Do centro à periferia, capital paulista tem desafios em urbanização

Especialistas ouvidos pelo O SÃO PAULO fazem uma retomada da formação dos traços urbanísticos da cidade desde o início do século XX e analisam alternativas para a solução dos entraves na áreas de habitação e infraestrutura

Fotos: Luciney Martins/ O SÃO PAULO

Na cidade dos contrastes, cerca de 24 mil pessoas vivem nas ruas, enquanto há prédios vazios no Centro. Nas periferias, os casebres lado a lado sinalizam que muitos bairros surgiram sem planejamento, mas não raramente tais comunidades são vizinhas de conjuntos residenciais sofisticados, pensados em cada detalhe para o bem-estar de seus habitantes.

Um olhar para a história da Avenida Paulista ajuda a entender a dinâmica da urbanização da cidade: inaugurada em 1891, a via abrigava os casarões dos aristocratas do café, de grandes comerciantes e de chefes das indústrias, um reduto de tranquilidade. Em seus arredores, em casas mais simples, viviam outros trabalhadores, muitos deles imigrantes recém-chegados ao País. A partir da segunda metade do século XX, paulatinamente, os casarões deram lugar a edifícios, conjuntos comerciais e escritórios, e seus antigos habitantes foram buscar outros ares.

Em movimento

“A partir de meados do século XX, a cidade de São Paulo assiste à construção de novas centralidades, a começar pela Avenida Paulista, e à consequente desvalorização e popularização da região central, que passa a ser cada vez menos alvo de investimentos. Esse processo é sentido também nas regiões residenciais próximas ao Centro, como os Campos Elísios, que aos poucos vão sendo esvaziadas por uma elite que busca cada vez mais bairros planejados, como aqueles promovidos pela Companhia City, como Pacaembu e Jardim América”, recordou, em entrevista O SÃO PAULO, Vivian Barbour, advogada e mestra em Arquitetura e Urbanismo pela USP.

“Uma marca latente desse processo hoje em dia é a existência desses bairros, outrora afastados das regiões mais urbanizadas – num desejo de espelhar o conceito das cidades-jardim –, hoje em regiões bastante centrais e, no entanto, com pouquíssima densidade demográfica. Trata-se de um problema relevante, porque empurra a expansão urbana de forma horizontal – ou seja, em vez de maior adensamento em áreas já urbanizadas, são desbravadas novas terras nas franjas da cidade, as quais carecem de serviços e infraestrutura”, complementou Vivian.

É também nas áreas afastadas do Centro, especialmente a partir dos anos 1950, que os mais pobres passam a construir suas casas em pequenos loteamentos ou ocupações, sem a devida orientação técnica, em locais onde, geralmente, os serviços públicos de saneamento básico, eletrificação, pavimentação e transporte ainda não haviam chegado.

Por outro lado, em pontos da região central, nesse mesmo período, avançavam as construções de grandes edifícios residenciais e comerciais. “O que se fez no Centro foi testar formatos com maior adensamento da cidade. Eu daria como exemplo o Copan, que tem 1.160 apartamentos, lojas no térreo, restaurantes. Há vários símbolos desse adensamento e dessa verticalização, como a Avenida São Luiz e o Largo do Arouche”, afirma o jornalista Raul Juste Lores, autor do livro “São Paulo nas alturas: a revolução modernista da arquitetura e do mercado imobiliário nos anos 1950 e 1960”.

O que fazer com tantos prédios vazios?

Ao longo das décadas, porém, houve redução no número de moradores desses prédios, e hoje a cidade discute o que pode ser feito com essas edificações. Um dos caminhos comumente apontados é a revitalização da região central, discussão que sempre esbarra na temática da gentrificação: na área revitalizada, o custo de vida tende a aumentar e os mais pobres se verão forçados a deixar o local, enquanto aqueles com melhores condições financeiras passariam a viver na área restaurada em habitações de alto padrão.

“Algum tipo de gentrificação tem que ocorrer, porque, com tanto imóvel vazio, o valor do metro quadrado está muito depreciado, especialmente na área dos calçadões, tanto no Centro novo quanto no Centro velho. Valorizar significa que mais gente vai ocupar. O que é fundamental que aconteça é a atualização dos prédios vazios, sejam os comerciais, sejam os residenciais”, comenta Lores.  

Na avaliação da urbanista e arquiteta Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, as atuais políticas públicas tendem a eliminar os mais pobres do Centro: “A forma de intervenção na região dos Campos Elísos, da Cracolândia, é muito exemplar do não acolhimento, da não melhoria da condição de quem está lá, mas, sim, de resgatar o Centro para as classes médias. Não há uma ação para as pessoas que não têm teto, não têm casa e não têm outras opções de moradia”.

Vivian Barbour considera que o uso residencial da região central permitiria o melhor aproveitamento das estruturas já existentes. Ela lembra que a Prefeitura pode se valer do princípio constitucional da função social da propriedade para, por exemplo, notificar os proprietários de imóveis ociosos para que os parcelem, os edifiquem ou lhes efetivem o uso. “Caso não atenda à exigência, ficaria, então, sujeito ao IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] progressivo, culminando na desapropriação do imóvel.”

Já para os imóveis que estão vazios por questões burocráticas ou de registro, a advogada e urbanista aponta que é urgente que haja a adequação da regulamentação construtiva e de licenciamento, o que envolve o maior diálogo entre a Prefeitura, os Bombeiros e órgãos de preservação do patrimônio.

Especificamente sobre os imóveis tombados, Vivian defende a maior aplicação do instrumento de Transferência do Direito de Construir (TDC), que permite que o tombado aliene um potencial construtivo adicional para um terceiro interessado em construir acima do que lhe é permitido. O recurso recebido, necessariamente, será revertido para a preservação do imóvel tombado. “Com o apoio desses recursos, os custos de manutenção desses velhos imóveis podem diminuir. Como consequência, as taxas de condomínio podem ser menores, permitindo sua maior ocupação”, detalha.

Políticas públicas atuais

Em seu plano de governo nas eleições de 2020, o prefeito Bruno Covas se comprometeu a “ampliar investimentos em urbanização de favelas e requalificação de moradias precárias, com fortalecimento das comunidades locais”.

Em outubro de 2019, Covas sancionou a Lei 17.202, a Lei de Regularização de Edificações, com a meta de que até 750 mil famílias regularizassem a situação de suas residências ou estabelecimentos comerciais.

Para Raquel Rolnik, tal política pública não levará a uma regularização por completo: “Isso implicaria uma regularização urbanística para ter infraestrutura completa, uma regularização ambiental e a regularização fundiária, a da propriedade. Regularizar simplesmente a propriedade sem garantir condições urbanísticas é só perpetuar a situação”.

Vivian Barbour alerta que tal regularização deve sempre priorizar padrões mínimos de segurança e não prejudicar a totalidade do tecido urbano. “É necessário que haja um refinamento na política para que ela não se torne irresponsável. Há ainda outro debate sobre essas ondas de regularização edilícia, que é o de trazer para a legalidade diversos imóveis, os quais passam a ter liquidez. E, ao mesmo tempo que isso se mostra benéfico, pode também ser fonte de especulação imobiliária, porque traz para dentro do jogo do mercado terras que até então não tinham valor porque eram ‘invendáveis’. Deve ser parte da política o acompanhamento das regularizações, tanto do ponto de vista técnico e de segurança quanto do ponto de vista da acentuação da especulação imobiliária”, ressalta.

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