Chef de cozinha, Raul Godoy, especialista em sustentabilidade, comenta sobre hábitos que podem contribuir para melhor aproveitar todas as partes do alimento, evitando o desperdício e a produção de lixo.
Gastronomia sustentável é uma prática que impacta a mudança de hábitos relacionados ao processo de cozinhar. A atividade que resulta na diminuição do desperdício de comida mira na origem, no cultivo e nos meios pelos quais o alimento chega ao mercado e ao prato do consumidor.
Assim como a fome, o desperdício de alimentos é um problema global. Em 2019, do total de alimentos produzidos no planeta, 17% foram parar no lixo, em números absolutos 931 milhões de toneladas, a partir de descartes em residências, varejo, restaurantes e outros serviços alimentares. Os dados são do “Índice de Desperdício de Alimentos 2021”, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e da organização britânica de resíduos Waste and Resources Action Program (WRAP).
“Falar de sustentabilidade é discorrer sobre diminuir o nosso impacto nocivo ao planeta, ou seja, reduzir meu uso de água e eletricidade, meu rastro de lixo, meu consumo de carne pensando nas questões do uso de recursos naturais para produzi-la, enfim, se eu desperdiçar menos, terei uma vida mais sustentável”, diz o chef de cozinha Raul Godoy, especialista em gastronomia sustentável.
Godoy atua no mercado de alimentos há 15 anos e passou por cozinhas de grandes restaurantes no Brasil e no mundo, como o Tordesilhas, onde esteve ao lado da chef Mara Salles; o Arturito, da chef Paola Carosella; e restaurantes do grupo D.O.M, do chef Alex Atala.
Hoje, ele ministra aulas sobre sustentabilidade aliada à gastronomia e o uso integral de alimentos na instituição Gastronomia Periférica e no Instituto Capim Santo, onde é coordenador de Gastronomia.
NA COZINHA PROFISSIONAL
Na cozinha profissional, segundo Godoy, o itinerário para a gastronomia sustentável começa por comprar itens do pequeno produtor e de famílias agricultoras. “Assim, daremos dinheiro a uma produção mais saudável e orgânica, o que também diminui a distância que o alimento percorrerá para chegar até nós. Assim, haverá um rastro de carbono menor, menos desperdício e menor número de embalagens”, explica.
Além disso, o alimento adquirido deve ser usado integralmente. Godoy exemplifica: “Se comprar 10kg de batata, utilize 10kg, em vez de tirar 2kg de casca para jogar no lixo, pois este, além de ser produto a menos em relação ao custo investido, vai parar em um saco plástico que ficará mais tempo impactando o meio ambiente”.
USO INTEGRAL
Godoy destaca que há diferença entre aproveitamento integral e o reaproveitamento de alimento. “Há quem me fale assim: ‘Legal, você faz reaproveitamento do talo da salsinha’. Não! Se eu picar o talo da salsinha para utilizar na minha receita, significa que estou aproveitando tudo do ingrediente. Reaproveitamento é eu pegar o meu arroz que sobrou ontem e fazer um bolinho de arroz hoje”, explica.
Entusiasta da gastronomia sustentável, o jovem chef acredita que muitas partes dos alimentos que são jogadas no lixo têm esse destino por não serem “a parte mais bonitinha ou não ter a perfeição que todos querem”, algo que não deveria ser exigido do alimento natural. “Ele tem um crescimento próprio. Um peixe não é totalmente igual milimetricamente dos dois lados; uma batata não é igual, uma cebola também não”, pontua.
Para Godoy, a prática da sustentabilidade na cozinha envolve o contato com o alimento, o que permitirá conhecer suas partes e melhor aproveitá-lo. “A folha do coentro, por exemplo, o ideal é colocá-la mais no final da receita porque ela vai perder sabor e textura se a colocarmos muito no começo. Já o talo e a raiz conseguimos cozinhar mais, é um sabor que vai sendo acrescentado enquanto estiver cozinhando.”
AO ACESSO DE TODOS
O jovem chef garante que a gastronomia sustentável pode ser praticada por todos, inclusive em casa. “Temos que desmistificar essa coisa de que a gastronomia de restaurante só fazemos quando existe um ambiente profissional”, diz Godoy, dando um exemplo prático. “Uma coisa que você consegue fazer na sua casa é utilizar uma batata de modo integral, seja fazendo-a inteira, seja descascando-a e utilizando o miolo de um jeito e a casca de outro.”
Ele enfatiza que o ideal é programar bem o que se pretende cozinhar para assim aproveitar tudo de forma integral. “Se quero fazer algo com a casca da banana, por exemplo, tenho que planejar. Posso comer a banana, picar a casca e fazer um vinagrete; ou posso fazer um bolo de banana com a casca junto para não gerar lixo de um lado nem de outro”, sugere.
DESCARTE EM ÚLTIMO CASO
Outra dica de Godoy é sempre armazenar os alimentos de forma correta para que durem mais tempo. “Se você pegar o maço de salsinha e jogar dentro da sua geladeira de qualquer jeito, em um ou dois dias ele vai ficar todo amarelado. Já se molhar um papel toalha, enrolar em volta desse maço e guardar na parte mais
baixa da geladeira, ele vai viver mais tempo”, ensina.
E mesmo que o alimento perca a estética bonita, a beleza, há alternativas para não desperdiçá-lo. “Uma salsinha amarelada, por questão de perder a clorofila, vai estar boa ainda para consumo. Se pegarmos uma salsinha que esteja mais murcha e jogar na água, ela dá uma revitalizada”, indica.
O chef lembra ainda que uma salsinha que perdeu o frescor pode, sim, ser aproveitada. “Posso bater e fazer um pesto de salsinha (espécie de molho) para colocar na minha receita. Esse mesmo pesto, se eu deixar com um pouco mais de óleo, consigo guardar na geladeira por mais tempo também.”
Godoy afirma que o segredo para implantar a gastronomia sustentável no dia a dia é cozinhar. “Cozinhando, conseguimos encontrar soluções e passamos a viver perto dos alimentos naturais, e assim vamos conhecer mais sobre cada ingrediente”, diz.
“Cozinhando, aprendemos a ver os ingredientes e, ao colocá-los na boca, pensamos o que fazer com a folha que murchou mais, o que fazer com a maçã ou com o tomate que está batido”, acrescenta. “Com o tomate amassado, por exemplo, podemos fazer um molho que vai ficar lindo e gostoso.”
SAIBA APROVEITAR
Para o jovem chef, a venda separada das partes de um mesmo ingrediente distancia o consumidor de uma cozinha sustentável. “Você compra no mercado um pedacinho de abóbora sem casca e sem semente, embalado em plástico”, lamenta. “Já vi mercado vender tangerina descascada em bandejinha de isopor enrolada em saco plástico.”
Ainda assim, Godoy acredita que ao menos o contato com as partes de um alimento possa aproximar o consumi- dor, aos poucos, da prática da sustentabilidade: “A própria folha da salsinha comprada já picada no potinho, talvez, sugira que existe um maço de salsinha e que é possível comprá-lo inteiro, trazendo uma reflexão de que é uma opção jogar metade dela no lixo ou utilizar de modo integral”.
“Se estamos comprando esses alimentos e eles estão sendo cultivados por alguém, tudo isso merece respeito. Seja do nosso próprio trabalho para não jogarmos nosso dinheiro no lixo, ao descartar parte desse alimento, seja respeitando o trabalho da pessoa que o cultivou durante meses”, pondera.
COMEÇAR É PRECISO
Godoy sabe que um dos principais desafios para a prática da gastronomia sustentável está relacionado ao acesso aos produtos orgânicos. “Por não ter tanto subsídio do governo, o alimento orgânico fica mais caro. Também é mais caro, por exemplo, para uma família produtora do interior de São Paulo plantar cenoura e trazer para cá para a venda”, detalha, enfatizando que o hábito de consumir mais produtos orgânicos é um passo importante para a gastronomia sustentável.
Outro desafio é conscientizar o consumidor de que ele está gerando lixo. “Quando você não está aproveitando tudo, gera mais lixo, e isso permanecerá em sacos plásticos por centenas de anos no planeta. Já se eu utilizar meu alimento inteiro, por meio do conhecimento de como utilizá-lo, não vou gerar esse lixo nem utilizar esse saco plástico”, continua.
No caminho para a gastronomia sustentável, Godoy recomenda que cada família reflita sobre aquilo que vai para o lixo da cozinha, geralmente dentro de uma sacola plástica de supermercado: “Se não enchermos o lixo com alimento, não vamos precisar nem do saquinho. Assim, serão menos alimentos sendo jogados fora, menos sacos de lixo também, por consequência, menos sacolas plásticas no supermercado, menos sacos a indústria precisará produzir e menos poluição ocorrerá por causa da produção de sacos”.
COLOQUE A GASTRONOMIA SUSTENTÁVEL NA SUA ROTINA
–Compre quantidade estimada do que efetivamente costuma usar;
– Use integralmente aquilo que adquiriu;
–Reaproveite os alimentos já cozidos para outras receitas: o arroz de ontem pode virar o bolinho de arroz de hoje;
– Nem todo alimento que não está bonito esteticamente perdeu a qualidade: de um tomate amassado pode ser feito um molho;
–Cozinhe com frequência para conhecer o sabor e a textura dos alimentos;
– Pense em variadas receitas que podem ser feitas com um mesmo item;
– Informe-se sobre as condições ideais de armazenamento para cada alimento;
– Compre alimentos orgânicos sempre que possível;
– Reflita sobre o volume de lixo gerado com o desperdício: por ano, 17% do que é produzido de alimentos tem como destino o lixo;
– Restaurantes podem priorizar a compra de alimentos de pequenos produtores.