Papa Leão XIV lembrou que eles ‘testemunharam a fé sem nunca usar as armas da força e da violência, mas abraçando a força frágil e mansa do Evangelho’

Fotos: Vatican Media
“Em comunhão com os mártires e testemunhas da fé, voltemos o olhar para aqueles que, nos últimos 25 anos, derramaram o seu sangue em fidelidade a Cristo”. Assim exortou o Papa Leão XIV no começo da celebração ecumênica realizada na tarde do domingo, 14, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, em Roma, em memória dos mais de 1,6 mil cristãos martirizados neste século.
O número foi apresentado, no dia 8, pela Comissão dos Novos Mártires – Testemunhas da Fé, instituída pelo falecido Papa Francisco em 2023.
A Comissão, vinculada ao Dicastério das Causas dos Santos, deu continuidade à pesquisa iniciada no Grande Jubileu do ano 2000, e contabilizou 1.624 mártires cristãos no século XXI, dos quais: 643 na África (cerca de 39% do total), 357 na Ásia e Oceania, 304 nas Américas, 277 no Oriente Médio e 43 na Europa, sendo que 110 entre os martirizados em outros continentes também eram europeus.

PERSEGUIDOS EM RAZÃO DA FÉ
Na coletiva de imprensa de apresentação dos dados, no dia 8, Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e vice-presidente da Comissão, comentou que estes cristãos foram mortos após vivenciarem situações de perseguição religiosa, violência de organizações criminosas, ataques terroristas, conflitos étnicos ou por viverem em áreas de exploração de recursos naturais: “Muitas vezes, a própria presença de um cristão como uma pessoa honesta, cumpridora da lei e dedicada ao bem comum incomoda quem busca promover agendas criminosas”.
Em entrevista ao O SÃO PAULO, Rodrigo Arantes, porta-voz no Brasil da fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN), explicou que as perseguições aos cristãos decorrem de uma combinação de fatores.
“Um deles é o crescimento do extremismo religioso, sobretudo de grupos fundamentalistas que veem a fé cristã como ameaça. Outro são os governos autoritários que consideram a religião como rival do poder do Estado e restringem a liberdade de culto. Também não podemos esquecer os conflitos étnicos, nos quais os cristãos se tornam alvos de violência. Além disso, há a indiferença internacional: em várias situações, perseguições persistem porque o mundo fecha os olhos, considera a fé um assunto secundário. O resultado é que comunidades cristãs se tornam alvos fáceis”, afirmou Arantes.

SITUAÇÃO ALARMANTE NA ÁFRICA
Questionado sobre as razões que levam o continente africano a liderar os indicadores de cristãos perseguidos, o porta-voz da ACN Brasil destacou que há causas históricas ligadas a hostilidades étnicas, religiosas e coloniais, mas que o agravamento atual, especialmente na região do Sahel, ocorre em função do avanço de grupos extremistas islamistas em localidades de países como Nigéria, Burkina Faso e Máli; e à fragilidade ou mesmo à ausência de proteção estatal em muitas regiões.
Arantes detalhou, ainda, que em contextos de guerra e instabilidade, como têm ocorrido no continente africano, os cristãos acabam sendo usados como pretexto para tensões e conflitos: “Como o Estado não consegue proteger sua população, os cristãos ficam completamente vulneráveis, sendo atacados, expulsos e até mortos simplesmente por testemunharem sua fé. Além disso, são vistos como representantes do ‘Ocidente’ e, por isso, sofrem perseguição também de caráter político e cultural”. Ele lembrou, porém, que o continente é um dos com maior vitalidade do Cristianismo atualmente: “Milhões de fiéis mantêm sua fé viva e vibrante, mesmo sob o peso da violência”.

ANCORADOS NA ESPERANÇA
Dom Fabio Fabene, Secretário do Dicastério das Causas dos Santos e Presidente da Comissão, declarou na coletiva de imprensa que “é justamente no martírio que a Igreja já está unida”, e que os cristãos que foram martirizados “fixaram a âncora da esperança não na realidade do mundo, mas no coração de Deus”.
Padre Marco Gnavi, Secretário da Comissão, também sublinhou que “a esperança foi a razão de suas vidas antes da morte”, e que recordar estes mártires, especialmente neste Ano Jubilar, é um convite a “enfrentar a atual mudança de época com um toque da coragem, da verdade, da caridade e do amor à paz que eles testemunharam”.
Na avaliação de Arantes, ter dados documentados pelo Vaticano sobre a perseguição que os cristãos têm sofrido ajuda no engajamento contra esta realidade: “Os números transformam em evidência aquilo que muitas vezes se tentava relativizar ou minimizar; e fortalecem a solidariedade e a oração: quando os fiéis sabem que existem 1,6 mil mártires recentes, percebem que essa é uma realidade da Igreja de hoje, não apenas de séculos passados. Isso inspira engajamento em iniciativas como o Dia de Oração pelos Cristãos Perseguidos – celebrado todos os anos no dia 6 de agosto – e dá sentido às ações de ajuda da ACN”.
‘O AMOR MAIS FORTE QUE A MORTE’
Na homilia da celebração ecumênica, o Papa Leão XIV dirigiu seu abraço da paz aos representantes das Igrejas Ortodoxas, das Antigas Igrejas Orientais e das comunhões cristãs e das organizações ecumênicas.
Recordando o que disse São João Paulo II na Comemoração dos Testemunhos da Fé no século XX, em maio de 2000, Leão XIV ressaltou que “onde o ódio parecia permear todos os aspectos da vida, estes audaciosos servos do Evangelho e mártires da fé demonstraram de forma evidente que ‘o amor é mais forte que a morte’”.
O Papa enfatizou que ainda hoje muitos cristãos “por causa do seu testemunho de fé em situações difíceis e contextos hostis, carregam a mesma cruz do Senhor: como Ele, são perseguidos, condenados, mortos”, e, assim, “pagam com a vida a fidelidade ao Evangelho; o compromisso com a justiça; a luta pela liberdade religiosa onde ela ainda é violada; e a solidariedade com os mais pobres”.

TESTEMUNHOS QUE REVERBERAM NA ATUALIDADE
O Pontífice enfatizou ainda que neste Ano Jubilar celebrar este mártires também é uma maneira de difundir o Evangelho em um mundo “marcado pelo ódio, pela violência e pela guerra”; e que eles transmitem “uma ‘esperança desarmada’; testemunharam a fé sem nunca usar as armas da força e da violência, mas abraçando a força frágil e mansa do Evangelho”.
Leão XIV mencionou três deles: a Irmã Dorothy Stang – assinada no Brasil em 2005 – “empenhada na causa dos sem terra na Amazônia”; o Padre Ragheed Ganni, sacerdote caldeu de Mossul, no Iraque – morto em 2007 – “que renunciou à luta para testemunhar como se comporta um verdadeiro cristão”; e o Irmão Francisco Tofi, anglicano e membro da Melanesian Brotherhood – morto em 2003 – “que deu a vida pela paz nas Ilhas Salomão”.
Por fim, o Pontífice destacou que ao recordar estes mártires, os cristãos de hoje o fazem “certos de que, tal como nos primeiros séculos, também no terceiro milênio o sangue dos mártires é semente de novos cristãos (cf. Tertuliano, Apologeticum 50,13). Queremos preservar a memória juntamente com os nossos irmãos e irmãs das outras Igrejas e comunidades cristãs. Desejo, portanto, reiterar o compromisso da Igreja Católica em guardar a memória dos testemunhos da fé de todas as tradições cristãs”.
Durante o ato ecumênico, mencionou-se nominalmente alguns dos 1.624 mártires do século XXI, e, em um gesto simbólico, lâmpadas acesas foram colocadas aos pés da cruz para lembrá-los e para indicar que a luz da fé nunca morre.
(Com informações de Vatican News e Avennire)