Na cidade de São Paulo, ocorrências têm sido registradas especialmente em fábricas têxteis, no comércio e na construção civil. Em todo o Brasil, mais de 2,5 mil pessoas foram resgatadas em 2022
“As paredes estavam sujas e úmidas, tomadas por mofo, e o ambiente, por sujidade, sem nenhuma limpeza ou qualquer manutenção. No banheiro, o piso estava coberto por poças de água e da terra trazida dos sapatos, fora não haver assentos nas latrinas (…) Sem armários, as roupas e pertences pessoais dos trabalhadores estavam espalhados sobre o chão e as camas. Além disso, as instalações elétricas, com fios vivos e desprotegidos, apresentavam risco de choque elétrico”.
O relato acima poderia se enquadrar ao de uma fábrica da cidade de Chicago, nos Estados Unidos, no ano 1886, quando os trabalhadores, no dia 1º de maio, protestaram contra as precariedades de sua condições laborais e das exaustivas jornadas, ato que foi o marco para a criação do Dia Internacional do Trabalho. Ou, talvez, o que se descreve bem se aplicaria a alguma hospedagem precária de trabalhadores rurais no interior do Brasil.
Nem uma coisa nem outra: a descrição que consta na abertura deste texto é o resultado de uma inspeção feita pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no fim de fevereiro, na qual foram resgatados 26 trabalhadores em condições análogas à escravidão no alojamento de um restaurante no Jardim Aeroporto, na zona sul da capital paulista. Semanas depois, outro caso ganhou repercussão nacional: o resgate, também na capital paulista, de cinco trabalhadores que prestavam serviço a uma distribuidora de bebidas do festival Lollapalooza, os quais, após uma jornada diária de 12 horas, eram obrigados a dormir no chão ou nos pallets das bebidas para vigiar os estoques.
Casos como esses mostram que o trabalho análogo à escravidão também ocorre no ambiente urbano. Trata-se de um crime, descrito no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, e que se caracteriza por uma destas ocorrências: a submissão a trabalhos forçados (perante ameaças de punição física ou psicológica), jornadas exaustivas (acima de 12 horas ininterruptas), condições degradantes de trabalho (que colocam em risco sua saúde ou segurança da pessoa) e restrições para a sua livre locomoção. Também é comum a retenção dos documentos da pessoa e a servidão por dívidas, quando o empregador cobra do trabalhador, por exemplo, os custos pela moradia e pela alimentação fornecida.
ONDE ESTÃO AS VÍTIMAS?
Em 2022, conforme dados do MTE, 2.575 pessoas foram resgatas em condições de trabalho análogas à escravidão, aumento de 31% em relação ao ano anterior. No estado de São Paulo, foram encontradas 146 pessoas em tais condições, sendo que quase a metade delas, 72, eram estrangeiras e foram localizadas em fazendas de mandioca e laranja, além de confecções de roupa e pequenas fábricas têxteis.
“Na cidade de São Paulo, o trabalho análogo à escravidão é encontrado principalmente no setor têxtil, no comércio e na construção civil. De 20% a 30% de resgatados são pessoas vindas de outros países”, detalhou, ao O SÃO PAULO, Núria Margarit Carbassa, secretária-executiva da Comissão Municipal para a Erradicação do Trabalho Escravo (Comtrae-SP), órgão com representantes do poder público municipal e da sociedade civil, que atua na estruturação de políticas de enfrentamento ao trabalho escravo.
COMO IDENTIFICAR QUE ISSO OCORRE COM ALGUÉM?
Perceber que alguém está em situação de trabalho análogo à escravidão nem sempre é algo simples, já que o contato social dessas pessoas acaba sendo restrito, e muitas delas estão fora sua localidade de origem. Entretanto, sempre haverá indícios.
“É importante que a comunidade do entorno esteja atenta aos casos em que pessoas passam muitas horas nos mesmo locais, não saem para quase nada ou se perceba pouco movimento. De fato, é muito difícil detectar quando alguém passa por uma situação de trabalho análogo à escravidão, mas se você conseguir conversar com essa pessoa, pergunte a ela, sem um tom de interrogatório, como está sendo a rotina, quantas horas trabalha, como tem se alimentado”, orienta Núria.
COMO DENUNCIAR?
Atualmente, há dois canais para denunciar o trabalho análogo à escravidão: o Sistema Ipê, que permite fazer a denúncia de modo anônimo, em português, inglês, francês e espanhol; e o Disque 100, no qual recentemente foi adicionado um canal exclusivo para denúncias de trabalho escravo doméstico.
“É importante que essas denúncias sejam efetuadas com o máximo de informações, detalhamentos, e, se possível, com a fotografia do local de trabalho. Muitas vezes, as denúncias acabam não sendo feitas pelo próprio trabalhador, que tem medo de represálias ou até vergonha em se identificar como alguém que passou por essa condição”, afirma Núria.
APOIO AOS RESGATADOS E RESPONSABILIZAÇÕES
Na capital paulista, a Comtrae-SP elaborou o Fluxo Municipal de Atendimento a Pessoa Submetida e Vulnerável ao Trabalho Escravo, distribuindo as responsabilidades entre os órgãos municipais, estaduais e federais, para as tratativas desde a denúncia, planejamento e execução de operações de inspeção, identificação das necessidades das vítimas e seu encaminhamento aos serviços públicos e de inclusão social.
Quem mantém alguém em condição de trabalho análogo à escravidão pode ser condenado a ressarcir a pessoa com todos os salários devidos, bem como por danos morais, além de pagar multas administrativas. O empregador pode ainda ser preso em flagrante. A reclusão vai de dois a oito anos.
A Igreja repudia o desrespeito à dignidade do trabalhador
A todo tempo, a Igreja Católica condena as violações à dignidade dos trabalhadores. Na encíclica Rerum novarum, escrita em 1891 – na mesma época em que eclodiam os protestos dos operários nas principais cidades industriais do mundo – o Papa Leão XIII afirma que se, por um lado, é dever do trabalhador “fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e conforme à equidade”, por outro, os patrões “não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do cristão” (cf. RN 10).
O Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI) ressalta que qualquer forma de materialismo e de economicismo que reduza o trabalhador a mero instrumento de produção, desnatura a essência do trabalho voltado à dignidade humana (cf. CDSI 271).
O parágrafo 301 do CDSI também lista alguns direitos dos trabalhadores que devem ser respeitados e reconhecidos nos ordenamentos jurídicos, com o direito à justa remuneração, ao repouso e a dispor de ambientes e processos de trabalho que não causem dano à sua saúde física nem lesem sua integridade moral.
Por ocasião do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, em 28 de janeiro deste ano, a Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB emitiu nota na qual enfatizou a responsabilidade de toda a sociedade, em especial dos cristãos e das pessoas de boa vontade, de exigir uma economia que preze pela dignidade humana: “A exploração do ser humano por meio do trabalho escravo é uma gravíssima violação dos direitos da pessoa humana, negando sua dignidade e especialmente o direito a um trabalho decente, muitas vezes em contexto de grave discriminação e abuso de vulnerabilidade”.