
Após 46 anos de serviço à magistratura paulista, o desembargador Ricardo Henry Marques Dip aposentou-se do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 14 de novembro. Atual presidente da União Internacional dos Juristas Católicos (UIJC), ele é reconhecido como um dos principais estudiosos do Direito Natural.
Nesta entrevista ao O SÃO PAULO, o magistrado refletiu sobre a escassa presença do Direito Natural nos tribunais e a urgência de retomá-lo como fundamento frente aos dilemas éticos atuais. Comentou ainda como a fé iluminou sua busca pela justiça sem comprometer a imparcialidade.
O SÃO PAULO – Ao encerrar 46 anos de carreira, como o senhor avalia a evolução da magistratura e o que mais o marcou neste percurso?
Ricardo Dip – Ao largo deste pouco menos de meio século, a Magistratura nacional teve suas grandezas e suas misérias. Para ficar em um só exemplo, não se pode recusar o fato de o Judiciário se ter beneficiado da tecnologia, ensejando-se maior celeridade na prestação jurisdicional (sabe-se bem que uma justiça tarda é já de algum modo injusta).
Em contrapartida, essa mesma técnica não deixou de degenerar em alguns aspectos. Não em razão de uma culpa da própria técnica, por evidente, mas do ânimo com que se adotou, prejudicando o equilíbrio do binômio celeridade-ponderação. Ganhamos em quantidade, mas perdemos, frequentemente, em qualidade. Castán Toberñas, que foi presidente da Suprema Corte da Espanha por mais de 20 anos, já havia dito isto em meados do século XX: o problema dos tribunais era a perda da diagnose dos fatos. Pois essa perda foi incrementada com o atual excesso da técnica.
Talvez seja melhor observar que, por trás desse problema, há uma grave distorção teórica. É que, pese embora a derrocada doutrinal do positivismo legalista, nossa Magistratura perseverou implicitamente positivista, e ao normativismo terminou por acrescentar um outro modo de positivismo, o judicial. Não é esta a oportunidade para maiores considerações, mas deixemos assinalado, ao menos, o desastre que foi o nominalismo do qual resultaram linhas destrutivas do realismo temperado e do processo discursivo para a descoberta da coisa justa nas ações singulares.
De que forma a fé cristã orientou atuação judicial do senhor sem comprometer a imparcialidade?

Na sessão de minha despedida da Magistratura paulista, revelei publicamente que, dias antes de empossar-me no cargo de Juiz substituto, em 1979, dirigi-me à Igreja de Santo Antônio, na Praça do Patriarca, aqui no centro de São Paulo. Ali, ajoelhado, implorei a Nossa Senhora do Rosário, acqueductus omnium gratiarum, que custodiasse minha carreira judicial. Ao mesmo tempo, firmei a intenção de sempre buscar ser justo, buscar a descoberta da coisa justa em cada caso que julgasse.
Logo, porém, dei-me conta de um problema: querer ser justo não é saber ser justo. Não me bastaria o hábito moral da justiça, ou seja, a vontade permanente e constante de dar a cada um o que é seu, porque eu necessitava de outra virtude, que fosse de caráter formalmente intelectual. Por isso, tratei de educar-me no hábito da prudência e, sobretudo, no de suas anexas (sínese e gnome).
Vali-me, então, da experiência pessoal (com outra palavra: da solércia) e do ensinamento dos mais experienciados e mais sábios, não só mediante os conselhos pessoais e a consideração dos exemplos de sua conduta, mas também por meio da leitura de boas obras de moral, filosófica e teológica (por exemplo, Zalba, Prümmer, Cathrein, mais recentemente Santo Afonso Maria de Ligório e Royo Marín), dentre elas, especialmente, os tratados da lei natural e da ética da Suma de teologia de Santo Tomás de Aquino.
Terei acertado e terei errado nos julgamentos: tenha-se em conta que as conclusões dos discursos práticos são, no máximo, prováveis, mais ou menos prováveis. Tenha-se mais ainda em conta a vulneração que há em todos nós em vista do pecado original.
Há algo, todavia, que quero assinalar de modo sublinhado: nunca julguei caso algum com apoio em argumentos de teologia ou de religião. Quando muito, o que eu considerava, in mente, eram os limites negativos que as verdades da teologia e da legítima religião me ensinavam. Mas, insisto nisto: não me vali em vez alguma de argumentos teológicos ou religiosos para os juízos jurídicos. Bastava-me a consideração, o quanto possível, pelo sensus naturalis, de que, como escreveu o pensador holandês von Walhendorf, “o direito é o reflexo da natureza das coisas”. E assim nunca pensei, em nenhum julgamento no Tribunal, em criar o direito, mas só em descobrir, em cada caso, a coisa justa que já existia na realidade objetiva.
Que impacto sua atuação do senhor nas áreas de Direito Público, Notarial e Registral trouxe para o desenvolvimento dessas disciplinas no TJ-SP?
Penso que algumas de minhas dedicações no campo do direito notarial e no do registral ecoaram no Tribunal de Justiça de São Paulo. Talvez mais timidamente do que eu almejava. Posso destacar, por brevidade de causa, três pontos a esse respeito: (1) o do caráter prudencial das qualificações, com a caracterização do “cavere” na função notarial, resultado, sobretudo, de meu estudo “Prudência notarial”; (2) o do conceito mais rigoroso e suscetível de adequada divisão acerca da especialidade registral imobiliária, com larga aplicação, desde os fins dos anos 80, quanto ao parcelamento do solo; (3) o da defesa da latinidade do notariado brasileiro (contra alguma tendência de sua derrapagem administrativista): sempre afirmei o caráter de agente público do notário e do registrador, negando, firmemente, um seu suposto caráter estatal). Mas talvez seja mais importante aqui salientar o que bem pode nomear-se de “aristotelização” ou, talvez melhor, “tomastivização” da doutrina do notariado e dos registros, com a adoção, a seu respeito, em meus livros e artigos esparsos, de uma metodologia expositiva e explicativa confessadamente aristotélico-tomista.
Como percebeu, ao longo dos anos, a presença – ou ausência – do Direito Natural no cotidiano dos tribunais?
Ouvi, neste quase meio século de minha carreira, em julgamentos do meu estimado Tribunal de Justiça, poucas referências ao direito natural, e algumas que ouvi preferia não ter ouvido: direito natural intuitivo, direito natural positivista, direito natural ateu etc.
Por que os juristas devem retomar os fundamentos do Direito Natural no enfrentamento dos dilemas éticos atuais?
Onde ancorar por derradeiro as conclusões morais (o que inclui as jurídicas) acerca disso que se tem chamado de “dilemas éticos”? Não se trata aqui, em verdade, de dilemas; é um lapso expressar mal a consideração sobre o bem ou o mal do aborto, da eutanásia, do auxílio ao suicídio, das poligamias sucessivas etc., etc.
Onde vamos alicerçar, por fim, a conclusão de nossos argumentos nessa matéria? Nas constituições? Nas opiniões públicas voláteis? Nos costumes? Não, não. Temos de fundamentar essas conclusões em regras universais e invariáveis. Em outras palavras, na lei natural. E a lei natural é a mesma lei eterna, enquanto intimada aos homens. E a lei eterna é a Sabedoria de Deus. Deus é o fundamento último do Direito.
Que orientação considera essencial para novas gerações de juristas que buscam unir competência técnica e compromisso com a justiça?
Seria necessário distinguir, para responder a esta interessante indagação, não só os vários tipos de saber jurídico (prudencial, comum, filosófico, técnico, científico etc.), mas também os modos de exercício da determinação jurídica (postulare, iudicare, ministrare, respondere, cavere). Seria preciso um tratado metodológico para ensaiar a resposta. Mas vou dizer apenas uma coisa, conselho de um velho juiz: façam-se exames constantes de consciência. É o que sugiro. Doem, mas retificam. Humilham, mas subsidiam a melhora. Lembremo-nos disto: a graça de Deus clareia a inteligência e move retamente a vontade.
Que projetos ou interesses pessoais pretende cultivar nesta nova fase após a magistratura?
Enquanto Deus me permitir viver e preservar-me a capacidade intelectual, tratarei de escrever algumas linhas sobre a lei natural e uma iniciação à filosofia católica do direito. Continuarei ainda, Deus mediante, a escrever sobre o direito notarial e registral, bem como a vida acadêmica. De novidade, vem-me a disposição de responder a consultas.
Quero ler mais, quero bem mais dedicar-me à família e quero rezar muito mais.






