
Padre Márlon Múcio, presbítero da Diocese de Taubaté (SP) e conhecido em todo o Brasil por sua trajetória de fé, entrega e superação, está celebrando 25 anos de sacerdócio. Natural de Carmo da Mata (MG), ele foi ordenado padre em 30 de junho de 2000.
Nesta entrevista ao O SÃO PAULO, o fundador da Comunidade Missão Sede Santos revisita momentos de sua caminhada ministerial, compartilha os frutos da missão com os mais vulneráveis e revela como sua dor e fragilidade também se tornaram instrumentos de evangelização e esperança.
O SÃO PAULO - O que mais marcou o início de sua vocação e o chamado ao sacerdócio?
Padre Márlon Múcio – Até os 18 anos, eu tinha certeza de que seria médico. Desde os sete, já era coroinha, e aos 15 vivi uma experiência profunda com o Espírito Santo, que despertou em mim uma vida mais intensa com Deus e na comunidade. Mas foi aos 18, após comungar durante uma missa, que ouvi claramente Jesus falando à minha alma: ‘Márlon, você vai ser médico, sim, mas de almas. Você vai ser padre.’ Esse foi um momento decisivo na minha vocação.
O senhor vivencia o sacerdócio também carregando o desafio pessoal de uma doença rara. Como lida com essa realidade?
Viver o sacerdócio com uma doença rara é um grande desafio. As limitações físicas afetam diretamente o que o sacerdote é chamado a fazer: atender o povo, visitar enfermos, celebrar. Nos últimos tempos, 95% das minhas missas são celebradas na cama. Preciso me reinventar a cada dia. Mas é justamente a fé e o ministério que me sustentam. Se não fosse por eles, eu não teria suportado. Vivo porque sei que tenho uma missão: ser do Senhor e dos irmãos, trabalhar para a causa Dele e para a Sua casa.
Nestes 25 anos de padre, quais momentos o senhor considera como verdadeiros milagres ou sinais da presença de Deus no seu caminho?
Quando fui ordenado sacerdote, no ano 2000, não sabia que tinha uma doença ultrarrara. O diagnóstico só veio em 2019. Se eu, meus formadores ou o bispo soubéssemos antes, talvez eu nem tivesse entrado no seminário. Considero isso um milagre: a doença [Deficiência do Transportador de Riboflavina], que costuma se manifestar na infância de forma severa, foi aparecendo em mim de maneira branda ao longo dos anos. Acredito que Deus me poupou para que eu pudesse viver plenamente o ministério sacerdotal. Outro milagre foi em 2024, quando, pela primeira vez, peguei na mão de um Papa – Francisco. Olhar nos olhos dele, beijar sua mão, foi como um sinal de Deus para mim. Pouco tempo depois, estive em Roma para a canonização do Beato Carlo Acutis, que acabou sendo adiada pela morte do Papa. Mesmo com a doença avançando, viajei enfrentando uma infecção urinária e, já em Roma, ainda peguei uma pneumonia. Estava muito debilitado, mas consegui participar do funeral do Santo Padre.

A mãe do senhor, dona Carminha, está sempre ao seu lado. Como ela influenciou o seu ministério e o ajuda no enfrentamento da doença?
Assim como Jesus contou com a Virgem Maria, eu não existo como padre sem minha mãe Carminha. Ela é minha base, minha cooperadora na missão. Mamãe sempre esteve ao meu lado: viajou comigo por dez países evangelizando, e passou noites em claro ao meu lado na UTI, segurando minha mão. Ela cuida de mim com o amor que só uma mãe pode dar, sem deixar de amar igualmente meu irmão, Paulo Gustavo, que também tem seu lugar no coração dela. Deus deu Maria a Jesus. E a mim, Ele deu mamãe Carminha.
De que forma conviver com uma doença ultrarrara moldou o olhar do senhor sobre o próximo?
As nossas cruzes se tornam luzes, nossas chagas se transformam em missão, e os sofrimentos, em apostolado. Muitos dizem: ‘O Padre Márlon faz tanta coisa… imagine se não tivesse a doença’. Mas é justamente o contrário: sou quem sou e faço o que faço por causa da doença. Ela me potencializa. Os limites da cama hospitalar não me limitam. A fraqueza muscular, a fadiga crônica e as dores intensas não me impedem: elas me dão a graça de me unir à Paixão de Nosso Senhor. A enfermidade me tornou mais compassivo com a dor dos irmãos e, assim, meu ministério sacerdotal ganha mais sentido a cada dia, mesmo com a doença se tornando cada vez mais crônica. Sinto uma graça especial nessa união com a cruz. Ela me abre horizontes e me mantém vivo.
Ter uma doença ou limitação física, portanto, não deve nos impedir de viver a fé?
Nosso diagnóstico não nos define, e nossas limitações não nos impedem de servir. Todos temos cruzes – com ou sem doença – e é com elas que podemos ganhar o céu e levar outros com a gente. O segredo é transformar o sofrimento em oferta, como Jesus, Maria e os santos fizeram. Eles não pararam diante da dor, e nós também não devemos parar. O sofrimento pode ser a chave do céu, mas se o desprezamos, murmuramos ou brigamos com Deus, corremos o risco de jogá-la fora. Por isso, é preciso ter espiritualidade, bom humor e uma causa pela qual lutar. Mesmo sem sair de casa ou andar, é possível oferecer tudo pelo Papa, pela paz, pela família, pelos que sofrem. Cada um pode servir como pode. O importante é não desistir: nem da vida, nem da fé.

Fale-nos de outros projetos que o senhor mantém, como o Hospital dos Raros e a casa de acolhimento à população de rua.
A missão aos irmãos é inspirada em Mateus 25,32-46: ‘Tudo o que fizerdes a um dos meus irmãos mais pequeninos, é a mim que o fazeis.’ A cruz tem duas hastes: a vertical, que representa a relação entre mim e Deus; e a horizontal, que representa a relação entre mim e o irmão. O meu lema de vida é: “Sede santos” (1 Pedro 1,16). E não existe santidade sem conversão ao próximo. Não existe verdadeira intimidade com Deus que não nos permita ser feridos de amor por Ele – amor esse que transborda na direção dos irmãos. Tenho uma doença rara, mas ela não tem a mim. Eu a carrego, mas não sou definido por ela. Não é a doença que me fere – sou ferido de amor pelo Senhor. Sou doente, sim, mas de amor.
No início de seu pontificado – e muitas vezes depois – o Papa Francisco afirmou que “a Igreja é um hospital de campanha.” Vibrei com essa visão. Foi dela que nasceu o Hospital dos Raros, o primeiro do Brasil especializado no atendimento a pessoas com doenças raras, 100% gratuito.
Também atuamos com pessoas em situação de rua e dependência química. Em parceria com o Governo do Estado de São Paulo, administramos seis restaurantes populares, além de uma hospedaria em Taubaté. Tudo isso nasce da convicção de que quanto mais somos de Deus, mais somos irmãos. Quanto mais autêntica é nossa experiência de fé, menos centrados em nós mesmos e mais “em saída” nos tornamos – como uma Igreja viva, que ama, acolhe e serve.
Quais são os sonhos e projetos que o senhor ainda deseja realizar?
Tenho muitos sonhos inspirados pelo Espírito Santo e guiados por Nossa Senhora, que sempre ‘passa à frente’. Sonho com uma casa para acolher padres que sofrem no corpo e na alma; com uma comunidade terapêutica feminina, pois, enquanto há estruturas para homens, quase não há para mulheres; e com uma casa de acolhida para crianças vítimas de abuso. São projetos que vão sendo gestados no coração, alguns amadurecem lentamente, outros nascem de forma inesperada, mas todos com um único desejo: cuidar das dores dos filhos de Deus. Acima de tudo, sonho com o céu. Sonho com minha família e comunidade morando no céu. Sonho que cada pessoa experimente o batismo no Espírito Santo. Esse é um dos maiores sonhos do meu coração: que todos vivam a plenitude dessa graça prometida a todos, como diz o livro dos Atos dos Apóstolos.