‘O racismo é um pecado que constitui uma grave ofensa a Deus’

Em sua doutrina, a Igreja Católica condena toda forma de discriminação racial por ser uma violação à dignidade do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus.

Todos os homens criados à imagem de Deus têm a mesma natureza e origem (Gaudium et spes, 29) (Foto: Luciney Martins/ 15 de setembro de 2019)

O mundo assiste a uma série de protestos e manifestações nas ruas e nas mídias digitais contra o racismo. Esses atos, que acontecem inclusive no Brasil, ganharam força a partir da morte do norte-americano negro George Floyd, asfixiado por um policial branco, no dia 25 de maio, na cidade de Minneapolis.

Durante audiência geral, no dia 3, o Papa Francisco manifestou sua preocupação com os últimos acontecimentos e recordou que o racismo é um pecado. “Não podemos tolerar nem fechar os olhos para qualquer tipo de racismo ou de exclusão e pretender defender a sacralidade de cada vida humana”, destacou o Pontífice. Por outro lado, o Santo Padre condenou a violência que marcou algumas dessas manifestações, definindo-a como “autodestrutiva”. “Nada se ganha com a violência e muito se perde”, afirmou.

MAL PARA A HUMANIDADE

Francisco não é o primeiro Pontífice a se referir ao racismo como um pecado. Seus predecessores, assim como a doutrina da Igreja, sempre condenaram todas as formas de discriminação racial.

Durante a oração do Angelus de 26 de agosto de 2001, São João Paulo II afirmou que “o racismo é um pecado que constitui uma grave ofensa a Deus”, ressaltando que toda consciência reta não pode deixar de condenar decididamente o racismo, “seja qual for o coração ou o lugar em que se manifeste”.

Naquela ocasião, foi promovida pela ONU, na cidade de Durban, na África do Sul, a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, com a participação de representantes de 173 países, entre eles, o Brasil, resultando na elaboração de um plano de ação mundial de combate ao problema.

IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS

O Papa Wojtyla recordou, ainda, que o Concílio Vaticano II, por meio da Constituição Gaudium et spes, enfatizou que “a igualdade fundamental entre todos os homens exige um reconhecimento crescente. Porque todos os homens, dotados de uma alma racional e criados à imagem de Deus, têm a mesma natureza e a mesma origem. E porque, redimidos por Cristo, eles gozam da mesma vocação e do mesmo destino”.

“Qualquer forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja ela social ou cultural, com base em sexo, raça, cor, condição social, idioma ou religião, deve ser superada e eliminada, pois é contrária ao plano divino”, acrescentou o Concílio.

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja também chama a atenção para essa realidade, destacando que “o respeito pela dignidade da pessoa não pode absolutamente prescindir da obediência ao princípio de considerar o próximo como ‘outro eu’, sem excetuar nenhum”, e recorda que “uma vez que no rosto de cada homem resplandece algo da glória de Deus, a dignidade de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante os outros homens”, indicando este como o fundamento último da radical igualdade e fraternidade entre os seres humanos.

IGREJA DIANTE DO RACISMO

Em 1988, a Pontifícia Comissão Justiça e Paz, organismo da Santa Sé, publicou, a pedido de São João Paulo II, um documento intitulado “A Igreja diante do racismo. Para uma sociedade mais fraterna”.

O texto, que foi reeditado em 2001, enfatiza que o preconceito e as condutas racistas “continuam a obscurecer as relações entre pessoas, grupos humanos e nações” e reforça que “a consciência moral não pode, de forma alguma, aceitar tais preconceitos ou comportamentos”.

O documento recorda que os comportamentos e ideologias racistas não são algo recente e “têm suas raízes na realidade do pecado desde a origem da humanidade”.

MUDANÇA INTERIOR

“O preconceito racista, que nega a igual dignidade de todos os membros da família humana e a blasfêmia de seu Criador, só pode ser combatido onde nasce, ou seja, no coração do homem”, ressalta o documento eclesial, enfatizando que os meios externos, legislações e demonstrações científicas não bastam para extirpar tal prática. “Para isso, uma comunidade deve se apropriar dos valores que inspiram as leis justas e também traduzir no dia a dia a convicção da igual dignidade de todo ser humano”, acrescenta o texto.

Outra forma de contribuição da comunidade eclesial é pelo testemunho de vida dos cristãos, por meio do respeito aos estrangeiros, aceitação do diálogo, a participação, a ajuda fraterna e a colaboração com os outros grupos étnicos.

“Também é necessário assumir a defesa das vítimas do racismo, onde quer que elas estejam”, frisou o texto, lembrando que atos de discriminação entre homens e povos, por razões racistas ou por outros motivos, sejam religiosos ou ideológicos, “devem ser divulgados com severidade e fortemente condenados”.

(Foto: Pixabay)

ESPAÇO DE RECONCILIAÇÃO

Outro aspecto salientado pelo documento é que, ao denunciar o racismo, “a Igreja deve manter sempre sua atitude evangélica em relação a todos”. Isso significa que, assim como não deve ter medo de analisar lucidamente as causas do racismo e expressar sua desaprovação, deve também buscar entender como esses extremos foram alcançados e ajudar a encontrar uma saída.

Nesse sentido, a Igreja deve se preocupar em impedir que as vítimas recorram a lutas violentas e “oferecer um espaço para a reconciliação e não acentuar a oposição”, de maneira que o ódio seja excluído por meio de uma “mudança de mentalidade, sem a qual uma mudança de estruturas seria inútil”.

EDUCAÇÃO NOS VALORES

Ainda no discurso de 2001, São João Paulo II exortou que o racismo deve ser contraposto com a cultura do acolhimento recíproco. “Por conseguinte, é necessária uma ampla obra de educação nos valores que exaltam a dignidade da pessoa e tutelam os seus direitos fundamentais.”

Esse aspecto foi reiterado pelo Papa Emérito Bento XVI, no Angelus de 2009, por ocasião da realização da Conferência de exame da Declaração de Durban, organizada pela ONU. “A Igreja, por seu lado, reafirma que só o reconhecimento da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus, pode constituir uma referência certa para este compromisso.”

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