Cerimônia de beatificação foi presidida pelo Papa Francisco, no domingo, 4, no Vaticano
Chuva e trovão marcaram o dia da beatificação do Papa João Paulo I, no Vaticano, fazendo lembrar a brevidade do seu pontificado: uma passagem relâmpago, mas inesquecível, de apenas 34 dias pelo trono de Pedro. Entretanto, a vida de Albino Luciani – seu nome de batismo – foi mais do que um risco de luz na história da Igreja. Mais do que a efemeridade, a profundidade foi a sua marca.
Conhecido como “Papa Sorriso” por causa de sua notável simpatia e afabilidade, João Paulo I foi beatificado no domingo, 4, em cerimônia na Praça São Pedro, presidida pelo Papa Francisco. O Beato João Paulo I foi eleito Sumo Pontífice em agosto de 1978 e, é verdade, teve um dos pontificados mais breves da história, interrompido por uma morte súbita, que os médicos da época atribuíram a um infarto.
João Paulo I, que escolheu esse nome em homenagem a seus antecessores, João XXIII e Paulo VI (ambos considerados Santos pela Igreja), é lembrado com afeto em todos os lugares por onde passou. Em especial, deixou boas memórias – e devotos – na sua diocese de origem, a italiana Belluno-Feltre, na Diocese de Vittorio Veneto, onde foi Bispo, e em Veneza, onde foi Patriarca e Cardeal, sempre no Nordeste da Itália. Seu nome foi retomado por seu sucessor, João Paulo II, também Santo, que o honrou após ser eleito em 16 de outubro de 1978.
VIRTUDES E VALORES
Ao menos três virtudes e dois valores se destacam na trajetória do Beato João Paulo I. As virtudes são as teologais – fé, esperança e caridade –, que pregou na vida e no seu breve pontificado. Segundo ele, são “o centro de toda a vida cristã” e, por isso, escolheu representá-las na forma de três estrelas tanto no seu brasão episcopal quanto no papal. Ele também falava dessas virtudes em suas catequeses semanais como Papa.
Já os dois valores principais que ele representou foram a humildade e a paz, como fica claro nos testemunhos daqueles que o conheceram e estudaram. O Papa Luciani era um homem que insistia na simplicidade, em palavras e gestos. Falava de maneira simples, dócil e acessível. E foi o primeiro a não ser coroado com a “tiara papal”, que se assemelha às coroas dos reis e monarcas. Ele acompanhou a mudança feita por Paulo VI, que após a coroação adotou a mitra episcopal, usada por todos os bispos.
“A humildade pode ser considerada o seu testamento espiritual”, disse o Papa Bento XVI, na ocasião do 30° aniversário de morte de João Paulo I. Conforme o Cardeal Beniamino Stella, postulador da causa de canonização, a palavra humilitas (humildade) foi muito presente na vida e no episcopado de Albino Luciani.
“Ela representa a cifra, nítida e eloquente, do seu ser clérigo, isto é, sacerdote e bispo, e, no fim, Pontífice da Igreja”, escreve, em artigo no jornal Avvenire. João Paulo I “sentia, com convicção profunda, do coração, a obra de Deus em sua vida”, diz o Cardeal.
O Papa Luciani também fez a Igreja avançar nos caminhos indicados pelo Concílio Vaticano II, antecipando um percurso inovador para sua época e considerado ainda atual. A unidade dos cristãos, o diálogo inter-religioso e a promoção da paz foram prioridades nos 34 dias do Papa João Paulo I, afirma, também no Avvenire, o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano e Presidente da Fundação João Paulo I.
Segundo o Cardeal Parolin, o novo Beato convidou os povos à “reconciliação e à fraternidade”, pedindo que a paz, “tão vulnerável no mundo”, fosse promovida tanto entre nações quanto internamente, em cada uma delas. “Partindo de um olhar de fé”, João Paulo I falou aos poderosos do mundo com “a coragem da prudência” e a “força da fé, da santidade, da oração”.
Papa Francisco: ‘Seu sorriso transmitiu a bondade do Senhor’
“Com o sorriso, o Papa Luciani conseguiu transmitir a bondade do Senhor”, disse Francisco, na homilia da missa de beatificação, no domingo, 4. “Como é bela uma Igreja com o rosto alegre, o rosto sereno, o rosto sorridente, uma Igreja que nunca fecha as portas, que não azeda os corações, que não se lamenta nem guarda ressentimentos, que não é nervosa nem intolerante, não se apresenta com modos rudes, nem sofre de saudades do passado, caindo no retrogradismo”, acrescentou o Pontífice.
A visão de Igreja do Papa Francisco não está distante daquela do novo Beato. Em suas palavras, João Paulo I viveu “a alegria do Evangelho, sem exceção, amando até o fim”. Ele superou a tentação de se colocar no centro de tudo e de “buscar a própria glória”, como fazem muitos líderes de hoje, disse Francisco. Em vez disso, foi como Cristo, um “pastor suave e humilde”.
Como parte do rito de beatificação, um retrato de Albino Luciani foi revelado na Praça São Pedro, uma pintura do artista chinês Yan Zhang. Também suas relíquias foram levadas até o altar, durante a cerimônia. A beatificação autoriza a devoção ao novo Beato em âmbito local – onde se iniciou o processo –, mas, em se tratando de um Sumo Pontífice, Francisco escolheu celebrá-la pessoalmente, no Vaticano.
O ESTILO DE CRISTO
Nesse sentido, Francisco alertou para os líderes que se apresentam como um “salvador que resolverá problemas, enquanto, na verdade, querem aumentar o próprio prazer e poder”. Esse não é o estilo de Cristo, disse. Pois Cristo “carrega a Cruz” com os seus próprios pesos, mas também os dos outros. Francisco afirmou que os que seguem a Cristo devem olhar mais para Ele do que para si mesmos.
E, lembrando as palavras de João Paulo I em uma audiência geral de 1978, repetiu: “Sejam humildes. Mesmo se vocês tiverem feito grandes coisas, digam: ‘somos servos inúteis”. Atrás de uma “perfeita aparência religiosa’”, continuou Francisco, pode-se “esconder a mera satisfação das próprias necessidades, a busca pelo prestígio pessoal, o desejo de ter um papel, de ter as coisas sob controle, a ganância de ocupar espaços, obter privilégios, a aspiração de receber reconhecimentos, e muito mais”.
O SORRISO DA ALMA
O estilo do discípulo de Cristo e da Igreja, diz ele, é “carregar a Cruz” (Lc 14,27), e, como ele, “fazer da vida um dom, não uma posse, expandi-la imitando o amor generoso e misericordioso que ele tem por nós”. Francisco insistiu que é preciso “amar sem medidas”, pois de Deus recebemos “um amor que nunca se vai” e “ilumina também as noites mais escuras”, com um amor de pai e mãe – conforme ensinava João Paulo I.
Conforme lembrou o Papa Francisco, Cristo pede aos seus discípulos para fazerem renúncias, mas elas serão preenchidas pela vida vivida por bens mais profundos. Trata-se de “viver o Evangelho, e assim se viverá a vida, não pela metade, mas até o fundo”, doando-se ao próximo e “amando até o fim”. Como ensinava o novo Beato, disse ele, é preciso pedir a Deus para “nos aceitar como somos, mas nos transformar no que Ele deseja” e, dessa forma, transmitir aos outros “o sorriso da alma”.
A MENINA MIRACULADA
O processo de canonização de Albino Luciani foi aberto na sua diocese de origem, Belluno-Feltre, e por mais de dez anos os postuladores da causa levantaram dados, escritos e documentos sobre sua vida. Tudo tem seguido o trâmite previsto. O milagre reconhecido para a beatificação de João Paulo I foi o de uma menina curada sem explicação científica, na Argentina.
Candella Giarda, de 11 anos (hoje 22), tinha uma “grave encefalopatia inflamatória aguda”, segundo os médicos. Trata-se de uma complicada infecção no cérebro, que levava a menina a ter convulsões, fortes dores de cabeça, vômito e febre. Ela viveu doente por cerca de quatro meses. Em 22 de julho de 2011, em Buenos Aires, Candella foi diagnosticada com uma infecção generalizada (choque séptico), e os médicos falavam de uma “morte iminente”.
Porém, em 23 de julho, houve uma melhora repentina e uma gradual recuperação da menina. Em setembro do mesmo ano, ela recebeu alta do hospital. Segundo relatos dos postuladores da causa de João Paulo I, as orações partiram do Padre José Dabusti, que atendia o hospital onde ela ficou internada. Ele incentivou a família e outros fiéis a pedir a intercessão do Papa Luciani. A cura foi atribuída à participação do novo Beato, pois considerada “extraordinária” pelo Dicastério para as Causas dos Santos, no Vaticano.
Batizado em casa, Luciani viveu a fé recebida na família
Albino Luciani, que viria a se tornar o Papa João Paulo I, nasceu em 17 de outubro de 1912 numa família simples, na zona rural de Belluno, pequena cidade no Nordeste da Itália. Filho de Giovanni Luciani e Bortola Tancon, viveu situações de precariedade desde o nascimento, mas a fé simples de sua família o orientou ao longo da vida.
Sua mãe teve um parto complicado. Temendo pela vida do bebê, a parteira, Maria Fiocco, o batizou em casa – como prevê a Igreja em situações de urgência. O batismo foi reconhecido dois dias depois, pelo pároco local.
Albino vivia em meio às montanhas e o frio. Na infância, sofreu muito com uma pneumonia, mas foi tratado por um médico amigo e sobreviveu novamente. Durante as invasões da 1a Guerra Mundial – ele mesmo contava em suas pregações –, viveu a experiência da fome, especialmente entre 1917 e 1918. E tinha mais três irmãos; um deles morreu ainda criança.
Entrou no seminário menor em 1923, em Feltre, com apenas 11 anos, e depois passou ao seminário maior, em Belluno. Foi ordenado diácono e presbítero em 1935. Estudou Teologia em Roma, na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde fez mestrado e doutorado. Seu ministério episcopal começou em 1958, quando foi nomeado Bispo de Vittorio Veneto pelo Papa João XXIII.
Sua participação no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, impactou seu ministério. Nas sessões do Concílio, ele falou sobre a colegialidade entre os bispos, e o encontro com bispos de países mais pobres lhe despertou o interesse pelas missões. Chegou a enviar missionários ao Burundi e ao Brasil.
Paulo VI, que gostava muito de Luciani, o transferiu para Veneza em 1969, onde anteriormente o Pontífice havia sido Patriarca e Cardeal. Desse modo, Albino Luciani o sucedeu duas vezes: a segunda, quando também se tornou Papa, eleito no conclave de agosto de 1978, na quarta votação. Foi uma eleição rápida. Em seu discurso de posse, ele disse que não tinha nem a sabedoria do Papa João XXIII nem a “preparação e cultura” de Paulo VI, mas buscaria servir a Igreja. “Espero que vocês me ajudem com suas orações”, pediu.
João Paulo I morreu de forma imprevista, mas natural – reconhece a Igreja. Conforme os relatórios médicos, foi por volta das 23h de 28 de setembro de 1978. Ele foi encontrado deitado, em sua cama, pelas religiosas que viviam com ele. Após somente 34 dias de pontificado é como se estivesse adormecido enquanto lia. Segundo os médicos, deixou este mundo de maneira sutil, tranquila e silenciosa.