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Leão XIV: as periferias clamam por justiça e solidariedade

Leão XIV recebeu os Movimentos Populares reunidos em Roma para o V Encontro Internacional e a Peregrinação Jubilar. Recordando seu antecessor Francisco, reiterou que “terra, teto e trabalho” são “direitos sagrados”. Em seguida, apontou o dedo para o aumento das injustiças sociais, os “danos colaterais” causados pelas novas tecnologias, o tratamento desumano de migrantes e a disseminação de novas drogas sintéticas, como o fentanil, que está devastando os Estados Unidos.

Vatican Media

O Papa Leão XIV recebeu em audiência, na tarde desta quinta-feira, 23, na Sala Paulo VI, no Vaticano, os participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares.

Foi a primeira vez que Leão XIV os encontrou, prosseguindo o caminho iniciado pelo Papa Francisco, que, nos últimos anos, dialogou com essa realidade, “destacando sua importância profética no contexto de um mundo marcado por diversos desafios”.

“Um dos motivos pelos quais escolhi o nome “Leão XIV” é a Encíclica Rerum Novarum, escrita por Leão XIII durante a Revolução Industrial. O título Rerum Novarum significa “coisas novas”. Certamente há “coisas novas” no mundo, mas quando dizemos isso, geralmente adotamos uma “visão a partir do centro” e nos referimos a coisas como inteligência artificial ou robótica. No entanto, hoje, gostaria de olhar para as “coisas novas” com vocês, começando pela periferia.”

Das periferias as coisas parecem diferentes 

Leão XIV recordou que há mais de dez anos, precisamente em 28 de outubro de 2014, por ocasião do primeiro Encontro Mundial dos Movimentos Populares, o Papa Francisco os recebeu e disse que eles tinham ido, ao Vaticano, “plantar uma bandeira”. Francisco indicou os três Ts “Terra, teto e trabalho” como ponto fulcral da ação desses grupos que agem em nome da dignidade humana, da justiça social, do desenvolvimento dos mais pobres e dos descartados.

“Era uma ‘coisa nova’ para a Igreja, e era uma coisa boa! ​​Repetindo os pedidos de Francisco, hoje eu digo: terra, teto e trabalho são direitos sagrados, pelos quais vale a pena lutar por eles, e quero que vocês me ouçam dizer: ‘Estou dentro! Estou com vocês!'”, sublinhou o Papa Leão.

“Pedir terra, teto e trabalho para os excluídos é uma coisa nova?” Perguntou o Santo Padre, acrescentando:

“Visto dos centros do poder mundial, certamente não; quem tem segurança financeira e uma casa confortável pode considerar esses pedidos de alguma forma ultrapassados. As coisas realmente ‘novas’ parecem ser os veículos autônomos, objetos ou roupas da última moda, celulares de última geração, criptomoedas e outras coisas desse tipo. Das periferias, porém, as coisas parecem diferentes; a bandeira que vocês agitam é tão atual que merece um capítulo inteiro no pensamento social cristão sobre os excluídos no mundo de hoje.”

As periferias clamam por justiça

Vatican Media

“As periferias muitas vezes clamam por justiça, e vocês gritam não ‘por desespero’, mas ‘por desejo’: vocês gritam por soluções numa sociedade dominada por sistemas injustos. Vocês não o fazem com microprocessadores ou biotecnologia, mas, no nível mais básico, com a beleza do artesanato. Isso é poesia: vocês são ‘poetas sociais'”, disse ainda Leão XIV.

O Papa recordou que os participantes do Encontro Mundial dos Movimentos Populares levaram novamente hoje, ao Vaticano, “o estandarte da terra, do teto e do trabalho”, e isso “testemunha a vitalidade dos movimentos populares como construtores de solidariedade na diversidade”.

“A Igreja deve estar com vocês: uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja que se aproxima, uma Igreja que corre riscos, uma Igreja corajosa, profética e alegre!”

“O que eu acho mais importante é que seu serviço seja inspirado pelo amor”, disse ainda Leão XIV, afirmando que conhece “situações e experiências semelhantes em outros países, verdadeiros espaços comunitários repletos de fé, esperança e, acima de tudo, amor, que continua sendo a maior virtude de todas”. “De fato, quando cooperativas e grupos de trabalho são formados para alimentar os famintos, abrigar os sem-teto, ajudar os náufragos, cuidar de crianças, criar empregos, ter acesso à terra e construir casas, devemos lembrar que não estamos promovendo ideologia, mas sim vivendo verdadeiramente o Evangelho. É belo ver que os movimentos populares, antes mesmo da exigência da justiça, são movidos pelo desejo de amor, contra todo individualismo e preconceito”, recordou.

Pouca consciência do centro

Leão XIV lembrou sua vivência como bispo no Peru, afirmando que experimentou “uma Igreja que acompanha as pessoas em suas dores, alegrias, lutas e esperanças”.

“Isso é um antídoto contra uma indiferença estrutural que se está espalhando e que não leva a sério o drama dos povos despojados, roubados, saqueados e condenados à pobreza. Muitas vezes nos sentimos impotentes diante de tudo isso, mas a essa que chamei de “globalização da impotência” devemos começar a opor uma “cultura da reconciliação e do compromisso”. Os movimentos populares preenchem esse vazio gerado pela falta de amor com o grande milagre da solidariedade, baseada no cuidado do próximo e na reconciliação.”

De acordo com o Papa, “a discussão habitual sobre as ‘coisas novas’ — com seus potenciais e perigos — ignora o que acontece na periferia”. Segundo ele, “há pouca consciência do centro sobre os problemas que afetam os excluídos e, quando eles são abordados em discussões políticas e econômicas, parece «uma questão acrescentada quase por dever ou de modo tangencial, quando não simplesmente tratada como um dano colateral». De fato, no final das contas, eles frequentemente permanecem no fim da lista de prioridades. Pelo contrário, os pobres estão no centro do Evangelho. Portanto, as comunidades marginalizadas devem se envolver num esforço coletivo e solidário que vise reverter a tendência desumanizadora das injustiças sociais e promover o desenvolvimento humano integral”.

Ética da responsabilidade

A seguir, Leão XIV ressaltou que o compromisso dos Movimentos Populares “é ainda mais necessário num mundo que, como sabemos, está cada vez mais globalizado. Como afirmou Bento XVI, «os processos de globalização, se forem devidamente compreendidos e direcionados, abrem possibilidades sem precedentes para a redistribuição em larga escala da riqueza em todo o mundo; mas, se mal direcionados, podem levar ao aumento da pobreza e da desigualdade e podem até mesmo desencadear uma crise global»”.

“Isso significa que os dinamismos do progresso devem ser sempre gerenciados por meio de uma ética da responsabilidade, superando o risco da idolatria do lucro e colocando sempre o homem e seu desenvolvimento integral no centro. O ‘humano’ está no centro da visão de Santo Agostinho de uma ética da responsabilidade. Ele nos ensina como a responsabilidade, especialmente para com os pobres e aqueles que têm necessidades materiais, nasce do ser humano com seus semelhantes e, portanto, do reconhecimento de nossa ‘humanidade comum'”, destacou.

A exclusão hoje é a nova face da injustiça social

“Como todos compartilhamos a mesma humanidade, precisamos garantir que as ‘novidades’ sejam tratadas adequadamente. A questão não deve permanecer nas mãos das elites políticas, científicas ou acadêmicas, mas deve dizer respeito a todos nós”, sublinhou.

“A criatividade com que Deus dotou os seres humanos e que gerou grandes progressos em muitos campos ainda não conseguiu enfrentar da melhor forma os desafios da pobreza e, por isso, não conseguiu inverter a tendência da dramática exclusão de milhões de pessoas que permanecem à margem. Este é um ponto central no debate sobre as ‘coisas novas’.”

Leão XIV ressaltou que “hoje a exclusão é a nova face da injustiça social. A distância entre uma “pequena minoria” — 1% da população — e a vasta maioria aumentou drasticamente”. Esta exclusão é uma ‘novidade’ que o Papa Francisco denunciou como uma ‘cultura do descarte'”.

“Quando falamos de exclusão, também nos deparamos com um paradoxo. A falta de terra, comida, moradia e trabalho digno coexiste com o acesso às novas tecnologias que se espalham por toda parte através dos mercados globalizados. Os celulares, as redes sociais e até mesmo a inteligência artificial estão ao alcance de milhões de pessoas, incluindo os pobres. No entanto, embora cada vez mais pessoas tenham acesso à Internet, as necessidades básicas continuam sem ser atendidas.”

As “novidades” que impactam os excluídos

Em seu discurso, o Papa Leão abordou a questão das “‘novidades’ produzidas pelos centros de desenvolvimento tecnológico”. Porém, ressaltou o Pontífice, “sabemos que elas têm um impacto em todas as principais áreas da vida social: saúde, educação, trabalho, transportes, urbanização, comunicação, segurança, defesa, etc. Muitos desses impactos são ambivalentes: são positivos para alguns países e setores sociais, mas outros, por outro lado, sofrem ‘danos colaterais’. Mais uma vez, isso é resultado da má gestão do progresso tecnológico”.

A crise climática é outro aspecto das “novidades” que impactam sobre os excluídos. “É talvez o exemplo mais evidente”, disse o Papa, ressaltando que “vemos isso em todos os eventos climáticos extremos, sejam inundações, secas, tsunamis ou terremotos” e quem sofre mais “são sempre os mais pobres. Eles perdem o pouco que têm quando a água leva suas casas e muitas vezes são forçados a abandoná-las sem alternativas adequadas para retomar suas vidas. O mesmo acontece quando, por exemplo, agricultores, camponeses e povos indígenas perdem suas terras, sua identidade cultural e a produção local sustentável por causa da desertificação de seus territórios”.

Outro aspecto das “novidades” que afeta particularmente os marginalizados são “as angústias e esperanças dos mais pobres em relação aos modelos de vida que são constantemente promovidos hoje”. “Como um jovem pobre pode viver com esperança e sem ansiedade quando as redes sociais exaltam constantemente o consumo desenfreado e o sucesso econômico totalmente inatingível?”, perguntou o Papa, ressaltando outro problema: “A disseminação do vício em jogos de azar digitais. As plataformas são projetadas para criar dependência compulsiva e gerar hábitos viciantes”.

Drogas, causa de morte entre os pobres

Outro aspecto da “novidade” é a indústria farmacêutica, “que certamente representa um grande progresso em alguns aspectos, mas não está isenta de ambiguidades. Na cultura atual, auxiliada por certas campanhas publicitárias, promove-se uma espécie de culto ao bem-estar físico, quase uma idolatria do corpo. Nessa visão, o mistério da dor é interpretado de forma reducionista. Isso também pode levar ao vício em analgésicos, cuja venda obviamente aumenta os lucros dos próprios fabricantes. Isso também levou ao vício em opioides, que está devastando os Estados Unidos em particular; considere, por exemplo, o fentanil, a droga da morte, a segunda principal causa de morte entre os pobres naquele país. A disseminação de novas drogas sintéticas, cada vez mais letais, não é apenas um crime cometido por traficantes de drogas, mas uma realidade inerente à produção de medicamentos e ao lucro, desprovida de uma ética global”.

Leão XIV enfatizou que “o desenvolvimento das novas tecnologias de informação e telecomunicações depende de minerais frequentemente encontrados no subsolo de países pobres”.

“Sem o coltan da República Democrática do Congo, por exemplo, muitos dos instrumentos tecnológicos que usamos hoje não existiriam. No entanto, sua extração depende da violência paramilitar, do trabalho infantil e do deslocamento das populações.”

“O lítio é outro exemplo”, disse ainda o Pontífice, ressaltando que “a competição entre as grandes potências e grandes empresas por sua extração representa uma séria ameaça à soberania e à estabilidade dos países pobres, a ponto de alguns empresários e políticos se gabarem de promover golpes de Estado e outras formas de desestabilização política para se apropriar do ‘ouro branco’ do lítio”.

O Papa abordou “a questão da segurança”. “Os Estados têm o direito e o dever de proteger suas fronteiras, mas isso deve ser equilibrado pela obrigação moral de oferecer refúgio”, disse ele. “Com o abuso dos migrantes vulneráveis, não vemos o exercício legítimo da soberania nacional, mas sim crimes graves cometidos ou tolerados pelo Estado. Medidas cada vez mais desumanas – até mesmo politicamente celebradas – estão sendo adotadas para tratar esses “indesejáveis” como se fossem lixo e não humanos. O cristianismo, por outro lado, remete ao Deus amor, que nos torna todos irmãos e nos pede para vivermos como irmãos e irmãs”, sublinhou.

O Papa sente-se encorajado “ao ver como os movimentos populares, organizações da sociedade civil e a Igreja estão abordando essas novas formas de desumanização, testemunhando constantemente que quem é necessitado é nosso próximo, nosso irmão e irmã. Isso faz de vocês campeões da humanidade, testemunhas da justiça, poetas da solidariedade”.

Servir todas as classes sociais 

Leão XIV recordou que “na Rerum Novarum, Leão XIII observou que «as antigas corporações de trabalhadores foram abolidas no século passado, e nenhuma outra organização protetora as substituiu». Os pobres tornaram-se mais vulneráveis ​​e menos protegidos. Algo semelhante está acontecendo hoje, porque os sindicatos típicos do século XX representam agora uma porcentagem cada vez menor de trabalhadores, e os sistemas de seguridade social estão em crise em muitos países. Portanto, nem sindicatos, nem associações patronais, nem Estados, nem organizações internacionais parecem capazes de enfrentar esses problemas. Mas «um Estado sem justiça não é Estado», lembra-nos Agostinho. A justiça exige que as instituições de cada Estado sirvam a todas as classes sociais e a todos os cidadãos, harmonizando suas diversas necessidades e interesses”.

Segundo o Pontífice, “os movimentos populares, junto com pessoas de boa vontade — cristãos, fiéis e governos — são urgentemente chamados a preencher esse vazio, iniciando processos de justiça e solidariedade que se espalhem por toda a sociedade”.

Os movimentos populares na Dilexi te

Citando sua Exortação Apostólica Dilexi te, ele lembrou que “vários movimentos populares, compostos por leigos e guiados por líderes populares, […] foram frequentemente vistos com desconfiança e até perseguidos”.

“No entanto, as suas lutas em prol da terra, da moradia e do trabalho por um mundo melhor merecem encorajamento. Assim como a Igreja apoiou a formação de sindicatos no passado, hoje devemos acompanhar os movimentos populares. Isso significa apoiar a humanidade, caminhar juntos no respeito partilhado pela dignidade humana e no desejo comum de justiça, amor e paz.”

“A Igreja apoia suas justas lutas por terra, teto e trabalho. Como meu predecessor Francisco, acredito que os caminhos certos partem de baixo e da periferia em direção ao centro. Suas várias iniciativas criativas podem ser transformadas em novas políticas públicas e direitos sociais. Sua busca é legítima e necessária”, concluiu.

Fonte: Vatican News

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