Em 2009, o artista sacro Cláudio Pastro (1948-2016) realizou uma ampla reforma no espaço celebrativo da Igreja São José de Anchieta, do Pateo do Collegio, em São Paulo. Ao longo de sua história, o edifício havia passado por várias mutações e reedificações, chegando até mesmo a perder todas as suas funções religiosas. Sendo assim, a Companhia de Jesus solicitou a Pastro uma intervenção segundo os ditames do Concílio Vaticano II, de maneira a evangelizar a cultura do nosso tempo em continuidade ao trabalho iniciado pelos primeiros jesuítas que chegaram ao país e à cidade de São Paulo no século XVI.
A reforma da igreja do Pateo do Collegio pode ser examinada à luz da carta apostólica “Desiderio Desideravi, sobre a formação litúrgica do povo de Deus” (DD), do Papa Francisco, de 2022. O ambiente interno foi adaptado segundo uma “compreensão teológica da Liturgia e da sua importância na vida da Igreja”, ou seja, uma intervenção que promove a participação plena, consciente, ativa e frutuosa na celebração, “primeira e indispensável fonte na qual os fiéis podem haurir o genuíno espírito cristão” (DD 16).
Do altar ao ambão. O amplo espaço celebrativo da igreja foi estruturado para permitir a total visibilidade das partes essenciais do rito, desde o primeiro até o último beijo dado no altar de pedra pelo sacerdote. Aliás, de pedra [granito rosa], são também a sédia, o ambão e a pia batismal. Os braços da cruz formada por esses quatro elementos são percorridos pelo sacerdote durante a celebração litúrgica: da entrada ao presbitério (braço vertical) e do ambão à pia batismal (braço horizontal). É um espaço pedagógico, que corrobora o ritmo da celebração, em que cada elemento cumpre sua função.
O altar é o “centro da ação de graças que se realiza pela eucaristia”, segundo a Instrução Geral do Missal Romano (IGMR 259). Os católicos orientais lembram que é o coração do corpo místico, lugar que bombeia o sangue e alimenta toda a comunidade cristã. Santo Ambrósio de Milão afirma que o próprio Cristo é o altar da Igreja; por essa razão o altar é de material nobre, sólido e fixo. A justificativa para o uso desse material pode ser encontrada nos Atos dos Apóstolos, só para citar um exemplo entre vários existentes nas Sagradas Escrituras: “É ele a pedra rejeitada por vós, os construtores, mas que se tornou a pedra angular” (cf. At 4,11). O altar também é a mesa do banquete, lugar da comunhão do corpo e do sangue de Cristo. Na carta apostólica (DD, 5), o Papa Francisco reitera o convite do autor do Apocalipse: “Todos são convidados para o banquete das núpcias do Cordeiro” (Ap 19,9). É por esse motivo que encontramos a imagem desse animal logo acima do altar na Igreja do Apóstolo do Brasil. Ele é a prefiguração, no Antigo Testamento, do sacrifício atualizado por Cristo. O Cordeiro traz a síntese entre o Antigo e Novo Testamento. Cristo é sacerdote, altar e cordeiro.
Para o momento da Liturgia da Palavra há um espaço próprio, elevado, único, que é o ambão, local do anúncio da Ressurreição. É iluminado pelo círio que foi aceso na noite pascal, a principal celebração do calendário cristão. Atrás está o prólogo de João (Jo 1,1-18) que proclama a encarnação de Cristo na história, o Logos, ou seja, a Palavra se fez carne. Nas Sagradas Escrituras, os lugares das grandes revelações acontecem nas montanhas, local privilegiado de epifania. Aqui, os ministros e o sacerdote sobem para anunciar a Boa Nova do Reino de Deus de um lugar visível a todos. “Ressurreição não é um conceito, uma ideia, um pensamento; se o Ressuscitado fosse para nós a recordação da recordação de outros, ainda que com autoridade, como os Apóstolos, se não nos fosse dada também a nós a possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele, seria como declarar esgotada a novidade do Verbo feito carne” (DD 10).
A fonte batismal forma o braço horizontal da cruz juntamente com o ambão. Por seu tamanho, favorece um rito de imersão, sobretudo de crianças. O batismo é a porta de entrada na Igreja. Para o cristão é o lugar do verdadeiro nascimento e de conversão iniciada no rito da Palavra. O sacramento do batismo “não é um gesto mágico […]. Em perfeita continuidade com a encarnação, é-nos dada a possibilidade, por força da presença e da ação do Espírito Santo, de morrer e ressuscitar em Cristo” (DD 12).
O lugar da cruz. Como se vê, todo o espaço celebrativo foi preparado em função do anúncio do Mistério Pascal. O que gera, continuamente, o cristão é a participação na celebração dominical que “oferece à comunidade a possibilidade de ser formada pela Eucaristia” (DD 65) e pela Palavra do Ressuscitado. Há, porém, um aspecto que nos chama a atenção.
Ao contrário do que Pastro elaborou para vários outros espaços celebrativos nos quais atuou, seja em reformas ou projetos originais, a Igreja do Pateo do Collegio recebeu um Cristo crucificado na parede do presbitério. Nesse lugar em que, habitualmente, um programa iconográfico pede a imagem do Pantocrator, “Aquele que tudo rege”, ou alguma cena evangélica relativa à ressurreição, encontramos um crucifixo do século XVI, pertencente a um dos museus dos jesuítas. Além da valorização da peça de um acervo importante, a leitura pessoal que faço sobre essa colocação incomum tem ligação com minhas pesquisas sobre o acervo em papel deixado pelo artista.
Com espanto e admiração, encontrei um número bastante relevante de Cristos crucificados entre os desenhos. O espaço particular de criação no qual me vi envolvida confirmou que todo artista tem seu lado privativo, seu “canteiro de obras”, em que brotam não só projetos a serem executados, mas, como no caso específico de Pastro, uma profunda meditação sobre a dor e a força da cruz. Muitos desses desenhos não saíram de sua condição de registros a lápis, mas são uma oração visual.
A cruz é via e não termo. A morte não é o fim! Para além da composição visual que se propõe recuperar uma tradição oriunda do Barroco, podemos fazer uma leitura escatológica, identificando nos azulejos dourados que compõem o painel atrás da cruz um grande sinal da ressurreição, do Mistério Pascal, no qual a vida cristã se fundamenta e vive. Com a morte de Cristo, o véu do santuário rasgou-se. Ele é a cabeça e nós, cristãos, seus membros.
O espaço celebrativo assim ordenado cumpre a nobre função de evangelizar, não somente com sua arquitetura, mas com elementos visuais que mostram, dignamente, os valores do Evangelho. Esse foi o cerne do Concílio Vaticano II, do qual Cláudio Pastro foi fruto e, por essa razão, a reforma litúrgica na Igreja São José de Anchieta indica, por meio da arte sacra, importantes proposições a respeito do diálogo e abertura da Igreja ao mundo contemporâneo. A proposta também se atualiza com o tema proposto pelo Papa Francisco para o Sínodo 2021-2024: “Para uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação e Missão”. O artista foi um missionário na medida em que incorporou para si a função do fossore, uma espécie de artesão que atuava nas catacumbas, cuja missão principal era elevar as almas e indicar o caminho de Deus.
*Este artigo retoma observações do artigo acadêmico publicado pela autora, em coautoria com o Prof. Dr. Márcio Luiz Fernandes, publicado pela Revista de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – USP, Pateo do Collegio, lugar de nascimento e memória: a reforma litúrgica realizada por Claudio Pastro. Estudos Avançados, 35(103), 309-330.