Atenção aos pobres, às famílias e às estruturas da Arquidiocese

Em maio de 1998, às vésperas de tomar posse com 6oArcebispo de São Paulo, Dom Cláudio Hummes concedeu entrevista ao O SÃO PAULO, falando de suas expectativas iniciais e preocupações ao assumir o pastoreio da Arquidiocese de São Paulo.

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Reproduzimos a seguir os principais trechos da entrevista:

O senhor já declarou que uma de suas prioridades na Arquidiocese de São Paulo será o combate à pobreza. O que isso significa?

Dom Claudio Hummes – A Igreja tem primordialmente uma missão religiosa, ou seja, levar as pessoas, as comunidades, as culturas, os povos a aderir a Jesus Cristo. Porém, quando a pessoa adere a Jesus Cristo, a consequência imediata é a preocupação com os irmãos. Jesus Cristo nos ensina a fraternidade, que leva necessariamente a combater o individualismo, o egoísmo, a ganância. A Igreja não deve somente trazer soluções técnicas para a pobreza no mundo, mas conscientizar a sociedade e, por meio de sua prática, deve dar exemplo de solidariedade aos pobres.

Mas há muitas formas de manifestar essa solidariedade…

Não se discute se devemos ou não ser solidários com os pobres, porque isso todo cristão, na medida em que é sincero cristão, acaba assumindo. Há divergências em relação aos métodos, qual é a melhor forma de solidarizar e fazer alguma coisa pelos pobres. Facilmente entram ideologias no meio. Na prática dos leigos isso é fácil, porque o leigo vive no meio do mundo. Mas a Igreja, como instituição, não pode se envolver com programas políticos muito concretos.

Qual a mensagem do senhor às famílias, que hoje enfrentam diferentes problemas?

Entre as prioridades das pastorais, colocamos a família. Isso também vem sendo consenso dentro da Igreja. Quando se fala em questões como o aborto e outras em que a Igreja é restritiva, é muito importante esclarecer o seguinte: quando restringe ou proíbe, é para defender um valor do qual está convencida. No caso do aborto, trata-se de defender o valor da vida humana, porque se você pode matar um ser humano no início da vida, qual argumento restará para não cometer a mesma violência depois?

A solidariedade cristã se aplica também às famílias desestruturadas?

Sim. Quero voltar à questão do aborto. Quando a mulher sofre violência, engravida em consequência dessa violência, é claro que ela está sofrendo um trauma muito grade. O que essa mulher precisa é de muita solidariedade, apoio, para que consiga superar o seu trauma. Isso leva tempo, sobretudo para que ela não rejeite seu filho, mas o deixe nascer. E só no momento em que essa mulher conseguir perdoar, ela vai voltar a ser feliz. Quando esse filho nascer, se ela não tiver coragem ou condições psicológicas de acolhê-lo – e em geral ela acolhe –, mas se de fato não conseguir, então a sociedade tem de assumir essa criança.

senhor pensa em mudar a estrutura das regiões episcopais da Arquidiocese?

Inicialmente tudo continuará. As regiões episcopais e os bispos auxiliares estão aí. Normalmente não há mudanças, pelo menos por iniciativa do bispo que toma posse. Por mim, vamos continuar trabalhando com essa estrutura. Pode ser que, com o passar do tempo, haja a necessidade de mudança nesta estrutura que existe há tantos anos. Fortaleza [onde era Arcebispo até então] também tem seis regiões episcopais, territoriais, só que os vigários episcopais são padres, aqui são bispos, somente uma região (Belém) tem um padre. O ideal seria que cada região tivesse um bispo à frente.

O senhor tem uma sólida formação em ecumenismo. Como vai se dar o diálogo com outras Igrejas e religiões?

O ecumenismo é um dos grandes ideais da Igreja, desde o Concílio Vaticano II. O Papa Bento XVI está muito empenhado nisso, ele vê a passagem do milênio como um momento de graça, em que se deveria avançar no diálogo ecumênico, em direção à unidade. E eu quero dar força ao diálogo judeu-cristão. Eu sou membro do Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes, ou seja, outras religiões e culturas.

Quais são os desafios nessa área?

Eu acho que é um desafio para nós. Em um mundo pluralista como o da sociedade pós-moderna, exige-se muito diálogo. E nós, às vezes, não estamos nem preparados nem convencidos da importância do diálogo. Acho que sou muitas vezes omisso, mas acho que temos de ser estimulados. E não só o diálogo com as religiões, mas com a sociedade, com as culturas. Em uma megalópole como São Paulo, como dialogar com a sociedade?

Quando saiu sua nomeação para a Arquidiocese, disseram que o senhor tinha mudado. O senhor mudou?

Sim, mudei. São 18 anos de história do mundo e do Brasil. É claro que hoje não posso simplesmente repetir as mesmas análises de 1970, não posso fazer os mesmos discursos e propostas que na época se ofereciam. O mundo mudou, o Brasil mudou, a realidade mudou, e eu pretendo caminhar com a História, não pretendo ficar atrás perdendo o trem da História. É claro que todos somos limitados, omissos, erramos, e isso também naquela época.

Como analisa a vocação dos leigos na Igreja?

O leigo tem uma vocação que é viver o Evangelho no meio do mundo, sobretudo na sociedade. Mas a forma de viver o Evangelho, seja na sua espiritualidade, seja na sua prática, é diferenciado. Se eu reconheço que os leigos têm autonomia dentro da comunhão, não posso querer fazer uma massa monolítica. 

E seus planos em relação à comunicação?

Hoje, no mundo moderno, a comunicação é muito importante e tem que ser feita com cuidado, qualidade e profissionalismo. Se você quiser chegar a todas as familias, todos os dias e a todas as horas, tem que ter seus veículos. Senão, o que acontece? Nós temos um contato com nosso povo aos domingos, durante uma hora. O restante do domingo, a quem esse povo escuta e vê? Silvio Santos, Faustão. Como a Igreja pode enfrentar isso se tem apenas uma hora por semana de contato com seu povo? Aí entra a importância da Rede Vida, dos rádios, dos jornais.

Dom Cláudio, como se sente um gaúcho que sai de Fortaleza e volta para São Paulo?

Bom, quando fui para Fortaleza, disse: ‘Ainda vou chegar até o Norte e pedir um diploma de brasilidade’. Nasci no Rio Grande do Sul, estive 21 anos em Santo André (SP) e 21 meses em Fortaleza. Para mim, isso não é problema. Hoje, mais e mais somos cidadãos do mundo. Eu não tomo mais chimarrão, porque falta companhia, a roda gaúcha. Tenho muito amor ao Rio Grande do Sul, tenho minha família lá. Da mesma forma, tenho um grande amor ao Ceará, cujo povo é espetacular, acolhedor, fraterno. Fui muito feliz lá e sei que vou gostar de São Paulo.

Qual é seu grande sonho?

Ser um bispo que possa levar esse povo em direção a Jesus Cristo. Eu não tenho nada pré-fabricado na cabeça. Apenas isso: para mim é fundamental a evangelização, pois o Papa diz que a missão primordial da Igreja é religiosa. Deve-se levar as pessoas a Jesus Cristo, tendo como consequência o trabalho social. Isso orienta todo meu trabalho.

Tenho claro que devo chegar a São Paulo e primeiro ouvir, ouvir muito. Mesmo que eu já conheça um pouco de São Paulo, pois estive 21 anos em Santo André, eu não conheço a Igreja de São Paulo por dentro, não conheço as lideranças, não conheço muitas metodologias.

A primeira coisa é conhecer por dentro a Igreja e a cidade de São Paulo. O que é, quais são as grades aspirações, onde está a alma desta cidade, que não é somente a soma das pessoas e instituições, mas os propósitos, objetivos, sem cultura.

Será necessário conhecer tudo isso. Mas é claro que não se pode ficar dois ou três anos estudando, a vida continua e a gente tem de tomar decisões.

Eu estou com o coração muito aberto, isso é mais do que claro. Mas, por outro lado, eu vou ser eu mesmo, não pretendo imitar nem repetir ninguém. Nenhum bispo repete outro, cada um faz seu pedaço de história e de alguma forma eu vou imprimir isso na Igreja de São Paulo.

A Igreja de São Paulo é uma grande Igreja, que tem uma grande história. Eu quero entrar e espero que me acolham, que me entendam e que me perdoem quando não acertar.”

(Entrevista concedida à jornalista Bernadete Toneto)

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