Em 1ª viagem apostólica, Leão XIV exorta à unidade cristã e à busca da paz

Fotos: Vatican Media

A celebração dos 1.700 anos do primeiro Concílio de Niceia, realizado em 325, no qual os cristãos reafirmaram a fidelidade às Sagradas Escrituras e à Tradição de que Jesus Cristo é o Filho de Deus, da mesma natureza de Deus Pai, e a explicitaram no “Credo Niceno-Constantinopolitano”, conhecido como Símbolo dos Apóstolos, foi a motivação principal para a 1ª viagem apostólica internacional de Leão XIV, à Turquia, entre 27 e 30 de novembro. O Santo Padre esteve ainda no Líbano, até a terça-feira, 2, onde fez fortes apelos pela paz no Oriente Médio e falou sobre a esperança de dias melhores, especialmente aos jovens (leia detalhes na página 3 deste caderno especial).

“Desejo confirmar que, em continuidade com o que foi ensinado pelo Concílio Vaticano II e pelos meus predecessores, perseguir a plena comunhão entre todos os que são batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, no respeito pelas legítimas diferenças, é uma das prioridades da Igreja Católica, em particular do meu ministério de Bispo de Roma, cujo papel específico em nível da Igreja universal consiste em estar a serviço de todos para construir e preservar a comunhão e a unidade”, disse Leão XIV em seu último discurso na Turquia, no domingo, 30.

ENCONTRO DE ORAÇÃO EM IZNIK

O momento mais emblemático da viagem apostólica à Turquia ocorreu na sexta-feira, 28, quando em Iznik – antiga Niceia –, situada a 130 quilômetros de Istambul, o Santo Padre participou de um encontro ecumênico de oração (foto acima) por ocasião dos 1.700 anos do primeiro Concílio de Niceia nas proximidades das escavações arqueológicas da antiga Basílica de São Neófito. Também lá estiveram o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu I, metropolitas e vários líderes religiosos, chefes das Igrejas e representantes das comunhões cristãs mundiais. Juntos, eles rezaram o Credo Niceno-Constantinopolitano.

O Santo Padre destacou que a fé “em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos […] consubstancial ao Pai” (Credo Niceno) é um vínculo profundo que une todos os cristãos e, assim, todos são chamados a superar o “escândalo das divisões” e alimentar o anseio pela busca da unidade.

“Quanto mais nós, cristãos estivermos reconciliados tanto mais poderemos dar um testemunho crível do Evangelho de Jesus Cristo, que é anúncio de esperança para todos, mensagem de paz e de fraternidade universal que ultrapassa as fronteiras das nossas comunidades e nações”, afirmou o Papa, destacando, ainda, que “o uso da religião para justificar a guerra e a violência, assim como qualquer forma de fundamentalismo e fanatismo, deve ser rejeitado com veemência”.

DECLARAÇÃO CONJUNTA EM BUSCA DA PLENA COMUNHÃO

No sábado, 29, no Palácio Patriarcal, em Istambul, Leão XIV e Bartolomeu I assinaram uma declaração conjunta, reafirmando a continuidade da busca de um caminho para a plena comunhão das duas Igrejas irmãs.

“Seguindo o exemplo dos nossos veneráveis predecessores e obedecendo à vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo, continuamos a caminhar com firme determinação na via do diálogo, no amor e na verdade (cf. Ef 4,15), rumo à tão esperada restauração da plena comunhão entre as nossas Igrejas irmãs. Conscientes de que a unidade cristã não é simplesmente o resultado de esforços humanos, mas um dom que vem do alto, convidamos todos os membros das nossas Igrejas – clero, monges, pessoas consagradas e fiéis leigos – a procurarem intensamente a realização da oração que Jesus Cristo dirigiu ao Pai: ‘Para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti […] e o mundo creia que Tu me enviaste’ (Jo 17, 21)”, lê-se na declaração.

No texto, o Santo Padre e o Patriarca recordaram que o primeiro Concílio de Niceia estabeleceu critérios para a celebração da Páscoa da Ressurreição de Jesus em uma mesma data: “É nosso desejo comum continuar o processo de explorar uma possível solução para celebrarmos juntos a Festa das Festas todos os anos. Esperamos e oramos para que todos os cristãos, ‘com toda a sabedoria e inteligência espiritual’ (Cl 1,9), comprometam-se com o processo de chegar a uma celebração comum da gloriosa Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Também lembraram os 60 anos da declaração conjunta de São Paulo VI e do Patriarca Ecumênico Atenágoras, em 7 de dezembro de 1965, que pôs fim às excomunhões recíprocas estabelecidas em 1054, o que abriu caminhos de reconciliação, paz e crescente comunhão entre as duas igrejas.

BÊNÇÃO ECUMÊNICA

No domingo, 30, após acompanhar a celebração da Divina Liturgia na Igreja Patriarcal de São Jorge, no Fanar, em Istambul, na festa do Apóstolo André, fundador da Sé de Constantinopla, o Papa Leão XIV assegurou: “A fé de André é também a nossa fé: a mesma professada pelos concílios ecumênicos e transmitida, intacta, pela Igreja ao longo dos séculos”. Também enfatizou que a fé expressa no Credo Niceno-Constantinopolitano continua a ser “um vínculo real de comunhão, que nos permite reconhecer-nos como irmãos e irmãs”. 

Ao final, o Patriarca e o Papa foram à sacada a Igreja Patriarcal para conceder, conjuntamente, a bênção ecumênica aos fiéis, em mais um evidente sinal da estrada que vem sendo pavimentada na busca da plena comunhão entre todos os batizados cristãos.

OUTRAS ATIVIDADES DE LEÃO XIV NA TURQUIA

ENCONTRO COM AS AUTORIDADES

Às autoridades turcas, em Ancara, na quinta-feira, 27, o Papa ressaltou que a pluralidade é a riqueza de um país e lembrou que todos devem ser dignamente respeitados como filhos de Deus. Também fez votos de que a Turquia “possa ser um fator de estabilidade e aproximação entre os povos, a serviço de uma paz justa e duradoura”; ao mesmo tempo em que lamentou os intensos conflitos globais, “em que prevalecem estratégias de poder econômico e militar, alimentando o que o Papa Francisco chamou de ‘terceira guerra mundial em pedaços’”.

COM A COMUNIDADE CATÓLICA

Na Catedral do Espírito Santo, em Istambul, na sexta-feira, 28, o Santo Padre lembrou aos bispos, sacerdotes, diáconos, consagrados e leigos católicos – que perfazem menos de 1% da população local – que “a lógica da pequenez é a verdadeira força da Igreja”. Ele sublinhou que a comunidade católica na Turquia é “fecunda como semente e fermento do Reino”; e a exortou ao diálogo ecumênico e inter-religioso, à transmissão da fé, ao serviço pastoral aos refugiados e migrantes e à perseverança no trabalho catequético.

COM IDOSOS E AS IRMÃZINHAS DOS POBRES

Ainda na sexta-feira, 28, Leão XIV foi à Casa de Acolhimento para Idosos das Irmãzinhas dos Pobres, congregação fundada em 1839 por Santa Joana Jugan. Ele lembrou que o segredo da caridade cristã é “ser com os outros, em uma partilha baseada na fraternidade”, e falou sobre o verdadeiro sentido da palavra ‘idoso’: “como o Papa Francisco gostava de repetir – os idosos são a sabedoria de um povo, uma riqueza para os netos, para as famílias e para toda a sociedade!”.

VISITA À MESQUITA AZUL

Repetindo o que fizeram seus predecessores – Bento XVI, em 2006, e Francisco, em 2014 –, Leão XIV visitou a Mesquita Sultan Ahmed de Istambul, também conhecida como Mesquita Azul, no sábado, 29. O Papa permaneceu “em silêncio, em espírito de recolhimento e escuta, com profundo respeito pelo local e pela fé daqueles que ali se reúnem em oração”.

MISSA EM ISTAMBUL

“Queremos caminhar juntos, valorizando o que nos une, derrubando os muros do preconceito e da desconfiança, promovendo o conhecimento e a estima recíproca, para dar a todos uma forte mensagem de esperança e um convite a tornarem-se ‘operadores de paz’”, exortou o Papa aos cerca de 4 mil fiéis que participaram da missa, no sábado, 29, na Volkswagen Arena, em Istambul. 

ORAÇÃO NA CATEDRAL APOSTÓLICA ARMÊNIA

“É a esta fé apostólica comum que devemos recorrer para recuperar a unidade entre a Igreja de Roma e as antigas Igrejas Orientais que existia nos primeiros séculos. Devemos também inspirar-nos na experiência da Igreja primitiva para restaurar a plena comunhão, que não implica absorção ou domínio, mas uma troca dos dons do Espírito Santo recebidos pelas nossas Igrejas para a glória de Deus Pai e a edificação do corpo de Cristo (cf. Ef 4,12)”, disse Leão XIV na visita de oração à Catedral Apostólica Armênia, em Istambul, no domingo, 30, sendo acolhido pelo Patriarca Sahak II Masalyan. 

O concílio que definiu as bases da fé cristã e a divindade de Cristo

Fernando Geronazzo
Especial para O SÃO PAULO

Fresco in Salone Sistino/Wikimedia Commons

O primeiro Concílio de Niceia ocorreu em Niceia da Bitínia (atual İznik, Turquia) entre 20 de maio e 25 de julho de 325. Ele é reconhecido como o primeiro concílio ecumênico da Igreja, palavra que deriva do grego oikoumenē e significa “a terra habitada” ou o “mundo civilizado”. Por ter reunido aproximadamente 300 bispos de diversas regiões do Império Romano e do mundo cristão conhecido, esse concílio adquiriu uma autoridade universal. 

A reunião somente foi possível porque aconteceu após o fim das grandes perseguições, quando a Igreja desfrutava de liberdade de culto. O imperador Constantino, que havia unificado o império em 324 e via na unidade da Igreja um fator importante para a estabilidade social, apoiou a realização do concílio. Embora não fosse batizado, ele garantiu o encontro ao colocar os serviços do exército imperial à disposição para as viagens e oferecer seu palácio em Niceia.

HERESIA ARIANA

O motivo principal para a realização do Concílio era a “crise ariana”, uma controvérsia teológica que questionava a natureza de Jesus Cristo. O conflito foi iniciado por Ário, um presbítero de Alexandria, que defendia que Cristo não possuía a mesma essência de Deus Pai. Segundo Ário, o Filho era uma criatura excelsa, mas não eterno ou consubstancial ao Pai. Essa doutrina herética, que ameaçava dividir a Igreja, já havia levado à excomunhão de Ário por seu bispo, Alexandre de Alexandria.

No debate conciliar, a defesa da fé tradicional foi liderada por figuras como Osio de Córdova (aparentemente o presidente das sessões) e o diácono Atanásio de Alexandria (futuramente um bispo influente). A tese ariana, apresentada por seus defensores, como Eusébio de Nicomédia, foi rejeitada pela grande maioria dos bispos por considerarem que ela traía a Tradição Apostólica sobre a divindade de Jesus Cristo.

CREDO NICENO

A decisão doutrinal central e mais duradoura do Concílio foi a formulação do Símbolo de Niceno (ou Credo). Este texto, autenticado pela maioria dos presentes em 19 de junho de 325, foi redigido com o propósito de estabelecer uma declaração de fé inequívoca contra o Arianismo.

O Credo definiu que Jesus Cristo é “da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado”. O termo técnico utilizado para selar a verdadeira divindade de Cristo foi o grego “homoousios tou Patrou”, que significa “consubstancial ao Pai”. Essa fórmula estabeleceu a identidade de natureza entre o Filho e o Pai. Apenas dois bispos, além de Ário, recusaram-se a subscrever o documento.

Além da questão doutrinal, o Concílio promulgou 20 cânones (leis eclesiásticas) e estabeleceu a uniformidade para a celebração da Páscoa. Ficou determinado que a Páscoa seria celebrada no primeiro domingo após a primeira lua cheia da primavera no Hemisfério Norte, alinhando-se à prática já estabelecida em Roma e em outras sedes eclesiásticas importantes.

PÓS-CONCÍLIO

Embora Constantino tenha dado todo o suporte de logística e organização, ele não influenciou diretamente a reflexão doutrinal, menos ainda nas decisões do Concílio. Os registros mostram que o imperador não tinha o conhecimento profundo de teologia para interferir nos debates. Além disso, a principal decisão tomada, o termo “consubstancial ao Pai”, não combinava com suas ideias pessoais, que pareciam pender para uma solução mais vaga e próxima do Arianismo.

Apesar de Ário ter sido condenado, o embate sobre a natureza de Jesus continuou forte depois de 325. A ideia do Arianismo manteve seguidores, e líderes importantes, como Santo Atanásio – que defendeu o Credo de Niceia –, chegaram a ser mandados para o exílio pelo próprio imperador. Isso prova que a aceitação total do que foi decidido no Concílio foi um processo difícil e demorado.

O primeiro Concílio de Niceia, no entanto, firmou a base da fé cristã. O Credo Niceno é alicerce reconhecido por quase todas as grandes tradições cristãs até hoje.

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