Aos 100 anos, Madre Maria do Carmo é exemplo de consagração a Deus a serviço dos irmãos

Foto: Luciney Martins/O SÃO PAULO 

Lá está ela, sentada em sua cadeira de rodas, com seu hábito, véu e um sorriso estampado no rosto. Com bom humor, ela brinca com o fotógrafo, perguntando se ele está bravo, pois não consegue ver o seu sorriso escondido sob a máscara de proteção da pandemia.

Aos 100 anos, completados no dia 28 de outubro, Madre Maria do Carmo Veiga Castro escuta com dificuldade e sua memória já lhe escapa da mente. No entanto, as marcas dos anos de consagração a Deus a serviço dos mais necessitados estão muito bem vivas em todos os cantos da Casa Santa Zita, onde ela vive há 62 anos, e no coração das muitas pessoas que tiveram as vidas transformadas por essa Religiosa.

VOCAÇÃO 

Natural de Tietê (SP), Maria do Carmo nasceu em 28 de outubro de 1921. Filha de Francisco Alberto Veiga de Castro e de Zilda Camargo Veiga de Castro, viveu a infância e adolescência no internato das Irmãs de São José de Chamberri, em Itu (SP), onde recebeu formação educacional e religiosa.

Anos depois, já como professora, conheceu a Congregação das Irmãs de Santa Zita, fundada em 1950, pela Madre Maria Amélia de Andrade Reis, mulher engajada na Ação Católica, que sentiu o chamado para instituir algo voltado para o atendimento e formação das empregadas domésticas dos arredores dos bairros de Higienópolis e Santa Cecília. Essas moças, na sua maioria, eram analfabetas, moravam no emprego e muitas não tinham para onde ir durante as folgas ou férias. As doentes não tinham um lugar para serem cuidadas e, ao serem substituídas, viam-se igualmente sem destino. Assim, nasceu a Casa Santa Zita, que até hoje realiza esse trabalho voltado aos trabalhadores domésticos.

Maria do Carmo ingressou na congregação em 24 de setembro de 1958 e professou os votos perpétuos em 10 de maio de 1966, com 44 anos. Em dezembro de 1980, após a morte da fundadora, a então Irmã Maria do Carmo foi eleita superiora da congregação, cargo que exerceu por 28 anos e, tornou-se assim, a Madre da comunidade.

MISSÃO 

Irmã Maria (Lia) Rodrigues Costa, atual superiora da congregação, foi acolhida pela Madre Maria do Carmo em 1974. “Sempre me chamou a atenção a maneira como ela coordenava todos os trabalhos da casa e sempre tinha tempo para atender quem a procurava”, relatou a Religiosa, destacando que antes de se tornar superiora da congregação, a Madre ainda trabalhava como professora de Geografia no Liceu Coração de Jesus, em Campos Elísios, e, nos fins de semana, dava assistência aos seus pais idosos.

Em 2008, já com a saúde debilitada e com dificuldades para andar, Madre Maria do Carmo deixou o cargo de superiora. Mesmo assim, não queria parar de trabalhar. “Até poucos anos, ela fazia questão de ficar na entrada da casa para acolher todas as moças e rapazes que vinham para os nossos cursos, anotar seus dados e conversar com eles”, observou Irmã Lucenita das Neves Nogueira, outra Religiosa da casa.

Todas essas atividades não a impediam de cultivar uma intensa vida de oração. “Antigamente, nossas missas eram às 6h30 e, sempre que chegávamos à capela, a Madre já estava lá, em oração”, relatou Irmã Lucenita, sublinhando a profunda devoção da jubilanda a Nossa Senhora do Carmo, de quem herdou o nome.

OS POBRES 

Dos muitos trabalhos realizados por ela, o que mais cativava Madre Maria do Carmo era o atendimento às pessoas em situação de rua que procuravam a casa diariamente. “Formava-se uma fila enorme que dobrava a esquina. Além de servir o café da manhã e o almoço, ela atendia individualmente os que pediam seus conselhos e ajuda. Ela tomava nota das necessidades dessas pessoas e buscava solucioná-las. Todos os que vinham aqui queriam falar com a Madre”, contou Irmã Lia, destacando que esse auxílio ia desde a busca de contato com familiares, solicitação de documentos aos cartórios de suas cidades de origem e até ajuda financeira, que ela tirava das economias de uma herança familiar.

Foi assim que Jaconias Torres Galvão, 51, conheceu a Madre Maria do Carmo, em 1993. Pernambucano de Araripina, Jacó, como é mais conhecido, veio para São Paulo em 1989, em busca de melhores condições de vida e de trabalho. No entanto, inúmeros problemas causados pelo vício do alcoolismo o fizeram ir morar nas ruas.

Vivendo na Praça da Sé, no centro da cidade, Jacó ouviu comentários sobre uma casa onde havia uma freira que ajudava as pessoas que queriam voltar para a terra natal. Ele, então, foi ao encontro da Madre. “Nunca vou me esquecer do dia em que a conheci. Eu não tinha documentos nem o contato de minha família. Ela me ouviu atentamente, pegou todas as informações sobre minha terra e minha família e prometeu que iria me ajudar”, contou.

SUPERAÇÃO 

E a Madre cumpriu sua promessa. Ela conseguiu contatar a mãe de Jacó em Pernambuco, que havia anos não tinha notícias do filho. Algum tempo depois, Jacó estava na praça onde vivia quando foi abordado por um primo que morava na região metropolitana de São Paulo e fora lhe buscar a pedido de sua mãe. Jacó passou um tempo com esse parente até finalmente retornar para Araripina e reconstruir a sua vida.

O rapaz manteve contato com Madre Maria do Carmo, a quem se refere como uma mãe. Tanto que, quando ele se casou, a Religiosa fez questão de lhe presentear com a roupa completa do noivo. “Eu nem acreditei quando chegou na minha casa a caixa com o terno, camisa e até sapatos que ela me enviou”, relatou Jacó.

Foi com o incentivo da Religiosa que Jacó retomou os estudos e cursou o magistério, atuando por muitos anos como professor nos primeiros anos do ensino fundamental. Atualmente, Jacó mora com a família em Sorriso (MT). Devido ao agravamento das sequelas de uma bala perdida alojada na cabeça desde quando ainda vivia em São Paulo e cuja retirada é arriscada, ele teve de se afastar do trabalho e vive de um benefício previdenciário. Engajado na comunidade paroquial de sua cidade, Jacó dá palestras sobre o alcoolismo, vício que conseguiu abandonar definitivamente em 2007. E não falta em seus testemunhos a figura marcante da sua mãe paulista, Madre Maria do Carmo.

GRATIDÃO 

Por telefone, Jacó contou ao O SÃO PAULO que está ansioso para sua próxima visita a São Paulo, prevista para dezembro, na companhia de sua filha Erica, de 22 anos. “Eu sei que talvez ela não me reconheça mais, mas eu nunca esquecerei o que ela fez por mim. Eu não sei o que seria de mim se não tivesse encontrado essa mulher de Deus em minha vida”, afirmou, emocionado.

Apesar da lucidez comprometida, Madre Maria do Carmo não hesita em responder prontamente quando indagada pela reportagem se havia valido a pena dar a vida a Deus como uma Irmã de Santa Zita: “Claro! Sou muito feliz!”.

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