ao fazê-las trás duas consequências: (i) confirma a prática homossexual como lícita, no bojo das modernas tendências teológicas rendidas ao relativismo cultural e submetidas à crescente e, por hora vencedora, descristianização da sociedade; (ii) e prepara o caminho para que, mediante a pressão de fora para dentro e a profunda confusão moral do rebanho, em algum momento se faça a viragem no tradicional ensinamento teológico da Igreja: de pecado contra o sexto mandamento a lícito e, porque não, virtuoso meio de prática da vida cristã.
Atende-se a uma minoria barulhenta, rica e organizada… E, presente no interior a Igreja, mesmo entre o alto clero, mas muito pouco convertida… Sabe-se lá a que custo…

Luís Eugênio Sanábio e Souza
Luís Eugênio Sanábio e Souza
4 anos atrás

Eu penso que as críticas dirigidas ao Santo Padre são injustas porque tais críticas não aprofundam as questões. Algumas pessoas só se sentem seguras através do legalismo e então permanecem cegas e escravas das leis. A Amoris laetitia fala do perigo deste rigor sem, contudo, relativizar a doutrina. Assim, não se deve tirar conclusões apressadas sobre as palavras do Papa. Vale lembrar que duvidar do Santo Padre se enquadra no pecado de cisma. Quem critica o Papa publicamente não pode ser considerado um autêntico católico. Isso foi claramente explicado pelo Concílio Vaticano II na Constituição Lumen Gentium que pede respeito inclusive quando o Papa não se pronuncia de maneira definitiva. A doutrina da Igreja sobre a homossexualidade permanece em vigor no Catecismo da Igreja Católica 2357,2358,2359 e o papa não aboliu isso. Pelo contrário, já citou este parágrafo do Catecismo em diversas ocasiões, inclusive na Amoris Laetitia nº 250. Então, também não se pode equiparar pronunciamentos públicos e parciais do Papa com suas declarações magisteriais presentes nos documentos oficiais.

Felipe
Felipe
4 anos atrás

“As pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma família, as pessoas com orientação homossexual têm direito de estar em uma família, e os pais têm o dever de RECONHECER AQUELE FILHO homossexual, AQUELA FILHA homossexual. Não se pode expulsar alguém da família e tornar sua vida impossível por isso”.

“Reconhecer” é sinônimo de “ACEITAR” nesta frase, e a doutrina cristã CONDENA O PECADO. Ela prega a TOLERÂNCIA com o PECADOR (no caso, seria “TOLERAR aquele filho que se diz homossexual” e não RECONHECER). E a frase colocada deveria ter sido construída de forma mais clara !!! “Estar em uma família” é uma forma de generalizar onde este indivíduo estará na família : poderia ser um filho, um neto, e até um CHEFE de família !!!

Portanto, deveria ter usado um termo alinhado com os princípios cristãos, que poderia ser

“As pessoas que se entendem como homossexuais têm o direito de conviver pacificamente com todos e os pais têm o dever de conviver pacificamente com eles. Não se pode expulsar alguém da família e tornar sua vida impossível por isso”…

Percebeu a diferença ??? Não adianta tentar defender, não é só essa declaração, mas TODAS as suas manifestações contradizem com uma frequência pertubadora a bíblia e toda a doutrina cristã !!! Ao meu ver, é CLARO que este indivíduo não deveria ocupar esta posição na instituição católica, pois mostra claramente sua “incapacidade” em manter todo o seu discurso alinhado com os princípios cristãos (isso se for incapacidade mesmo…. temo que não o seja, que seja proposital !!!).

Luís Eugênio Sanábio e Souza
Luís Eugênio Sanábio e Souza
4 anos atrás

Em primeiro lugar deve-se respeitar o Papa, procurando compreender seus pronunciamentos mesmo que não sejam definitivos (Concílio Vaticano II: LG nº 25).
No caso, o Papa não falou de casamento gay. Ele falou de direito à uma família no contexto de um homossexual que nunca deve ser abandonado pelos pais. Acontece que o documentário editou o vídeo e descontextualizou. Portanto, o Papa não defendeu o casamento gay e isso ele já havia dito na Exortação Amoris laetitia nº 251 ao lembrar que “não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família. É inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimônio” entre pessoas do mesmo sexo” (Papa Francisco: Amoris laetitia nº 251).
Não se pode negar e o Papa também pode reconhecer que os gays tem direitos humanos e entre estes direitos pode haver certos direitos civis (como partilha de bens, herança e etc). Estes direitos não implicam necessariamente em vida sexual ativa e nem em casamento gay, pois a Igreja ensina que os homossexuais são chamados à castidade (Catecismo da Igreja Católica nº 2359).
A doutrina da Igreja acerca da homossexualidade encontra-se exposta no Catecismo da Igreja Católica que está em vigor e que o Papa não aboliu, nem modificou; pelo contrário, já o citou em outras ocasiões (na própria Amoris laetitia nº 250). Neste sentido, é importante recordar aqui o texto integral do Catecismo :
Vejamos : ““A homossexualidade designa as relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade se reveste de formas muito variáveis ao longo dos séculos e das culturas. Sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves (Gênesis 19,1-29; Romanos 1, 26-27; 1 Coríntios 6,9-10; 1 Timóteo 1,10) a tradição sempre declarou que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados. Um número não negligenciável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente enraizadas. Esta inclinação objetivamente desordenada constitui, para a maioria, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus em sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes de autodomínio, educadoras da liberdade interior, às vezes pelo apoio de uma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem se aproximar, gradual e resolutamente, da perfeição cristã” (Catecismo da Igreja Católica nº 2357, 2358 e 2359).
O Papa Francisco assim se expressou em documento magisterial: “A Igreja conforma o seu comportamento ao do Senhor Jesus que, num amor sem fronteiras, se ofereceu por todas as pessoas sem exceção. Com os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar qualquer sinal de discriminação injusta e particularmente toda a forma de agressão e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homossexual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida. No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimônio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família. É inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o “matrimônio” entre pessoas do mesmo sexo” (Papa Francisco : Exortação Apostólica Pós Sinodal “Amoris laetitia” nº 250 e 251).