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Crianças e adolescentes expostos no ambiente digital: a quem cabe fazer algo?

Após influenciador Felca denunciar a exposição sexualizada de menores de idade na internet, debate sobre o tema ganha força na sociedade brasileira

Joédson Alves/Agência Brasil

Como que uma chaga escondida ou algo ascoso que se finge não ver: é assim que, aparentemente, a socieda­de brasileira tratou por muito tempo a exposição sexualizada de crianças e adolescentes na internet. Entretanto, após o vídeo “Adultização”, publicado no dia 6 pelo influenciador Felipe Bres­sanim Pereira, o Felca, denunciar perfis nas redes sociais que utilizam crianças e adolescentes em contextos de sexua­lização para conquistar audiência e lu­cro, e a maneira com que rapidamente materiais ligados a pedofilia são impul­sionados pelos algoritmos das platafor­mas digitais, muitos debates e mobili­zações parecem indicar que, agora, há um real desejo de enfrentamento do problema.

Na quarta-feira, 20, o plenário da Câmara dos Deputados se reúne em comissão geral para debater a temática com os parlamentares e representantes da sociedade. Além disso, Hugo Motta, presidente desta casa legislativa, criou um grupo de trabalho que terá 30 dias para apresentar uma proposta que ga­ranta a segurança de crianças e adoles­centes na internet.

PROJETO DE LEI 2.628/2022

Desde que Felca publicou o vídeo, dezenas de projetos de lei sobre o tema foram protocolados na Câmara dos De­putados. O PL 2.628/2022, já aprovado pelo Senado, que estabelece regras para prevenir, identificar e coibir o abuso e a exploração infantojuvenil na internet irá tramitar em regime de urgência na casa e poderá ser votado no plenário em breve.

Entre os principais pontos do pro­jeto de lei estão a obrigatoriedade de que as plataformas digitais removam rapidamente, sem necessidade de or­dem judicial, conteúdos nocivos que violem direitos de crianças e adoles­centes; implementem mecanismos de controle parental simples e acessíveis; bloqueiem o acesso a conteúdos por­nográficos, com verificação de idade; reportem obrigatoriamente às auto­ridades casos de exploração e abuso sexual infantil detectados nas plata­formas; proibiam o uso de dados para direcionar publicidade infantil; e atuem para mitigar e prevenir práticas como bullying, exploração sexual e padrões de uso que possam desencadear vícios e transtornos diversos.

O referido projeto de lei tem o apoio de diferentes instituições, como a So­ciedade Brasileira de Pediatria (SBP), que em nota, no dia 12, pediu urgên­cia em sua aprovação e lembrou que “é inaceitável que empresas de tecnologia mantenham ambientes virtuais em que circulam livremente conteúdos ilegais e de altíssimo risco, sem ações rápidas e eficazes para sua remoção. É igualmen­te inaceitável que a privacidade e a se­gurança de crianças e adolescentes não sejam prioridade máxima na concep­ção e operação desses sistemas, e que o lucro se sobreponha à vida e à integri­dade deles”.

Também a Pastoral da Criança, sig­natária de uma carta de apoio ao PL 2.628/2022, na última semana divulgou um vídeo com a pediatra Ana Lea Cle­mentino, no qual a médica da equipe técnica da Pastoral reforça a urgência de “uma legislação contundente que proteja nossas crianças dos crimes vir­tuais e responsabilize plataformas para que a internet se torne um ambiente mais seguro. Além disso, é preciso que os pais entendam que alguns consu­mos precoces e inadequados na infân­cia, além das redes sociais, como, por exemplo, maquiagens e moda adulta, interferem de modo negativo no de­senvolvimento sexual e emocional das crianças, expondo-as a maior risco de abusos”.

VERIFICAÇÃO ETÁRIA E RESPONSABILIDADE DAS PLATAFORMAS

A aprovação do PL 2.628/2022 também é um desejo do Family Talks, instituição que atua para a defesa dos ao O SÃO PAULO, Rodolfo Canônico, diretor-executivo do Family Talks.

Ele também afirma ser indispensável que as próprias plataformas ampliem o tipo de proteção às crianças, com o com­promisso de não usar comercialmente suas informações, e considera oportuna uma ampla discussão a respeito do cha­mado sharenting, o compartilhamento de conteúdo sobre as crianças de modo excessivo por seus pais.

O PROTAGONISMO DOS PAIS E O PAPEL DA ESCOLAS

Canônico ressalta que não se trata de um fato novo a exposição precoce de crianças em um mundo sensualizado e no qual a erotização não é considerada um problema pela maioria das pesso­as: “Para quem conhece o tema, não há novidade alguma nas mais recentes denúncias. O que temos agora é uma catarse social, que é positiva, por um lado, mas há tempos as crianças estão expostas. Pesquisas indicam que com 12 anos, quase metade das crianças já teve acesso ao conteúdo pornográfi­co. Isso é normal? Deveria ser tão fácil como é? Existe, portanto, uma cultura em que esse erotismo é pervasivo na sociedade”.

O especialista do Family Talks apon­ta para a responsabilidade dos pais em moderar os conteúdos culturais que as crianças acessam. “Os pais devem ser presentes e induzir as crianças a hábi­tos, práticas e interesses mais saudá­veis”. Outra atitude indispensável, se­gundo ele, é que os pais também deem o exemplo, fazendo uso, com modera­ção, das redes sociais.

Ainda segundo o diretor-executivo do Family Talks, também a escola tem papel crucial para este agir preventi­vo, na medida em que pode se tornar um espaço formativo para as famílias sobre o mundo digital. “Boa parte dos hábitos que crianças e jovens têm são adquiridos na família. Assim, não basta a escola fazer um processo formativo com a criança, pois ela pode estar vi­venciando em casa algo antagônico ao que aprende na escola”, alerta.

‘NÃO ASSISTAM, NÃO ENGAJEM, DENUNCIEM’

O vídeo “Adultização” já havia ultra­passado a marca de 45 milhões de visu­alizações até a manhã da segunda-feira, 18. No conteúdo, Felca denuncia nomi­nalmente práticas de exposição sexuali­zada de crianças e adolescentes cometi­das por alguns influencers, entre os quais Hytalo Santos, que foi preso na sexta­-feira, 15, com Israel Nata Vicente, em Carapicuíba (SP), no âmbito da investi­gação do Ministério Público da Paraíba e do Ministério Público do Trabalho por exploração e exposição de menores de idade. Outra denúncia que gerou gran­de repercussão refere-se à mãe da jovem influencer Caroliny Dreher, que teria negociado com pedófilos fotos e vídeos sensuais da própria filha.

Felca já recebeu mensagens e e-mails com ameaças de morte, mas em recen­tes entrevistas e em vídeos em suas re­des sociais (@felca0) está convicto de ter agido corretamente. Em um destes posts, ele recomenda uma atitude que pode parecer simples, mas que faz toda a diferença para romper com as redes de exposição sexual de crianças e ado­lescentes: “Não vejam como fofinho o vídeo de uma criança dançando, sensu­alizando… Não assistam, não engajem, denunciem”.

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