Justiça reparativa: reparar o mal para restaurar vidas em vista da salvação

O início do primeiro semestre aca­dêmico de 2025 na Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo, da Arqui­diocese de São Paulo, foi marcado com uma aula inaugural realizada na sexta­-feira, 7, sobre o tema “A Justiça Repara­tiva na Igreja”.

O assunto foi abordado pelo Monse­nhor Jordi Bertomeu Farnós, Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Uni­versidade Gregoriana, de Roma, na qual ele leciona a disciplina “Delicta Graviora contra sextum”. Desde 2012, ele é oficial da Seção Disciplinar do Dicastério para a Doutrina da Fé.

Realizado na modalidade on-line, o evento contou com a participação de professores, estudantes da Faculdade de Direito Canônico e de outras institui­ções, sacerdotes e bispos de diversas par­tes do Brasil.

MODELOS DE JUSTIÇA

Em sua conferência, Monsenhor Jor­di comparou dois modelos de justiça: a penal tradicional e a reparativa. A pri­meira, segundo ele, é baseada na puni­ção do infrator como forma de retribui­ção ao mal cometido. “O direito penal tradicional responde ao mal cometido com outro mal: uma pena a ser cumpri­da”, explicou. Essa lógica punitiva, herda­da dos sistemas jurídicos seculares, foca o castigo, sem considerar plenamente o impacto do crime sobre a vítima e a comunidade.

Ele destacou dois conceitos funda­mentais da justiça penal tradicional: a teoria retributiva e a teoria reeducativa da pena. Na teoria retributiva, a punição deve ser proporcional ao crime cometi­do. Já na teoria reeducativa, o foco está na reabilitação do infrator, mas, segundo o Monsenhor, mesmo esse modelo tem limitações, pois não leva plenamente em conta a vítima e a necessidade de repara­ção do dano causado. “Aqui, a vítima não tem consideração alguma. Aplicamos o Direito Penal sem olhar para a vítima, sem considerar que há vítimas”, criticou.

Diante dessas falhas, propõe-se uma abordagem alternativa: a justiça reparati­va, que busca não apenas punir, mas res­taurar as relações rompidas pelo crime. Inspirado em modelos aplicados no Di­reito estatal, essa abordagem vê o crime como uma ofensa não apenas contra o ordenamento jurídico, mas contra indi­víduos e comunidades. “Para lutar con­tra o delito, é necessário fomentar um diálogo entre ofensor e ofendido, para buscar um bem integral para todos os envolvidos”, afirmou.

PRINCÍPIOS E BENEFÍCIOS

Na prática, a justiça reparativa incen­tiva o criminoso a assumir responsabili­dade por seus atos e buscar formas con­cretas de reparação. Além disso, coloca a vítima no centro do processo, permitin­do-lhe expressar seu sofrimento e parti­cipar da busca de soluções. O canonista destacou que pesquisas em países nos quais esse modelo foi adotado mostram resultados positivos: “Os crimes dimi­nuem entre aqueles ofensores que acei­tam participar de programas de justiça reparativa. O delinquente passa a se res­ponsabilizar diante da sociedade e enten­de a importância da disciplina social”.

Outro aspecto relevante da justiça reparativa, segundo Monsenhor Jordi, é sua função conciliatória. Diferentemente da justiça tradicional, que muitas vezes marginaliza as vítimas, a justiça repara­tiva oferece um espaço seguro para que elas expressem seus sentimentos e parti­cipem ativamente do processo de resolu­ção do conflito. “A vítima se sente menos inclinada a buscar vingança e sofre me­nos estresse pós-traumático, pois partici­pa da elaboração da pena”, afirmou.

No contexto eclesial, ele esclareceu que a adoção da justiça reparativa não significa que não haverá punições, mas sim que o objetivo final será a transfor­mação genuína do infrator e a acolhida das vítimas.

“O fato de querermos que um culpa­do seja plenamente reintegrado na Igreja não significa que ele deva voltar ao mi­nistério sacerdotal. Ele pode santificar­-se como um leigo, consciente do dano que causou e empenhado em repará-lo”, explicou.

A JUSTIÇA DE CRISTO

Ao concluir a conferência, Monse­nhor Jordi ressaltou que a Igreja tem a missão de anunciar a justiça de Cris­to, que não é apenas retributiva, mas também restauradora. Ele comentou que a justiça reparativa pode ser um testemunho profético dentro da Igreja, aproximando-se mais dos ensinamen­tos do Evangelho. “A justiça que todos desejamos não é apenas uma forma de convivência, mas sim um estilo de vida: o estilo de vida ao qual Jesus Cris­to o Bom Pastor, nos chama”, concluiu.

Ao abrir o evento acadêmico, o Car­deal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo e Grão-Chanceler da Facul­dade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo, enfatizou que a justiça deve ser compreendida sob duas perspectivas: como satisfação para quem foi injustiça­do e como aplicação de sanções àqueles que cometeram delitos. No entanto, o Purpurado destacou que o objetivo úl­timo do Direito Canônico não deve ser apenas a punição, mas a busca pela con­versão e salvação do indivíduo.

“O Direito pensa em uma forma de repressão, de fazer sofrer, de alguma forma de cobrar de forma cara o delito cometido?”, indagou Dom Odilo, recor­dando que o Direito deve ter uma fina­lidade pastoral e que sua norma supre­ma é a busca da salvação. “A suprema lei do Direito é a busca da salvação, não da condenação”, afirmou.

FINALIDADE PASTORAL

O Arcebispo sublinhou que as penas aplicadas devem servir para que o infra­tor repare o mal causado e, ao mesmo tempo, se converta e renove sua vida. “A finalidade, finalmente, pastoral tam­bém da pena é ajudar a pessoa a reparar o mal, a se converter e a mudar de vida, para viver a vida nova”, disse, recordando as palavras de Jesus no Evangelho: “Deus não quer a morte do pecador, mas sim que se converta e viva”.

Por fim, o Cardeal Scherer destacou a relevância do tema para a Faculdade de Direito Canônico e a importância da difusão desse conhecimento: “Que aqui­lo que a Faculdade tem a oferecer não se restrinja à sala de aula, mas que possa permear, quanto mais possível, também a vida da Igreja e o sentido pastoral da aplicação do Direito”.

Dessa forma, o Arcebispo enfatizou que a justiça reparativa não deve ser apenas um conceito teórico, mas uma prática concreta na vida eclesial, contri­buindo para a construção de uma Igreja mais acolhedora e comprometida com a conversão e a reintegração dos fiéis.

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