‘A literatura tem sua origem nas mais remotas tradições narrativas, todas elas – nas mais diferentes latitudes do mundo antigo, vinculadas ao transcendente, ao divino’
Poetas, em todo o mundo e em diferentes épocas, sempre tiveram a fé como um tema recorrente em suas obras. Para alguns, a questão religiosa foi o motivo que os levou a escrever. É o caso de Dante Alighieri, poeta italiano do século XI. Considerado o primeiro e maior poeta de língua italiana, é dele a Divina Comédia, obra que relata uma viagem por meio do Inferno, Purgatório, e Paraíso.
Poetas brasileiros, modernos e contemporâneos, como Haroldo de Campos, Adélia Prado, Manuel Bandeira, Casimiro de Abreu ou Cora Coralina também escreveram muitos poemas que versam sobre o mistério da fé.
Para Roseli Hirasike, 54, graduada em Letras e Direito e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, pensar literatura e fé é preciso ir “além de um conjunto de obras escritas em prosa ou verso, de valor estético e cultural em um lugar e num tempo, para falar dos caminhos da fé que se expressam nas literaturas do mundo todo, eu antes preciso dizer que vejo a literatura como expressão da alma humana”.
Em entrevista ao O SÃO PAULO, Roseli, que atualmente é doutoranda na PUC-SP, falou ainda que obras de literatura ajudam a construir uma tradição. “A fé está muito presente na Literatura. Desde Homero, Dante e clássicos até a literatura periférica do Sacolinha (escritor paulistano da periferia). E sem ser clichê, mas já sendo, a fé que move montanhas, montanhas de signos, significados, sentidos e encontros. A Literatura? Sim, é um encontro com o mistério da fé”, disse.
A pesquisadora tem se dedicado ao estudo do poeta Haroldo de Campos, mas especificamente sobre o poema “A máquina do mundo repensada”. Para ela, “a apreciação deste poema conduz o leitor por um fio que o liga ao passado, à busca da redenção pelos grandes feitos, lembrando Os Lusíadas de Camões; a redenção após a morte por meio da fé, cantada na Divina Comédia de Dante; ou pela contínua busca do mistério, como nos lembra o poema ‘A Máquina do mundo de Carlos Drummond’”.
Paulo César Carneiro Lopes, 54, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, recordou ainda, de Manuel Bandeira, que é um dos poetas brasileiros que mais vezes usa citações bíblicas em seus textos: “A dimensão cristã faz parte da nossa cultura e a literatura, mais especificamente, tem sua origem nas mais remotas tradições narrativas, todas elas – nas mais diferentes latitudes do mundo antigo, vinculadas ao transcendente, ao divino”.
FÉ
(Adélia Prado)
Uma vez, da janela, vi um homem
que estava prestes a morrer,
comendo banana amassada.
A linha do seu queixo era já de fronteiras,
mas ele não sabia, ou sabia?
Como posso saber?
Comia, achando gostoso,
me oferecendo corriqueiro, todavia
inopinado perguntou
— ou perguntou comum como das outras vezes? —
Como será a ressurreição da carne?
É como nós já sabemos, eu lhe disse,
tudo como é aqui, mas sem as ruindades.
Que mistério profundo!, ele falou
e falou mais, graças a Deus,
pousando o prato.
HUMILDADE
(Cora Coralina)
Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.
Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.
Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa
SAGRAÇÃO DOS OSSOS
(Bruno Tolentino)
Considerai estes ossos
— tíbios, inúteis, apócrifos —
que sob a lápide dormem
sem prédica que os conforte.
Considerai: é o que sobra
de quem lhes serviu de invólucro
e agora já não se move
entre as tábuas do sarcófago.
Dormem sem túnica ou toga
e, quando muito, um lençol
lhes cobre as partes mais nobres
(as outras quedam-se à mostra,
não dos que estão aqui fora,
mas dos ácidos que os roem
ou do lodo que lhes molha
até a polpa esponjosa).
De quem foram tais despojos
tão nulos e sem memória,
tão sinistros quanto inglórios
em seu mutismo hiperbólico?
Onde andaram? Em que solo
deitaram sêmen e prole?
Foram químicos, astrólogos,
remendões, físicos, biólogos?
Ou nada foram? Que importa
não haja um só microscópio
lhes cevado a magra forma
ou a mais ínfima nódoa?
Existiram. Esse é o tópico
que aqui, afinal, se aborda.
E eis o faço porque, ao toque
de meus dedos em seus bordos,
tais ossos como que imploram
a mim que os chore e os recorde,
que jamais os deixe à corda
da solidão que os enforca,
nem à sanha do antropólogo
que os vê, não como o espólio
do que foi amor ou ódio,
lascívia, miséria e glória,
mas como a lívida prova
de que o sonho foi-se embora
e dele só resta a escória
numa urna museológica.
E, então, me pergunto, a sós:
por que desdenhar o outrora
se nele é que ecoa a voz
do que, no futuro, aflora?
Não bastaria uma rótula
para atestar esse cogito,
ergo sum, aqui e agora,
alheio a qualquer prosódia
ou língua em que se desdobre
essa falácia que aposta
no fundo abismo sem orlas
entre o que vive e o que morre?
Baixa uma névoa viscosa
sobre as pálpebras da aurora.
E ali, de pé, sob a estola
de um macabro sacerdote,
sagro estes ossos que, póstumos,
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte.
EU VI UMA ROSA
(Manuel Bandeira)
Eu vi uma rosa
– Uma rosa branca –
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua
Sozinha no mundo.
Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.
Tudo isso era excesso.
A graça essencial,
Mistério inefável
– Sobrenatural –
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.
Sozinha no tempo.
Tão pura e modesta,
Tão perto do chão
Tão longe na glória
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.
DIVINA COMÉDIA (Trecho do Canto I – Paraíso)
(Dante Alighieri)
À GLÓRIA de quem tudo, aos seus acenos,
Move, o mundo penetra e resplandece,
3 Em umas partes mais em outras menos.
No céu onde sua luz mais aparece,
Portentos vi que referir, tornando,
6 Não sabe ou pode quem à terra desce;
Pois, ao excelso desejo se acercando,
A mente humana se aprofunda tanto
9 Que a memória se esvai, lembrar tentando.
Os tesouros, porém, do reino santo,
Que arrecadar-me pôde o entendimento,
12 Serão matéria agora de meu canto.
Faz-me neste final cometimento,
Bom Febo, do teu estro eleito vaso,
15 Que tenha ao louro amado valimento.
Fora-me assaz um cimo do Parnaso;
Daquele e do outro necessito agora
18 Para vencer na liça a que me emprazo.
Cala em meu peito, alenta o que te exora!
Sê como quando a Marsias arrancado
21 Hás do corpo a bainha protetora!
Se, divinal virtude, eu for entrado
Tanto de ti, que a sombra represente
24 Do reino que em minha alma está gravado,
Ao teu querido lenho eu, diligente,
Irei, por ter a c’roa merecida
27 De ti e deste assunto preminente.
Tão rara vez é, Padre, igual colhida
Quando triunfa César ou poeta
30 (Culpa e vergonha do querer nascida)
Que à Délfica Deidade a predileta
Fronde excitar devera alta alegria,
33 Se um coração por tê-la se inquieta.
Grande incêndio em centelha principia;
Voz, após mim, talvez, mais eloqüente
36 Mais graça em Cirra alcance e mais valia!
DEUS
(Casimiro de Abreu)
Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia
E erguendo o dorso altivo, sacudia
A branca escuma para o céu sereno
E eu disse a minha mãe nesse momento:
“Que dura orquestra! Que furor insano!
“Que pode haver maior que o oceano,
“Ou que seja mais forte do que o vento?!”
Minha mãe a sorrir olhou pr’os céus
E respondeu: – Um Ser que nós não vemos
“É maior do que o mar que nós tememos,
“Mais forte que o tufão! Meu filho, é – Deus!”