Nas comunidades da periferia e em cortiços na região central, moradores organizam iniciativas de cuidado mútuo diante do coronavírus
A pandemia do novo coronavírus na cidade de São Paulo tem os maiores registros de mortos e infectados nos bairros periféricos e nas localidades do Centro onde há grande concentração de cortiços e habitações precárias.
Na atualização sobre óbitos por COVID-19, divulgada pela Prefeitura no dia 23 de junho, oito distritos aparecem com mais de 120 mortes por 100 mil habitantes: Iguatemi, Guaianases, Lajeado, Jardim Helena (todos na periferia da zona Leste), Brasilândia, Cachoeirinha (ambos na zona Noroeste), Sé e Brás (no Centro).
Nessas e em outras localidades mais pobres, os moradores têm se organizado para tentar conter o avanço da doença e, em alguns casos, obtido sucesso, como no bairro de Paraisópolis, na zona Sul.
O SEGREDO DE PARAISÓPOLIS
Uma população de cerca de 100 mil habitantes em um território de aproximadamente 10 km2 seria um “cenário perfeito” para a proliferação do novo corona- vírus em Paraisópolis. Desde o início da pandemia, porém, a comunidade pensou em ações preventivas, sendo uma delas a criação dos chamados “presidentes de rua”.
“A comunidade criou uma rede de proteção em que um morador cuida do outro. O modelo dos ‘presidentes de rua’, em que voluntários cuidam de 50 famílias cada, demonstrou-se eficaz no trabalho de conscientização da população, associado a iniciativas que apoiam a comunidade nas áreas de saúde, assistência social e econômica. Os contatos dos ‘presidentes de rua’ com as famílias são diários, já que eles cuidam dos seus vizinhos e monitoram as famílias via grupo de WhatsApp. Além disso, é o ‘presidente de rua’ que retira as marmitas e faz a entrega de cestas básicas”, detalhou ao O SÃO PAULO Gilson Rodrigues, morador do bairro e presidente da União de Moradores e do Comércio de Paraisópolis.
Pessoas que apresentam sintomas de COVID-19 são encaminhadas a ambulâncias onde há médicos e enfermeiros contratados pela comunidade, a partir de recursos obtidos por campanhas de financiamento coletivo na internet e doação de pessoas físicas. Além disso, 240 moradores foram capacitados como socorristas.
Outra ação foi a de garantir o efetivo isolamento social das pessoas com sintomas da doença, visto que a maioria das casas da comunidade é pequena, com famílias numerosas. Para isso, são usadas duas escolas públicas. “A União de Moradores enviou ofício à Secretaria de Estado da Educação, solicitando a liberação das escolas para esse fim. Foi necessário criar uma série de protocolos da saúde e ter a liberação da vigilância sanitária. O Hospital Albert Einstein nos apoiou com esses processos. Os centros de acolhimento nessas escolas são financiados por pessoas físicas, mobilizadas principalmente pela Associação Parceiros da Educação”, detalhou Rodrigues.
Pesquisadores do Instituto Pólis mensuraram o quanto a experiência de Paraisópolis é exitosa. No fim de maio, na Vila Andrade, distrito onde está Paraisópolis, a taxa de mortalidade por COVID-19 estava em 30,6 por 100 mil habitantes, enquanto esse índice na cidade era de 56,2. Além disso, em relação ao total de óbitos pela doença no distrito, Paraisópolis representava 32% do total, mesmo tendo mais de 45% da população do território.
“O distrito da Vila Andrade, desconsiderando Paraisópolis, tem renda sete vezes maior que a dos moradores da comunidade. Por lá, as casas são amontoadas, a concentração de pessoas é grande e, mesmo assim, conseguiram ter menos mortes. Isso é notável, pelo esforço que obtiveram por conta própria”, apontou o médico sanitarista Jorge Kayano, pesquisador do Instituto Pólis, destacando ser esse um bom exemplo para outros bairros, congregando esforços de diferentes agentes sociais, entre os quais as igrejas.
No bairro de Paraisópolis, na área de abrangência da Diocese de Campo Limpo, fica localizada a Paróquia São José, que desde o começo da pandemia tem recebido, de instituições, empresas e pessoas físicas, doações de itens de higiene pessoal e cestas básicas que são repassados a famílias do bairro, em ações coordenadas pelo Padre Luciano Borges, Pároco, com o apoio dos paroquianos.
UMA REDE SOLIDÁRIA NA BRASILÂNDIA
Desde que as mortes por COVID-19 passaram a ser contabilizadas na cidade, o distrito da Brasilândia, na zona Noroeste, figura entre os com maior números de casos e de óbitos.
A comunidade, porém, não assiste passivamente ao avanço do vírus. Em março, um grupo formado por moradores e instituições que atuam no distrito se mobilizou para alertar a população. “O primeiro momento foi o de sair pra rua com carros de som e trio elétrico para avisar do grande risco que a comunidade corria e que era preciso se proteger”, recordou Jabes Campos, advogado e um dos articuladores da Rede Brasilândia Solidária.
Com poucas semanas de articulação, logo se percebeu que a prática efetiva do isolamento social seria inviável. “O território da Brasilândia é extremamente adensado e a muitos locais o isolamento social não chegou, pois não há como permanecer dentro de casa, por exemplo, em habitações com dois cômodos onde vivem seis pessoas”, detalhou Campos.
A estratégia traçada, então, foi a de produzir máscaras para serem distribuídas, um trabalho que começou a ser feito voluntariamente por 20 costureiras, usando tecidos de 2 mil camisetas. Depois, outras 100 mil máscaras foram repassadas pelo Banco Daycoval à Rede Brasilândia Solidária, que enviou cerca de 6 mil para cada uma das 16 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) que existem no território.
“Hoje, entre as ações, está a ida a todos os lugares, até os de maior dificuldade de acesso, onde paramos o carro de som e falamos com a comunidade. Ao mesmo tempo, os agentes comunitários de saúde distribuem as máscaras, os kits de álcool em gel que conseguimos, e conversam com os moradores sobre a importância de se proteger”, continuou o advogado.
A comunidade também se uniu para que a Prefeitura acelerasse a entrega do Hospital Municipal da Brasilândia, o que ocorreu em maio. Uma outra demanda, porém, não teve resposta: “Nós pedimos a abertura dos Centros Educacionais Unificados (CEUs) para que sejam locais de acolhimento das pessoas doentes, a fim de separá-las, mas não fomos atendidos ainda”, afirmou Campos.
Um indício de que a mobilização da comunidade começa a surtir efeito é que no comparativo entre os dias 5 e 18 de junho ocorreram 30 mortes por COVID-19 na Brasilândia, quantidade menor que o dos outros distritos com mais óbitos em números absolutos: o Grajaú, que no período registrou 52 mortes; e Sapopemba, com 55 óbitos. “Ainda é uma luta para que a comunidade entenda a gravidade da doença. Muitos, infelizmente, só entendem isso na hora em que um ente querido morre”, concluiu Campos.
A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA NOS CORTIÇOS
Entre os 96 distritos da cidade, o Brás, na região central, é o que o concentra o maior número de óbitos por COVID-19 proporcionalmente à população: 141 mortos por 100 mil habitantes. Dois distritos vizinhos, a Sé e o Pari, também estão entre aqueles com mais de 100 mortes por este indicador. Neste que é considerado o “centro pobre” de São Paulo, a quantidade de cortiços, pensões e ocupações pode ser uma das explicações para a expansão da COVID-19.
“Em um cortiço há de 30 a 40 famílias, tudo coletivo, desde o banheiro até as pias e quartos. Então, viver o ‘Fique em Casa’ é difícil”, comentou Sidnei Pita, um dos articuladores do movimento Unificação da Luta de Cortiço e Moradia (ULCM).
Regularmente, a ULCM tem distribuído itens de limpeza, álcool em gel e máscaras para as pessoas que vivem em cortiços e ocupações, além de cestas básicas, obtidas pela União dos Movimentos de Moradia (UMM), à qual é vinculada, ou repassadas pela Prefeitura.
Segundo Pita, mais de 50 mil cestas já foram distribuídas, uma ajuda indispensável: “A grande maioria dos sem-teto, de quem mora em cortiços na região central, é de ambulantes, autônomos ou de trabalhadores de lojas que diminuíram seus salários. Desde o começo da pandemia, só temos visto crescer as filas de pessoas à procura das doações”.
Quando a entrega das cestas é feita em cada cortiço, geralmente a ação é acompanhada por equipes da área da saúde da Prefeitura, a fim de orientar os moradores sobre o novo coronavírus. “Claro que é importante essa conscientização, mas o fator-chave seria tirar as pessoas da situação de risco. Há tantos prédios que a Prefeitura poderia alugar. Se aqui existisse um CEU, poderia se abrigar doentes. Hoje não há alternativas para se praticar o distanciamento social”, lamentou, dizendo ainda que o poder público não tem feito a testagem de COVID-19 nos moradores de cortiços e ocupações.
O QUE EXPLICA O AVANÇO DA PANDEMIA NA PERIFERIA?
O elevado adensamento populacional e a falta de uma ação integrada do poder público com a comunidade local foram apontados, por especialistas ouvidos pelo O SÃO PAULO, como fatores que explicam a maior ocorrência dos casos de COVID-19 nos bairros periféricos.
“Na periferia, o contato entre as pessoas é bastante intenso. O isolamento social quase não ocorre, por vários motivos, entre os quais a pouca quantidade de cômodos por residência. Outro problema é que as moradias são muito próximas e, principalmente nas comunidades, não há como as pessoas não se tocarem, e o vírus adora aglomerações”, explicou o médico Jamal Suleiman, infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.
Suleiman defende que as comunidades disponham de ambientes para o isolamento social, “lugares onde o sintomático respiratório pudesse ficar durante a quarentena, que fossem unidades escolares que estão fechadas ou hotéis, por exemplo”. Ele lembrou, ainda, que os trabalhadores de serviços essenciais que vivem nas periferias não interromperam suas atividades e, muitas vezes, tiveram que deixar os filhos com outros familiares, devido ao fechamento das escolas. “Essa cadeia de eventos faz com que o vírus circule de maneira muito intensa”, disse, lembrando ainda que situações de aglomerações, como nos transportes públicos, também facilitam a disseminação do coronavírus.
Para o médico sanitarista Jorge Kayano, a Prefeitura deve realizar um estudo mais detalhado sobre cada região da cidade: “Há realidades muito diferentes na periferia e nas áreas centrais onde existem cortiços e populações de imigrantes, por exemplo. São peculiaridades que fazem diferença tanto no ritmo de disseminação da infecção quanto no número de mortes”.
Para o sanitarista, a estratégia adotada pela Prefeitura e o Governo do Estado de priorizar leitos de UTI para a COVID-19 deveria ter sido acompanhada da busca ativa por pessoas infectadas pela doença, especialmente a partir da rede de atenção básica à saúde.
DIAGNÓSTICOS
“Há cerca de 60 dias, mudamos o protocolo e as pessoas que a atenção básica identificava com sintomas leves e moderados no território, nas áreas das unidades de saúde, nós passamos imediatamente a monitorar e interná-las, colocá-las para tratamento nos hospitais de campanha”, afirmou o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido, em coletiva de imprensa em 23 de junho, na qual avaliou que isso tenha sido determinante para evitar o agravamento da doença na cidade.
Em junho, a Prefeitura realizou a primeira fase do inquérito sorológico, no qual se indicou que cerca de 1,16 milhão de pessoas na cidade já podem ter sido infectadas com o coronavírus, e que a letalidade da COVID-19, antes calculada em 26 óbitos para cada mil infectados é, na verdade, de cinco mortes a cada mil pessoas com o vírus.
“Nosso objetivo é conhecer a situação sorológica da população da cidade, estimando a real letalidade e direcionando novas estratégias, ou seja, identificarmos o número de suscetíveis e planejarmos a volta gradativa das atividades na cidade em função dos resultados que o inquérito apresenta”, explicou Aparecido.
O infectologista Suleiman alerta que o inquérito sorológico informa quantas pessoas já se infectaram, mas não indica quantos têm a doença atualmente. “Se houvesse uma estrutura adequada, deveríamos fazer os testes moleculares rápidos, identificar as pessoas que são portadoras do vírus, colocá-las em isolamento e monitorá-las no domicílio”, afirmou, destacando ainda que o balizamento para a flexibilização da quarentena não deve ser o índice de mortalidade da doença, mas a taxa de ocupação de leitos.
A flexibilização das atividades é vista com temor por lideranças comunitárias ouvidas pela reportagem. Para Gilson Rodrigues, de Paraisópolis, “o custo dessa reabertura sem ter feito a lição de casa será em vidas, principalmente das pessoas mais pobres”. Jabes Campos, da Brasilândia, tem especial preocupação com os deslocamentos dos trabalhadores: “Os transportes continuam sempre lotados. É provável que o número de casos aumente em nosso território”.