O SÃO PAULO publica a íntegra da carta do Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, da Santa Sé
Roma, 7 de maio de 2020.
Em muitos países, o exercício do culto cristão foi interrompido pela pandemia de COVID-19. Os fiéis não podem se reunir nas igrejas, nem participar sacramentalmente do sacrifício eucarístico. Essa situação, embora seja uma fonte de grande sofrimento, é também uma oportunidade que Deus nos dá para entender melhor a necessidade e o valor do culto litúrgico.
Como Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, mas, acima de tudo, em profunda comunhão com o humilde serviço a Deus e à sua Igreja, desejo oferecer esta meditação a meus irmãos no episcopado e no sacerdócio, e também ao povo de Deus, a fim de tentar aprender algumas lições dessa situação.
Já houve quem dissesse que, devido à epidemia e ao confinamento estabelecido pelas autoridades civis, o culto público foi suspenso. Na verdade, essa compreensão não é correta: o culto público é o culto prestado a Deus por todo o Corpo Místico, Cabeça e membros, conforme recordado pelo Concílio Vaticano II:
“De fato, pela realização desta grandiosa obra, pela qual Deus é perfeitamente glorificado e os homens santificados, Cristo sempre associa a si a Igreja, sua amadíssima esposa, que o invoca como seu Senhor, e por ele presta culto ao eterno Pai. Com razão, portanto, a liturgia é considerada como exercício da função sacerdotal de Cristo, no qual a santificação do homem é representada por sinais sensíveis e realizada de maneira específica a cada um deles; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo, Cabeça e membros, presta a Deus o culto público integral. Consequentemente, qualquer celebração litúrgica, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo, que é a Igreja, é uma ação sagrada por excelência, cuja eficácia nenhuma outra ação da Igreja pode igualar, da mesma maneira e no mesmo grau” (Sacrosanctum concilium, 7).
Tal culto é prestado a Deus sempre que é oferecido em nome da Igreja por ministros legítimos e de acordo com atos aprovados pela autoridade da Igreja (Código de Direito Canônico, 834).
Assim, cada vez que um sacerdote celebra a missa ou a Liturgia das Horas, mesmo estando sozinho, ele oferece um culto público e oficial da Igreja, em união com sua Cabeça, Cristo, e em nome de todo o Corpo. É necessário recordar essa verdade para começar a nossa reflexão, pois isso nos permitirá dissipar melhor certos erros.
Certamente, para encontrar sua expressão plena e manifesta, é propício que o culto possa ser celebrado com a participação de uma comunidade de fiéis do povo de Deus. Pode acontecer, no entanto, que isso não seja possível. A ausência física da comunidade não impede a realização do culto público, mesmo que certas partes dele sejam omitidas. Assim, seria errado afirmar que um sacerdote deveria se abster da celebração da missa na ausência dos fiéis. Pelo contrário, nas atuais circunstâncias em que o povo de Deus é impedido de se unir sacramentalmente a tal culto, o sacerdote está mais ligado à celebração diária. De fato, na liturgia, o padre atua in persona Ecclesiae, em nome de toda a Igreja, e in persona Christi, em nome de Cristo, Cabeça do Corpo para o culto ao Pai. Ele é o embaixador, o representante de todos aqueles fiéis que não podem estar lá fisicamente.
Assim, é compreensível, portanto, que nenhuma autoridade secular possa suspender o culto público da Igreja. O culto é uma realidade espiritual sobre a qual nenhuma autoridade temporal tem controle. O culto continua onde quer que uma missa seja celebrada, mesmo sem a presença dos fiéis reunidos. Por outro lado, cabe às autoridades civis proibir reuniões que seriam perigosas ao bem comum em vista da situação de saúde. Também é responsabilidade dos bispos colaborar com essas autoridades civis da melhor maneira possível.
Seria legítimo pedir aos cristãos que se abstivessem, por um tempo curto e determinado, de se reunir fisicamente. Por outro lado, é inaceitável que as autoridades responsáveis pelas questões políticas se permitam julgar a natureza urgente ou não urgente do culto religioso e proíbam a abertura das igrejas, o que permitiria aos fiéis rezar, se confessar e comungar, desde que as regras sanitárias fossem respeitadas.
Como “promotores e guardiões de toda a vida litúrgica”, cabe aos bispos, com firmeza e sem demora, exigir o direito à presença física dos fiéis nas celebrações, tão logo seja possível. Nesta questão, o exemplo de São Carlos Borromeu pode nos esclarecer: durante a praga de Milão, no que diz respeito às procissões, ele cumpriu as rigorosas medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades civis de seu tempo, que se assemelhavam às medidas protetivas atuais. Os fiéis cristãos também têm o direito e o dever de se defender com firmeza, sem, no entanto, fazer concessões à sua liberdade de culto.
Uma mentalidade secularizada considera os atos religiosos como atividades secundárias a serviço do bem-estar das pessoas, equiparando-os ao lazer e às atividades culturais. Tal perspectiva é radicalmente falsa: o louvor e a adoração são objetivamente devidos a Deus. Devemos a Ele esse culto porque Ele é nosso Criador e nosso Salvador. A expressão pública do culto católico não é uma concessão do Estado à subjetividade dos crentes. É um direito objetivo de Deus, é um direito inalienável de cada pessoa. “O dever de render culto a Deus diz respeito autenticamente ao homem, individual e socialmente”(Catecismo da Igreja Católica, 2105). Esta é a“tradicional doutrina católica acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo” (Dignatis humanae, 1).
Gostaria, portanto, de prestar uma homenagem aos padres, religiosos e religiosas que asseguraram a continuidade do culto público católico nos países mais afetados pela pandemia. Ao celebrar em solidão, vocês oraram em nome de toda a Igreja, vocês foram a voz de todos os cristãos que se eleva ao Pai. Quero também agradecer a todos os fiéis leigos que se empenharam em associar-se a esse culto público, celebrando a Liturgia das Horas em seus lares ou unindo-se espiritualmente na celebração do santo sacrifício da missa.
Alguns criticaram a transmissão dessas liturgias pelos meios de comunicação, como a televisão ou a internet. Não há dúvida de que, como o Papa Francisco nos lembrou, a imagem virtual não substitui a presença física. Jesus veio nos tocar em nossa carne. Os sacramentos estendem sua presença até nós. É preciso lembrar que a lógica da Encarnação e, portanto, dos sacramentos, não pode prescindir da presença física. Nenhuma transmissão virtual jamais substituirá a presença sacramental. A longo prazo, pode até ser prejudicial à saúde espiritual do padre que, em vez de olhar fixamente para Deus, olha e fala para um ídolo: para uma câmera, afastando-se de Deus, que nos amou, a ponto de entregar seu único Filho na cruz, para que tenhamos vida.
Quero, no entanto, agradecer a todos os que trabalharam nessas transmissões. Eles permitiram que muitos cristãos se unissem espiritualmente ao culto público ininterrupto da Igreja. Nisso eles foram úteis e fecundos. Também ajudaram muitas pessoas a encontrar apoio para suas orações. Quero prestar homenagem à inventividade e à imaginação dos cristãos que tiveram que se mobilizar nesta emergência.
Quero, entretanto, chamar a atenção de todos para certos riscos: os meios de transmissão virtual podem induzir a uma lógica de busca de sucesso, imagem, espetáculo ou pura emoção. Essa lógica não é a do culto cristão. O culto não visa a atrair espectadores por meio de uma câmera, pois é dirigido e orientado a Deus Uno e Trino. A fim de evitar esse risco, ou seja, a transformação do culto cristão em um espetáculo, é importante refletir sobre o que Deus está nos dizendo por meio da situação atual.
Os cristãos se viram na mesma situação do povo hebreu no exílio, isto é, privados de prestar culto a Deus. O profeta Ezequiel nos ensina o significado espiritual dessa suspensão do culto hebraico. Precisamos reler este livro do Antigo Testamento, cujas palavras são muito relevantes e atuais. O povo escolhido não sabia como oferecer um culto verdadeiramente espiritual a Deus, afirma o profeta, tendo-se voltado para os ídolos. “Seus sacerdotes violaram minha lei e profanaram meus santuários; entre o sagrado e o profano, não fizeram diferença e não ensinaram a distinguir os puros e os impuros… e fiquei desonrado entre eles” (Ez 22,26). Então a glória de Deus abandonou o templo de Jerusalém (Ez 10,18).
Deus, porém, não se vinga. Se Ele permite que desastres naturais aconteçam a seu povo, é sempre para melhor educá-lo e oferecer-lhe uma graça mais profunda de aliança (Ez 33,11). Durante o exílio, Ezequiel ensina ao povo as modalidades de um culto mais perfeito, um culto mais verdadeiro (Ez 40-47). O profeta permite vislumbrar um novo templo, do qual flui um rio de água viva (Ez 47,1). Este templo simboliza, prenuncia e anuncia o Coração trespassado de Jesus, o templo verdadeiro. Este templo é servido por padres que não terão herança em Israel, nem terra em propriedades particulares. “Eles não terão herança em Israel; eu serei a herança deles” (Ez 44,28), diz o Senhor.
Acredito que podemos aplicar essas palavras de Ezequiel ao nosso tempo. Nós também não diferenciamos entre o sagrado e o profano.
Muitas vezes desprezamos a sacralidade de nossas igrejas. Nós as transformamos em salas de concerto, restaurantes ou dormitórios para os pobres, refugiados ou migrantes sem documentos. A Basílica de São Pedro e quase todas as nossas catedrais, expressões vivas da fé de nossos antepassados, tornaram-se grandes museus, pisoteados e profanados, diante de nossos olhos, por um desfile lamentável de turistas, muitas vezes incrédulos e desrespeitosos com os lugares sagrados. Hoje, por meio de uma doença que seguramente não queria, Deus nos oferece a graça de sentir o quanto sentimos falta de nossas igrejas. Deus nos oferece a graça de experimentar que precisamos desta casa, onde ele reside, no meio de nossas cidades e vilarejos. Precisamos de um lugar, um edifício sagrado, isto é, reservado exclusivamente a Deus. Precisamos de um lugar que seja mais do que apenas um espaço funcional para encontros e entretenimento cultural. Uma igreja é um lugar onde tudo é orientado para a glória de Deus, o culto à sua majestade. Não está na hora de, ao reler o livro de Ezequiel, recuperar o senso de sacralidade? Proibir manifestações profanas em nossas igrejas? Reservar acesso ao altar apenas aos ministros? Banir os gritos, os aplausos, as conversas mundanas, o frenesi das fotografias neste lugar onde Deus vem morar?
“A igreja não é uma sala em que algo de manhã cedo acontece uma vez, enquanto permaneceria vazia e sem função pelo resto do dia. Na sala que é a igreja, sempre há a Igreja, uma vez que o Senhor sempre se entrega, uma vez que permanece o mistério eucarístico e, ao avanço desse mistério, sempre estamos incluídos no culto divino de toda a Igreja que crê, que ora e que ama. Todos sabemos a diferença entre uma igreja cheia de orações e uma igreja que se tornou um museu. Hoje, corremos o grande perigo de nossas igrejas se tornarem museus. (Joseph Ratzinger, Eucharistie. Mitte der Kirche, Munique, 1978).
Poderíamos repetir as mesmas palavras sobre o domingo, o dia do Senhor, o santuário da semana. Nós não o profanamos, tornando-o um dia de trabalho, um dia de puro entretenimento mundano? Ele é, hoje, profundamente esquecido. Os dias se sucedem um ao outro, de maneira semelhante.
Devemos ouvir a palavra do profeta que nos responsabiliza por “violar o santuário”. Devemos nos permitir reaprender a adorar em espírito e verdade. Muitos padres descobriram a celebração sem a presença do povo. Eles experimentaram, assim, que a liturgia é primariamente e acima de tudo “a adoração da majestade divina”, nas palavras do Concílio Vaticano II (SC 33). Não é fundamentalmente um ensinamento ou um exercício missionário. Ou, antes, torna-se verdadeiramente missionário apenas na medida em que é inteiramente ordenado para “a perfeita glorificação de Deus” (SC 5).
Ao celebrar sozinhos, os sacerdotes não tinham mais o povo cristão diante de si; então, perceberam que a celebração da missa ainda é dirigida a Deus Uno e Trino. Eles voltaram seu olhar para o Oriente, porque “é do Oriente que a redenção vem. É daí que vem o homem cujo nome é Oriente, que se tornou um mediador entre Deus e os homens. Por isso, você é convidado a olhar sempre para o Oriente, onde o Sol da Justiça nasce para você, onde a luz sempre aparece para você”, diz Orígenes em uma homilia sobre o livro de Levítico. A missa não é um longo discurso dirigido ao povo, mas um louvor e uma súplica dirigidas a Deus.
A mentalidade ocidental contemporânea, moldada pela técnica e enaltecida pela mídia, algumas vezes quis fazer da liturgia um trabalho educacional eficaz e lucrativo. Nesse espírito, temos procurado tornar as celebrações mais amigáveis e atraentes. Os atores litúrgicos, incentivados por motivações pastorais, muitas vezes queriam fazer um trabalho educacional, introduzindo elementos seculares ou espetaculares nas celebrações. Não vimos testemunhos, encenações e outros aplausos florescerem? Assim, ao acreditar que favorecemos a participação dos fiéis, na verdade reduzimos a liturgia a um jogo humano. Existe um risco real de não deixar lugar para Deus em nossas celebrações. Estamos sujeitos à mesma tentação dos hebreus no deserto. Eles procuraram criar um culto à sua medida humana, porém não podemos nos esquecer de que terminaram prostrados diante do ídolo do bezerro de ouro, que eles mesmos haviam feito para si.
Devemos tomar cuidado: a multiplicação de missas filmadas e transmitidas poderia acentuar essa lógica do espetáculo, essa busca pelas emoções humanas. O Papa Francisco exortou fortemente os padres a não se tornarem homens do espetáculo, mestres do show. Deus se encarnou para que o mundo pudesse ter vida: Deus não veio em nossa carne pelo prazer de nos impressionar ou fazer um show, mas, ao contrário, para compartilhar conosco a plenitude de sua vida. Jesus, que é o Filho do Deus vivo (Mt 16,16) e a quem o Pai entregou para possuir a vida em si mesmo (Jo 5,26), não veio apenas para apaziguar a ira de seu Pai ou pagar qualquer dívida. Ele veio para dar a vida, e vida em abundância. E ele nos dá essa plenitude da vida ao morrer na cruz. É por isso que, no momento em que o padre, em verdadeira identificação com Cristo e com humildade, celebra a Santa Missa, deve poder dizer: “Estou crucificado com Cristo. Eu vivo, mas não sou mais eu quem vivo, é Cristo que vive em mim ”(Gal 2,19-20). Ele deve desaparecer por trás de Jesus e deixar que Cristo esteja em contato direto com o povo cristão. O sacerdote deve, portanto, tornar-se um instrumento que permita a Cristo brilhar. Ele não precisa buscar a piedade da assembleia, encarando-a como seu principal interlocutor. Entrar no espírito do Concílio [Vaticano II] supõe, pelo contrário, afastar-se, deixar de ser o ponto focal. A atenção de todos deve se voltar para Cristo, para a cruz, o verdadeiro centro de todo culto cristão. Trata-se de deixar Cristo nos levar e nos associar ao seu sacrifício. A participação no culto litúrgico deve ser entendida como uma graça de Cristo “que se une à Igreja” (SC 7). É ele quem tem iniciativa e primazia. “A Igreja o invoca como seu Senhor e por meio dele é que adora o Pai Eterno” (SC 7).
Da mesma forma, deve-se tomar cuidado com a lógica da eficiência gerada pelo uso da internet. É costume julgar as publicações de acordo com o número de “visualizações” que elas geram. Isso induz à busca pelo inesperado, pela emoção e pela surpresa.
O culto litúrgico é estranho a essa escala de valores. A liturgia realmente nos coloca na presença da transcendência divina. Participar de verdade significa renovar em nós esse “assombro” que São João Paulo II tinha em alta estima (Ecclesia de Eucharistia, 6). Esse assombro sagrado, esse temor alegre, requer nosso silêncio diante da majestade divina. Muitas vezes esquecemos que o silêncio sagrado é um dos meios que o Concílio [Vaticano II] indica para incentivar a participação. A participação ativa na obra de Cristo supõe, portanto, abandonar o mundo secular e entrar na “ação sagrada por excelência” (SC 7). Às vezes fingimos, com certa arrogância, permanecer no ser humano para entrar no divino. Pelo contrário, temos experimentado nas últimas semanas que, para encontrar Deus, era útil deixar nossas casas e ir à sua casa, sua morada sagrada: a Igreja.
A liturgia é uma realidade fundamentalmente mística e contemplativa e, portanto, está além do alcance de nossa ação humana; assim, a participação em seu mistério é uma graça de Deus.
Por fim, gostaria de enfatizar a realidade sagrada entre todos: a Santa Eucaristia. A perda da Comunhão tem sido um sofrimento profundo para muitos fiéis. Sei disso e quero expressar-lhes minha profunda compaixão. Seu sofrimento é proporcional ao seu desejo. Acreditemos: Deus não deixará insatisfeito esse desejo por Ele. Também deve ser lembrado que nenhum sacerdote deve se sentir impedido de atender Confissão e dar Comunhão aos fiéis na igreja ou nas casas, com as necessárias precauções de saúde. A situação da escassez eucarística, porém, pode nos levar a uma consciência salutar. Não esquecemos o caráter sagrado da Eucaristia? Ouvimos histórias de sacrilégios de tirar o fôlego: padres que embrulham hóstias consagradas em sacos de plástico ou papel, ou que permitem que os fiéis usem livremente as hóstias consagradas e as levem para casa, ou até mesmo outros que distribuem a Santa Comunhão, observando a distância adequada, e usando, por exemplo, pinças para evitar o contágio. A que distância estamos de Jesus que se aproximou dos leprosos e, estendendo as mãos, tocou-os para curá-los, ou do padre Damião, que dedicou sua vida aos leprosos de Molokai, no Havaí? Esse modo de tratar Jesus como um objeto sem valor é uma profanação da Eucaristia. Muitas vezes não a consideramos nossa propriedade? Muitas vezes nos expressamos por meio de hábitos e rotinas, sem preparação ou ação de graças. A Comunhão não é um direito, é uma graça que Deus nos oferece. Este tempo nos lembra que devemos “tremer” de gratidão e cair de joelhos diante da Santa Comunhão. Gostaria aqui de recordar as palavras de Bento XVI:
“Num passado recente, percebemos um certo mal-entendido na mensagem autêntica da Sagrada Escritura. A novidade do culto cristão foi influenciada por uma certa mentalidade secularizada dos anos 1960 e 1970. É verdade, e isso ainda permanece válido, que o centro de culto não esteja mais em rituais e sacrifícios antigos, mas no próprio Cristo, em sua pessoa, em sua vida, em seu mistério pascal. E, no entanto, não devemos deduzir dessa novidade fundamental que o sagrado não existe mais, mas que ele encontrou sua realização em Jesus Cristo, o amor divino encarnado (…). Ele não aboliu o sagrado, mas o levou a seu pleno cumprimento, ao inaugurar um novo culto, que é totalmente espiritual, mas que, enquanto estivermos inseridos no tempo, ainda usa sinais e ritos, que só desaparecerão no final, na Jerusalém celestial, onde não haverá mais templos (cf. Ap 21,22). Graças a Cristo, a sacralidade é mais verdadeira, mais intensa e, como acontece com os mandamentos, também mais exigente! (Corpus Christi, 7 de junho de 2012).
Quanto a nós, sacerdotes, será que sempre tivemos a consciência de que somos reservados, consagrados para ser servos, ministros do culto ao Deus Altíssimo? Como afirma o profeta Ezequiel, vivemos sem ter nesta terra outra herança que não seja o próprio Deus? Pelo contrário, muitas vezes somos mundanos, desejamos popularidade e sucesso, de acordo com os critérios do mundo. Nós também profanamos o santuário do Senhor. Entre nós, alguns chegaram a ponto de profanar este templo sagrado da presença de Deus: o coração e o corpo dos mais fracos, das crianças. Nós também devemos pedir perdão e fazer penitência e reparação.
Uma sociedade que perde o sentido do sagrado corre o risco de uma regressão à barbárie. O senso de grandeza de Deus é o coração de toda civilização. De fato, se todo homem merece respeito, é fundamentalmente porque ele é criado à imagem e semelhança de Deus. A dignidade do homem é um eco da transcendência de Deus. Se não mais “tremermos” de alegria, com um alegre e reverente temor diante da majestade divina, como reconheceremos em cada pessoa um mistério digno de respeito? Se não queremos mais nos ajoelhar humildemente, como sinal de amor filial diante de Deus, como poderíamos nos ajoelhar diante da eminente dignidade de toda pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus? Se não aceitarmos mais nos ajoelhar respeitosamente e em adoração diante da presença mais humilde, mais fraca e insignificante, mas mais real e viva que é a Santa Eucaristia, como hesitaríamos em matar o nascituro, o mais fraco, o mais frágil e legalizar o aborto, que é um crime horrível e bárbaro? Porque agora conhecemos a verdade, graças ao progresso da genética fundamental, que a estabeleceu cientificamente de maneira definitiva e irrefutável: o feto humano é, desde o momento de sua concepção, um ser totalmente humano. Se perdermos o senso de adorar a Deus, os relacionamentos humanos serão coloridos com vulgaridade e agressividade. Quanto mais deferência tivermos para com Deus em nossas igrejas, mais seremos sensíveis e corteses com nossos irmãos, pelo resto de nossas vidas.
Os pastores devem, portanto, assim que as condições sanitárias o permitirem, oferecer ao povo cristão a oportunidade de adorar juntos e solenemente a majestade divina no Santíssimo Sacramento. O Papa Francisco recentemente nos deu o exemplo disso na Praça São Pedro. Será necessário louvar, dar graças por meio de procissões públicas. Será uma oportunidade para todo o povo se tornar um corpo e experimentar que a comunidade cristã nasce do altar do sacrifício eucarístico. Encorajo, o quanto antes, as manifestações de piedade popular, como o culto das relíquias dos santos padroeiros das cidades. É necessário que o povo de Deus manifeste ritual e publicamente sua fé. Bento XVI disse:
“O sagrado tem uma função educacional e seu desaparecimento empobrece inevitavelmente a cultura, especialmente a formação das novas gerações. Se, por exemplo, em nome de uma fé secularizada que não precisa mais de sinais sagrados, abolíssemos a procissão de Corpus Christi na cidade, o perfil espiritual de Roma seria “achatado” e nossa consciência pessoal e comunitária em relação a eles permaneceria enfraquecida. Ou então, pensemos em uma mãe e um pai que, em nome da fé dessacralizada, privariam seus filhos de qualquer ritual religioso: eles acabariam deixando o campo aberto a tantos substitutos presentes na sociedade de consumo, outros ritos e outros sinais, que poderiam mais facilmente se tornar ídolos. Deus, nosso Pai, não fez isso com a humanidade ”(Corpus Christi, 2012).
Esses eventos serão uma oportunidade para enfatizar o valor da súplica, da intercessão, da reparação de ofensas contra Deus e do sentido da propiciação do culto cristão. Seria bom, onde possível, que as procissões de súplicas, incluindo as ladainhas dos santos, fossem retomadas.
Finalmente, gostaria de enfatizar a oração pelos falecidos. Em muitos países, os falecidos tiveram que ser enterrados sem que os funerais apropriados fossem celebrados. Devemos reparar essa injustiça. Além disso, gostaria de lamentar algumas práticas recentes aqui, que favorecem o desenvolvimento de novas formas de disposição de restos mortais, incluindo a hidrólise alcalina, em que o corpo do falecido é colocado em um cilindro de metal e dissolvido em um banho químico, que deixa apenas alguns fragmentos ósseos, semelhantes aos resultantes da cremação. Os resíduos são então descartados no esgoto.
O processo de hidrólise alcalina não demonstra respeito para com a dignidade do corpo humano, um respeito que corresponde àquilo que a lei da Igreja proclama. Mesmo que não tenhamos fé, no entanto, é absolutamente desumano, cruel e desrespeitoso tratar assim as pessoas que amamos e que muito nos amaram.“Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo”. “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?”(1 Cor 3, 16-17; 6, 19). Pela piedade filial, devemos cercar todos os mortos com uma oração ardente de intercessão pela salvação de suas almas. Encorajo os pastores a celebrar missas solenes pelos falecidos. Nesses casos, é adequado que, de acordo com os costumes de cada local, a missa seja seguida por uma absolvição celebrada na presença de uma representação simbólica do falecido (Tumulum, catafalque) e uma procissão em direção ao cemitério, com a bênção das sepulturas. Assim, a Igreja, como uma verdadeira mãe, cuidará de todos os seus filhos, vivos e falecidos, e apresentará a Deus, em nome de todos, um culto de adoração, ação de graças, propiciação e intercessão.
De fato, “a Tradição recebida dos Apóstolos inclui tudo o que contribui para conduzir a vida do povo de Deus de maneira santa e aumentar sua fé; assim, a Igreja perpetua em sua doutrina, vida e adoração, e transmite a cada geração tudo o que é ela mesma e tudo em que acredita”, diz o Concílio Vaticano II (Dei Verbum, 8). O culto divino é o grande tesouro da Igreja. Ela não pode mantê-lo oculto e convida todos os homens a participar dele, porque sabe que nele “está reunida toda oração humana, todo desejo humano, toda verdadeira devoção humana, a verdadeira busca de Deus, que é encontrada e finalmente realizada em Cristo (Bento XVI, reunião com o clero de Roma, 2 de março de 2010).
Reitero minha profunda compaixão a todos nestes tempos de provações. Renovo meu encorajamento fraterno aos sacerdotes que se dedicam de corpo e alma e sofrem por não poderem fazer mais pelo rebanho. Juntos, percebemos que a Comunhão dos Santos não é uma palavra vazia. Juntos, em breve, prestaremos novamente, aos olhos de todos, o culto que retorna a Deus e que nos torna seu povo.
Cardeal Robert Sarah
Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos
(Tradução: Pe. José Ferreira Filho)