
Em entrevista ao O SÃO PAULO, o Padre João Bechara Ventura, Sacerdote da Arquidiocese de São Paulo, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico e doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana, refletiu sobre a centralidade da Bíblia na vida da Igreja, sua interpretação, vivência e estudo à luz da tradição católica.
O SÃO PAULO - Como o versículo ‘A esperança não decepciona’ (Rm 5,5), proposto para este Mês da Bíblia, pode iluminar a vida da Igreja e dos fiéis no Ano Santo?
Padre João Bechara Ventura – A virtude teologal da esperança é absolutamente fundamental! Toda a vida cristã precisa ser impulsionada pela certeza da Ressurreição de Cristo e pela esperança de que nós ressuscitaremos com Ele. Somente a partir dessa esperança que “não decepciona”, as adversidades e os sofrimentos da vida adquirem sentido e podem ser suportados com alegria, amor e sem amargura. No capítulo 8º da carta aos Romanos – uma maravilhosa exortação à esperança – São Paulo afirma: “Penso que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que deverá se revelar em nós” (Rm 8,18). A esperança é “como uma âncora da alma” (Hb 6,19) que tem o poder de proporcionar coragem, paciência e alegria para seguir em frente a todos aqueles que receberam a vida do Espírito. Talvez hoje uma das maiores armadilhas para os cristãos seja a falta de esperança, que leva facilmente ao desânimo, a uma visão excessivamente crítica da realidade (inclusive da Igreja) e até mesmo ao completo desespero. De certo modo, toda a Bíblia é um convite à esperança: recordando as maravilhas realizadas por Deus na história da salvação, olhamos para o futuro com confiança. O convite feito pelo Salmo resume um aspecto fundamental da mensagem de toda a Revelação: “Espera no Senhor e tem coragem, espera no Senhor!” (Sl 26,14).

Quais princípios orientam a correta interpretação da Bíblia, evitando tanto o fundamentalismo quanto leituras subjetivas?
A Bíblia é lida em comunidade, isto é, na unidade da Igreja de Cristo. Ela é um livro da Igreja e dirigido a todos os seus membros! Os autores do Novo Testamento são todos membros da Igreja; o elenco dos livros canônicos foi discernido pela Igreja; antes da invenção da imprensa, seus manuscritos foram transmitidos pela Igreja; a sua interpretação autêntica compete aos bispos da Igreja. Como diz a segunda carta de São Pedro, “nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal” (2Pd 1,20). Sem dúvida, os textos da Bíblia falam ao coração de todos os indivíduos que creem, de todos os tempos, em todas as circunstâncias e em meio às mais variadas necessidades; todavia, lemos a Escritura sempre a partir do Eu maior da Igreja (o “Cristo total”). Levamos em conta a Tradição, testemunhada pela interpretação que os próprios livros do Novo Testamento fazem de livros do Antigo e pelas interpretações dos Santos Padres, isto é, dos grandes estudiosos dos primeiros séculos do Cristianismo. A Revelação divina, com efeito, nos é transmitida, inseparavelmente, pela Bíblia e pela Tradição. Além disso, acreditamos que o mesmo Espírito que inspirou as Escrituras assiste o Magistério eclesial, de um modo especial na pessoa do Papa, o sucessor de São Pedro. Para se evitar distorções de textos isolados, procuramos levar em conta a unidade de todas as Escrituras, Antigo e Novo Testamento. Assim, quanto melhor alguém conhecer os livros da Bíblia, a doutrina católica e o tesouro interpretativo da Tradição, mais recursos possuirá para ler correta e profundamente as Escrituras. É preciso ainda lembrar que a posse da graça santificante e o cultivo de uma sólida vida espiritual são fundamentais para conseguirmos “sentir com a Igreja” ao interpretarmos as Escrituras. É belo o modo como santos, teólogos e fiéis comuns extraem dos textos sagrados o alimento espiritual e intelectual, por meio de perspectivas diversas, por meio de interpretações sob certos aspectos diversas, mas sem se afastarem da unidade da fé e da caridade. Quando se lê a Bíblia com a Igreja, o Espírito Santo suscita unidade na diversidade de perspectivas dos seus membros.
O que o senhor recomenda para que os fiéis cultivem maior intimidade com a Palavra de Deus?
Eu, pessoalmente, sugeriria que todos buscassem antes de tudo ler e reler algumas vezes os quatro Evangelhos. Neles, conhecemos diretamente e com fidelidade histórica os mistérios da vida do Senhor que são a fonte de toda a salvação: a Sua Encarnação, infância, manifestação pública, Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão ao Céu. Os livros de Mateus, Marcos, Lucas e João são os principais de toda a Bíblia! Por meio deles, temos acesso às ações, palavras, milagres, sentimentos, reações e gestos que Jesus realizou e que o Espírito Santo quis que ficassem registrados por escrito para a nossa salvação. São o verdadeiro manancial de vida espiritual e de amor. É impossível amar o Senhor sem conhecê-Lo; nas páginas do Evangelho, encontramos a água pura e fresca para irrigar a alma e alimentar o espírito. Se lidos com atenção e meditados, os Evangelhos curam, consolam, fortalecem, iluminam e transformam. Eles possuem a eficácia de nos unir ao Senhor e de abrir nosso coração a uma frutuosa recepção dos sacramentos. Uma vez que conhecemos bem os Evangelhos e temos gravados no coração os principais acontecimentos e palavras de Cristo ali descritos, um véu é retirado de nosso entendimento e torna-se muito mais fácil compreender toda a Bíblia.
Além disso, sugeriria a leitura frequente dos Salmos. Eles formam um livro de oração que fala profundamente a todos os corações, quer se encontrem nos mais variados estados de ânimo que um fiel pode atravessar: alegria, tristeza, medo, confiança, ódio, ressentimento, amor etc. A grande particularidade desse livro de oração em relação a todos os outros é que, por ser inspirado pelo Espírito Santo, ele nos ensina a orar como nenhum mestre é capaz de fazer! Santo Agostinho dizia que os Salmos são a oração do “Cristo total”, Cabeça e membros. Sua leitura e recitação nos une, portanto, de algum modo ao coração pulsante da Igreja. No início, a leitura dos Salmos pode ser árida. Com o tempo, porém, ganhamos familiaridade com os textos, que se tornam fonte de luzes e de consolação. Gradualmente, vamos aprendendo a colecionar os nossos Salmos preferidos no coração, chegando mesmo a nos lembrar de alguns versículos de cor. Sem que nos demos conta, eles se tornam uma recordação constante em nosso cotidiano.

Quais livros e documentos da Igreja o senhor indica para quem deseja aprofundar o estudo bíblico com fidelidade à Tradição católica?
Para os que desejam aprofundar o estudo da Bíblia na fidelidade à Igreja, recomendo, antes de tudo, a leitura da constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum. Trata-se do documento aprovado pelo Concílio Vaticano II que retoma e, sob certos aspectos, desenvolve os principais documentos anteriores acerca dos estudos bíblicos: Divino afflante Spiritu, de Pio XII; Spiritus Paraclitus, de Bento XV; Providentissimus Deus, de Leão XIII; a constituição Dei Filius, do Concílio Vaticano I; e o decreto sobre as Escrituras canônicas do Concílio de Trento. A Dei Verbum é um texto bastante curto e sintético que possui, no entanto, grande densidade e nos ajuda a compreender melhor a relação inseparável existente entre a Bíblia, a Tradição e o Magistério, além de nos fornecer critérios claros para uma correta interpretação das Escrituras. Além disso, para os que quiserem aprofundar ainda mais o tema, bem como os desdobramentos teológicos da constituição Dei Verbum, aconselho a leitura da exortação pós-sinodal Verbum Domini, do Papa Bento XVI, a partir das discussões realizadas durante o Sínodo sobre a Palavra de Deus, realizado em 2008. Outro documento muito rico e mais recente é a preciosa carta apostólica Scripturae sacrae affectus, escrita pelo Papa Francisco em 2020, como parte das comemorações pelo 16º centenário da morte de São Jerônimo, o Patrono dos estudos bíblicos.