
Missionário italiano e fundador da Missão Belém, Padre Gianpietro Carraro dedica sua vida a evangelizar a população em situação de rua. Em entrevista ao O SÃO PAULO, ele testemunha que, ao serem acolhidos, homens e mulheres das ruas descobrem a dignidade e a alegria de uma vida nova, sinal de que Deus continua agindo, de forma visível, entre os mais pobres.
O SÃO PAULO – Para iniciar, quem é o Padre Gianpietro?
Padre Gianpietro Carraro – Eu nasci em uma pequena cidade perto de Veneza, pertencente à Diocese de Pádua. Desde criança, eu participava da igreja. Aos 4 anos, já era coroinha. Lembro-me de que não alcançava o altar, então eu o via de baixo, e dali também via toda a igreja. Na minha primeira Comunhão, olhando para o padre, veio um pensamento puramente de criança: “Eu vou ser padre”. Passaram-se 52 anos desse fato, e aqui estou. Nunca voltei atrás, nunca houve um dia em que me arrependi.
Fui para o seminário em Pádua. Em meu coração, porém, sempre esteve presente o pensamento missionário. Naquela pequena cidadezinha, havia uma igrejinha. Nela, havia uma pequena caixinha com uma imagem de ferro de uma criança com feições africanas. Diziam-nos: “Faça um pequeno sacrifício, coloque sua moedinha para o moreto”, que significa “pequena criança africana”. Eu me apaixonei pelo Brasil, pela Amazônia, porque havia um missionário que tinha vivido na Amazônia.
Eu me sentia feliz, caminhando em meio a todas as dificuldades da juventude, até que chegou o dia em que fui ordenado, em 21 de abril de 1987, em Chioggia, uma pequena diocese próxima a Veneza. Eu me preparava para ser missionário e partir da minha terra, pois, na minha mente, se eu fosse, não voltaria.
Em 1994, vim para o Brasil como missionário em Belo Horizonte (MG). Minha atividade era, sobretudo, em nível diocesano, trabalhando na dimensão missionária. Fiquei apenas três anos, mas sempre nas favelas. Fui enviado para São Paulo, mais precisamente à Diocese de Campo Limpo. Começamos uma paróquia que não existia, na periferia de Embu-Guaçu. Pela primeira vez, tive um grande choque com a realidade da delinquência. Isso foi em 1997. Naquela região, havia muito “pé-de-pato” – os justiceiros que matavam por dinheiro. Era uma área muito violenta.
Lembro que um dia, indo celebrar a missa da manhã, havia três jovens mortos no quintal da igreja. Ao lado, havia mais três. Durante a celebração, eu me perguntava: “Mas eu sou o padre de quem? Sou o padre destes ou dos que morreram?”. Eu não conhecia aquele mundo e fiz uma oração a Deus, pedindo que me ajudasse a entrar nesse mundo.
Uma vez, visitei a casa de uma senhora. Ela saiu, apontou com uma mão e disse: “São eles”. Eu olhei e havia lá seis ou sete jovens com capuz e com armas. Fiquei bastante chocado. Veio, então, aquela voz interior de Deus que me disse: “Eles são seus paroquianos, você não vai cumprimentá-los?”
Eu fui na direção deles, aproximei-me e estendi a mão. Um deles pegou na minha mão. Pouco depois, um deles avisou que eu estava ali. A senhora levou um jovem de 15 anos para dentro, e ele começou a gritar: “Fui eu que matei!” Pedi que se acalmasse e me contasse tudo. Perguntei se ele queria o perdão de Deus, e ele aceitou. Coloquei a mão na cabeça, e lhe dei a absolvição. Foi um momento muito forte. Entrou mais um, era o chefe deles. Ele também quis contar toda a sua história. Falei algo que, talvez hoje, eu não diria: “Gente, vocês vão para o inferno se não mudarem de vida”. Convidei-os para um retiro. Naquela noite, fui buscá-los de perua.
Lembro que o chefe se sentou ao meu lado. Ele levantou a camisa e mostrou uma arma. Tive que tirar três pistolas deles e deixá-las em um local seguro. O encontro começou. Tínhamos 100 jovens. Foi muito forte. Eles se deixaram tocar por Deus. A partir daí, começamos a ter louvor e oração todo sábado.
O que motivou o início da Missão Belém?
Após ser incardinado na Arquidiocese de São Paulo, em 2001, eu fui trabalhar em uma área que se estava tentando iniciar uma comunidade paroquial em Taipas [Região Brasilândia]. Contudo, sempre que ia ao centro da capital, era impossível não se chocar com a realidade do povo de rua que vivia, sobretudo, na Praça da Sé. Fazíamos o que se chama Pastoral de Rua. Levávamos um cafezinho e criávamos um laço. Logo entendemos que era preciso mergulhar nesse mundo para viver com eles.
Assim, nos últimos dias de 2001 para 2002, começamos nossa missão de rua, morando e dormindo na rua. Eles começaram a pedir ajuda, que os acolhesse em minha casa. Eu vivia em um barraquinho em Taipas. Pensei: “Vou acolher vocês no meu barraco”, pois o pensamento era nunca dizer “não”. Comecei a receber três ou quatro em casa. Acabaram me roubando o barraco e eu fiquei para fora. Transformaram o lugar em uma “biqueira”. Quando voltei de uma viagem, tive que dormir na igreja.
Compreendemos, então, que era preciso uma casa de acolhida, um ambiente e uma metodologia específicos. Assim, decidimos iniciar a Missão Belém em 1º de outubro de 2005. Entendemos que era preciso começar algo específico para acolher este povo. Começamos aqui, exatamente neste barraco onde você está agora [Comunidade Nelson Cruz, no Belenzinho].

Por que Belém?
O nome Belém remete ao lugar onde Jesus nasceu. Belém é uma gruta, um estábulo. É ali que vemos Jesus nascer pobre no meio dos pobres. Deus se encarna pobre no meio dos pastores, que eram marginalizados. Isso conquistou o nosso coração, pois sempre quisemos ir ao encontro dos pobres no meio dos pobres. É por isso que você vê este barraco de madeirite; quisemos que ele ficasse o mais parecido possível com o dia em que chegamos. Nosso pensamento é sempre nos encarnar no meio dos pobres para evangelizar a partir deles.
O que é evangelizar com e para os pobres?
É possível tocar com a mão a força do Evangelho: Jesus é o Salvador de verdade. Ele salva do lixo, da droga, do desespero. Quando eles vêm para a Missão, descobrem, antes de tudo, uma vida nova. Essa vida nova se manifesta na cama, na comida, no banho e na acolhida familiar calorosa que oferecemos. Eles sentem que Deus os está amando.
Um acolhido da Sé me contou que acordava à noite e se dava beliscões para ter certeza de que não era um sonho. “Eu não estou sonhando. É verdade. Eu estou neste lugar. Estou dormindo na cama. Estou comendo. Estou feliz”.
Não existe alegria na rua. Quando alguém vem para a Missão, pode haver pobreza, mas há muita fraternidade, espiritualidade e acolhida. Eles meditam o Evangelho do dia, escolhem um propósito, escrevem-no na mão e tentam vivê-lo. Isso os faz entrar em uma nova dimensão.
Houve momentos em que o senhor sentiu medo a ponto de pensar: “Meu Deus, vou morrer” ou “O que eu estou fazendo aqui?”
O medo de morrer existe, mas o pior não é isso, e sim pensar que outros podem morrer, como os missionários no Haiti, que estão sob constante ameaça. No mês passado, os bandidos entraram em nossa igreja, onde estavam 600 crianças, e começaram a metralhar o teto. E as balas caíam em cima das crianças. É isso que dá medo. Sobre o risco de morte: várias vezes tivemos que intervir para parar linchamentos. Precisamos ir lá, no meio, onde estão espancando uma pessoa, e temos que separar. Isso aconteceu três ou quatro vezes comigo. É uma situação que pede muita oração.
O que o sustenta objetivamente nesta missão?
O que me sustenta é a adoração e o relacionamento com Deus. É o sabor da vida, que é muito difícil e muito dura. O que me sustenta, me dá força e alegria de viver, é o relacionamento com Deus e a adoração eucarística, que considero ser o único momento de paz e sustento durante o dia.
Além disso, sou sacerdote e tenho responsabilidade na Missão Belém, que é uma associação privada de fiéis. Teria sido impossível caminhar sozinho. Como diz a Bíblia: “Se alguém cai, não tem ninguém que o levante”. Deus nos concedeu a vida de Belém, de conduzir este barco juntos.