Em Marselha, o pedido do Papa: ‘Evitar o naufrágio da civilização’

50 mil pessoas vão à missa com o Papa em Marselha
Fotos: Vatican Media

Prevenir “o naufrágio da civilização”. O Papa Francisco viajou a Marselha, na França, entre os dias 22 e 23. O principal objetivo da breve passagem por lá foi participar da conclusão do evento “Rencontres Méditerranéennes” [Encontros Mediterrâneos]. Trata-se de um encontro entre 70 jovens e 70 bispos de muitos países com saída para o Mar Mediterrâneo, para refletir sobre o futuro dos espaços comuns marcados pela migração.

Na manhã do sábado, 23, o Papa Francisco foi ao Palácio du Pharo, em Marselha, e recordou que o mar é “um espaço de encontro entre as religiões abraâmicas, entre o pensamento grego, latino e árabe, entre a ciência, a filosofia e o direito, e entre muitas outras realidades”. O mar que no passado era uma porta para o mundo, hoje se tornou túmulo de milhares de pessoas que nele naufragam, tentando migrar para o continente europeu.

Francisco reza diante do memorial dedicado a marinheiros e migrantes desaparecidos

SOLIDARIEDADE COMO PURIFICADOR

“Hoje, o mar da convivência humana está envenenado pela precariedade”, disse o Pontífice. “E onde há precariedade, há criminalidade; onde há pobreza material, educativa, de trabalho, cultural e religiosa, o terreno das máfias e dos tráficos ilícitos é preparado”. Não basta dizer “não” à ilegalidade, reforçou o Papa, mas também é preciso dizer “sim à solidariedade, que não é uma gota no mar, mas o elemento indispensável para purificar as suas águas”.

A falta de cuidados com os estrangeiros, com os pobres e viajantes é a chave dos problemas. É a chamada “cultura do descarte”, recordou Francisco, a qual elimina os jovens que vivem na criminalidade e na prostituição, as pessoas escravizadas, as famílias empobrecidas, os idosos, as crianças ainda não nascidas. “Quem olha com compaixão além da própria costa para escutar o grito e a dor dos que deixam o Norte da África e o Oriente Médio?”, indagou, mencionando os que migram por causa da violência, da perseguição e da guerra.

É preciso transformar o Mar Mediterrâneo, de novo, em “berço da civilização”, pois hoje é o “túmulo da dignidade”. O medo da “invasão” dos migrantes e o uso constante de palavras como “emergência” leva ao medo e ao fechamento de portas, e não à acolhida, à colaboração. Trata-se, na visão de Francisco, de uma abordagem alarmista que produz uma fuga das responsabilidades.

Questionado pelos jornalistas, durante a coletiva de imprensa no voo de retorno a Roma, sobre suas mensagens a respeito da questão migratória – que se repetem ao longo dos últimos dez anos – o Papa Francisco afirmou acreditar que hoje há uma maior conscientização sobre o problema, ainda que as políticas evoluam muito lentamente. Entre as autoridades civis que o Papa encontrou na viagem esteve o presidente francês, Emmanuel Macron.

RESPONSABILIDADE PARTILHADA

Desde o início de seu pontificado, Francisco defende a “responsabilidade europeia”, ou seja, propõe que as políticas de imigração de todo o continente europeu sejam revistas e repensadas de forma a descarregar a pressão dos países que têm saída para o mar – entre eles Itália, Espanha, Grécia e Malta, por exemplo.

Os migrantes, afirmou ele, devem ser “acolhidos, protegidos ou acompanhados, promovidos e integrados”, mas isso não pode ser missão de somente alguns países. Citando São Paulo VI e sua encíclica Populorum progressio, Francisco argumentou que o “dever da solidariedade” corresponde à ajuda que os países ricos devem dar àqueles em desenvolvimento.

No lado dos migrantes, o Papa Francisco tem defendido políticas de apoio para que as pessoas possam escolher migrar ou não – em vez de terem que fazê-lo por falta de opção. Na mensagem para a 109ª Dia Mundial do Migrante e do Refugiado deste ano, celebrado no domingo, 24, Francisco afirma que todo ser humano deve ser “livre para partir e livre para ficar”. Diz ele: “Enquanto este direito não for garantido, e se trata de um longo caminho, serão ainda muitos os que precisam partir para buscar uma vida melhor.”

Além da questão migratória, o evento do qual o Papa participou discutiu desafios de teor ambiental, as disparidades econômicas e as tensões geopolíticas e religiosas entre os países do Mediterrâneo. Após Bari e Florença, na Itália, a cidade de Marselha foi escolhida como terceira sede do encontro por ser considerada uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. Trata-se de uma cidade fundada por navegadores gregos vindos da Ásia.

PESSOAS DE FÉ: EXEMPLARES NA ACOLHIDA

No encontro com líderes religiosos realizado na sexta-feira, 22, Francisco declarou que diante do drama de tantas pessoas muitas vezes não servem mais palavras, mas “humanidade, silêncio, choro, compaixão e oração”. É preciso “deixar-se tocar pela sua tragédia”. Ele afirmou, ainda, que enquanto o mar, para muitos, é a separação entre a vida e a morte, para a humanidade como um todo se trata da separação entre “a fraternidade e a indiferença”.

Disse ele: “Não podemos nos resignar a ver seres humanos tratados como moeda de troca, presos e torturados de forma atroz. Sabemos que, muitas vezes, quando os mandamos embora, eles estão destinados a ser torturados e presos. Não podemos mais testemunhar as tragédias dos naufrágios, devido ao tráfico odioso e ao fanatismo da indiferença. A indiferença torna-se fanática. Pessoas que correm o risco de se afogar ao serem abandonadas nas ondas devem ser resgatadas. É um dever da humanidade, é um dever da civilização!”

As pessoas que creem em Deus, acrescentou, devem ser “exemplares na acolhida recíproca e fraterna”. Não se devem deixar levar pelo “extremismo e a peste ideológica do fundamentalismo, que correm a vida real das comunidades”. É preciso construir “um mosaico de paz” e “não deixar naufragar a esperança”, completou.

Durante a missa que presidiu no sábado, 23, ele voltou ao ponto, dizendo: “A experiência da fé gera antes de tudo uma emoção diante da vida”, ou seja, “significa ser tocado por dentro, ter uma emoção interna, sentir que algo se move em nosso coração”. É o oposto de um “coração plano e frio, acomodado numa vida tranquila, que se fecha na indiferença e se torna impermeável, que endurece, insensível a tudo e a todos”.

Quem vive na fé, por outro lado, “reconhece a presença do Senhor, como o menino [João Batista] no ventre de Isabel”, acrescentou, referindo-se à passagem bíblica da visitação de Maria à sua prima, quando recitou a oração do Magnificat.

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