A “Evangelii gaudium” de Francisco guiou o discurso de Leão XIV aos seus colaboradores da Cúria Romana, ocasião em que o Pontífice apontou para os desafios da missão e da comunhão, sem se deixar paralisar pela rigidez, ideologia ou amargura: “Percebemos com desgosto que certas dinâmicas relacionadas ao exercício do poder, ao desejo desenfreado de se destacar e à defesa dos próprios interesses custam a mudar. E perguntamo-nos: é possível ser amigos na Cúria Romana?”

O Papa Leão XIV se reuniu esta manhã com seus colaboradores da Cúria Romana para um evento tradicional: as felicitações natalinas. Depois da saudação do Cardeal-Decano, Giovanni Battista Re, o Santo Padre tomou a palavra para discorrer sobre os principais acontecimentos eclesiásticos do ano e começou recordando o seu “amado predecessor, Papa Francisco“.
“A sua voz profética, o seu estilo pastoral e o seu rico magistério marcaram o caminho da Igreja nestes anos, encorajando-nos sobretudo a recolocar a misericórdia de Deus no centro, a dar maior impulso à evangelização, a ser uma Igreja alegre e feliz, acolhedora para com todos e atenta aos mais pobres.”
Os desafios da missão e da comunhão
E foi inspirando-se na Exortação Apostólica Evangelii gaudium que Leão XIV aprofundou dois aspectos fundamentais da vida da Igreja: a missão e a comunhão.
O texto do seu predecessor, analisou o Santo Padre, encoraja a progredir na transformação missionária da Igreja, que encontra a sua inesgotável força no mandato de Cristo Ressuscitado. Assim, prosseguiu, a missão de Jesus na terra torna-se critério de discernimento para a nossa vida, para o nosso caminho de fé e para as práticas eclesiais, assim como para o serviço prestado na Cúria Romana. “Com efeito, as estruturas não devem sobrecarregar e retardar a difusão do Evangelho ou impedir o dinamismo da evangelização; pelo contrário, devemos ‘fazer com que todas elas se tornem mais missionárias’ (EG 27).”
Na mesma linha de Francisco, Leão XIV defendeu que o trabalho da Cúria seja animado por este espírito e promova a solicitude pastoral ao serviço das Igrejas particulares e dos seus pastores: “Precisamos de uma Cúria Romana cada vez mais missionária, onde as instituições, os departamentos e as funções sejam pensados tendo em vista os grandes desafios eclesiais, pastorais e sociais de hoje, e não apenas para garantir a administração ordinária”.
O risco da rigidez e da ideologia
Ao mesmo tempo, na vida da Igreja, a missão está intimamente ligada à comunhão, sinal de uma nova humanidade em Cristo já não mais fundada na lógica do egoísmo e do individualismo, mas no amor mútuo e na solidariedade recíproca. O Pontífice considera esta uma tarefa extremamente urgente, seja ad intra que ad extra.
“É ad intra, pois a comunhão na Igreja continua a ser um desafio que nos chama à conversão. Por vezes, por trás de uma aparente tranquilidade, agitam-se os fantasmas da divisão. E estes fazem-nos cair na tentação de oscilar entre dois extremos opostos: uniformizar tudo sem valorizar as diferenças ou, ao contrário, exacerbar as diversidades e os pontos de vista em vez de procurar a comunhão. Dessa forma, nas relações interpessoais, nas dinâmicas internas dos gabinetes e das funções, ou ao tratar de temas que dizem respeito à fé, à liturgia, à moral e outros, corremos o risco de cairmos vítimas da rigidez ou da ideologia, com as contraposições que daí advêm.”
Sobretudo na Cúria, acrescentou o Papa, a Igreja é chamada a ser construtora da comunhão de Cristo, que quer tomar forma numa Igreja sinodal, onde todos colaboram e cooperam na mesma missão, cada um segundo o seu próprio carisma e função. Todavia, advertiu, isso se constrói, mais do que com palavras e documentos, através de gestos e atitudes concretas que devem se manifestar no quotidiano, também no ambiente de trabalho.
É possível ser amigos na Cúria Romana?
O Pontífice lamentou certa “amargura” que às vezes também se espalha entre os colaboradores da Cúria. Talvez após muitos anos de serviço, percebe-se “com desgosto que certas dinâmicas relacionadas ao exercício do poder, ao desejo desenfreado de se destacar e à defesa dos próprios interesses custam a mudar”. E questionou:
“É possível ser amigos na Cúria Romana? Ter relações de amigável fraternidade? No esforço quotidiano, é muito bom quando encontramos amigos em quem podemos confiar, quando caem máscaras e subterfúgios, quando as pessoas não são usadas nem “passadas por cima”, quando nos ajudamos mutuamente, quando a cada um se reconhece o seu valor e a sua competência, evitando insatisfações e rancores. Há uma conversão pessoal que devemos desejar e perseguir, para que nas nossas relações transpareça o amor de Cristo que faz de todos nós irmãos.”
Tudo isso, continuou Leão, se torna um sinal também ad extra, num mundo ferido por discórdias, violências e conflitos, no qual se assiste também a um aumento da agressividade e da raiva, frequentemente instrumentalizadas pelo mundo digital e pela política. O Natal do Senhor, portanto, traz consigo o dom da paz e convida a tornarmo-nos um sinal profético num contexto humano e cultural excessivamente fragmentado. Assim, o trabalho da Cúria e o da Igreja em geral devem ser pensados também neste amplo horizonte, de que “não somos pequenos jardineiros ocupados em cuidar do próprio jardim, mas discípulos e testemunhas do Reino de Deus”.
Colocar Cristo no centro
“Caríssimos, a missão e a comunhão são possíveis se recolocarmos Cristo no centro”, encorajou o Santo Padre, citando dois eventos celebrados durante o Ano Santo, o Concílio de Niceia e o Concílio Vaticano II. E antes de concluir, mencionou os 50 anos da promulgação da Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, de Paulo VI, documento que recorda que o trabalho de cada um é importante para o todo, e o testemunho de uma vida cristã, que se expressa na comunhão, é o primeiro e maior serviço que podemos oferecer.
O Pontífice se despediu citando o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, que meditando sobre o mistério do Natal escreveu: “Deus não se envergonha da insignificância do homem, mas entra nela. […] Deus ama o que está perdido, o que não é considerado, o insignificante, o que é marginalizado, fraco e abatido”.
“Que o Senhor nos conceda a sua mesma condescendência e compaixão, e o seu amor, para que nos tornemos, a cada dia, seus discípulos e testemunhas. Desejo, de coração, a todos vocês, um Feliz Natal! Que o Senhor nos traga a sua luz e dê paz ao mundo!”
Ao final do discurso, o Papa saudou um a um os seus colaboradores, oferecendo de presente uma cópia do livro “A prática da presença de Deus”.
Fonte: Vatican News





