Ao O SÃO PAULO, especialistas destacam o quanto o tempo livre para brincar é fundamental para o desenvolvimento infantil. crianças ouvidas pela reportagem também externam as boas sensações que as brincadeiras lhes trazem
Era uma vez um mundo em que em vez de pular corda, as crianças pulavam vídeos em uma timeline. Um tempo em que elas não mais fechavam os olhos contra a parede e contavam até dez, mas abriam os olhos diante de uma tela por incontáveis minutos. Era uma vez uma sociedade em que o “pega-pega” não envolvia mais uma criança correndo atrás de outras, mas correndo atrás de uma agenda repleta de atividades extracurriculares. Antes que essa história termine sem um final feliz, o jornal O SÃO PAULO convida os leitores a refletir: Temos deixado tempo para as crianças brincarem? O quanto isso faz diferença para a vida delas? Deixá-las se entreterem nas telas é parte da brincadeira?
1,2,3… INFÂNCIA ATRÁS DA TELA
Um “esconde-esconde” sem vencedores figura a preocupante constatação de que se tornou cada vez mais raro encontrar crianças brincando nas ruas, praças e parques.
O relatório de 2023 da Fundação Lego trouxe dados sobre a diminuição do tempo de brincadeira entre as crianças, em comparação com gerações passadas. Segundo a pesquisa, 56% dos pais afirmaram que seus filhos brincam menos do que eles próprios brincavam na infância. Entre os principais motivos estão o uso crescente de dispositivos digitais, a sobrecarga de atividades extracurriculares e a falta de espaços seguros para brincar ao ar livre.
Luciana Brites, neuropsicopedagoga (@lubritesoficial) e fundadora do Instituto NeuroSaber, explica que “usar muito as telas resulta em um rebaixamento nos níveis de comunicação e linguagem. E se a criança não consegue se comunicar e desenvolver a linguagem, isso acaba tendo um impacto negativo em todas as esferas de sua vida”.
A especialista, muito conhecida por seu trabalho em temas relacionados ao desenvolvimento infantil e distúrbios de aprendizagem, ainda alerta: “Também a coordenação motora fica afetada, por que a criança vai perdendo a habilidade de pegar no lápis e de fazer movimentos simples, que são habilidades precursoras para várias áreas da vida”.
Carolina Rocha, psicóloga infantil (@carolina.rochapsi), diz que outro “vilão” do tempo de brincar é a hiperestimulação na infância: “Além da exposição exagerada às telas, as crianças estão cada vez mais sem tempo livre. Com o dia cheio de atividades, como inglês, natação, balé, judô, as crianças têm ficado mais ansiosas, cansadas e incapazes de lidar com o tédio. Isso gera comportamentos como irritabilidade, choros constantes e dificuldades para criar soluções, mesmo em situações simples”.
O MELHOR REMÉDIO
A Academia Norte-Americana de Pediatria publicou um documento, orientando seus profissionais a receitarem brincadeiras diárias às crianças em todas as consultas, de modo especial nos dois primeiros anos de vida.
O documento divide as atividades lúdicas em categorias, cada uma com um impacto positivo específico na saúde infantil: “Brincar de carrinho, por exemplo, melhora a coordenação motora, a capacidade de comunicação e o pensamento abstrato. Já os jogos em grupo promovem a inteligência emocional, desenvolvendo habilidades como aprender a perder, ganhar e arriscar.”
Luciana Brites, que também é autora do livro “Brincar é Fundamental”, afirma que 95% do cérebro adulto se forma até os 6 anos, e isso acontece também por meio da interação social que as brincadeiras proporcionam. Na obra, ela explica que as lições aprendidas no brincar permanecem ao longo de todas as fases da vida: “Ao brincar, a criança exercita a criatividade, expressa suas fantasias, emoções e sensações internas, o que lhe traz maturidade e gratificação contínuas.”BRINCAR É UM DIREITO
Além de ser essencial para a saúde, brincar e se divertir são direitos fundamentais da criança, conforme estabelecido no artigo 16º, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
E se as crianças têm esse direito, é dever dos adultos assegurá-lo. A Aliança pela Infância, um movimento presente em todo o Brasil que defende o tempo da infância e o direito à sua vivência plena e digna (@aliancapelainfancia), destaca algumas dessas responsabilidades.
“É preciso garantir que exista espaço e segurança para que esse brincar aconteça, cobrar políticas públicas que garantam o necessário, como, por exemplo, a alimentação, afinal, criança com fome não brinca, e, também, reforçar esses valores, pautando o assunto nas universidades”, explica Luciana Zero, coordenadora da Secretaria Executiva do movimento.
‘POR QUE É IMPORTANTE BRINCAR?’
Embora brincar pareça algo simples, médicos e especialistas provam que é uma questão séria. No entanto, é importante ouvir as crianças, as principais interessadas nesse assunto.
Alunos de 9 e 10 anos de uma escola particular na Zona Leste da capital paulista participaram de uma sondagem do jornal O SÃO PAULO. A primeira pergunta foi: “Por que é importante brincar?”
“A gente faz amigos”, respondeu Mariana.
“Quando eu brinco, parece que o tempo passa rapidinho e eu fico mais feliz”, completou Pedro.
“Ajuda a descansar a cabeça de tanta lição de casa”, disse Enzo.
As respostas das crianças ecoam as palavras de Letícia Zero. Segundo a especialista “brincar para a criança tem o fim em si mesmo, ou seja, ela não brinca para aprender, brinca para brincar, mas aprende enquanto brinca”.
Letícia reforça ainda que o tempo de brincar deve permitir que a criança seja protagonista, sem ser constantemente dirigida por educadores ou recreadores: “A criatividade nasce da liberdade de criar algo que ninguém começou”.
E O ADULTO, DEVE ENTRAR NA BRINCADEIRA?
A segunda pergunta feita às crianças foi: “Por que os adultos não brincam?”
Henrique respondeu sem hesitar: “Porque estão sempre ocupados com coisas sérias, tipo trabalho e contas”.
“Estão sempre cansados e sem tempo”, protestou Lucas.
“Eu acho que eles esqueceram como brincar é legal, e se eles brincassem, iam ser mais felizes e menos estressados”, concluiu Marcela.
Encontrar tempo para brincar em meio a tantas obrigações é desafiador, mas é fundamental seguir o conselho das crianças e fazer disso uma prioridade. Isso também vale para os adultos, de modo especial, os pais. Mas como? A psicóloga Carolina Rocha sugere que um dos caminhos é os pais reduzirem o tempo que passam nas telas.
“As crianças aprendem pela imitação. Se os pais estão sempre em frente a uma tela, elas tendem a copiar o comportamento. O ideal é aproveitar o tempo disponível para se conectar com os filhos. Não se trata de passar horas brincando, mas de garantir tempo de qualidade, seja contando como foi o dia, lendo uma história antes de dormir ou jogando algum jogo. Alguns minutos podem fazer uma enorme diferença no desenvolvimento emocional da criança. Pais que brincam com os filhos ajudam a formar crianças autoconfiantes, resilientes e que se relacionam bem com os outros, e essas memórias positivas ficam para sempre”.