Legislação reconhece os menores de idade como sujeitos de direito no Brasil
Até o início de 1990, a principal preocupação do Estado brasileiro em relação às crianças e adolescentes era que não se tornassem um problema para a sociedade. O Código de Menores, então vigente, dispunha sobre “a assistência, proteção e vigilância a menores de até 18 anos de idade que se encontrem em situação irregular”.
Parte da sociedade, porém, desejava um novo olhar para as crianças e os adolescentes, o que resultou na redação do artigo 227 da Constituição de 1988, que indica os deveres da família, da sociedade e do Estado com a garantia dos direitos de crianças, adolescentes e jovens. A Constituição abriu o caminho para a publicação, em 13 de julho de 1990, da Lei 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
“Antes, crianças e adolescentes eram tratados como objetos de intervenção dos adultos e do Estado e não como sujeitos de direitos. Com o Estatuto, houve uma mudança da doutrina da situação irregular para a doutrina da situação integral. Assim, quem está em uma situação irregular quando a criança é abandonada, quando é vítima de violência ou de exploração é a família, o Estado e toda a sociedade que não a protegeu corretamente”, explicou ao O SÃO PAULO o advogado Ariel de Castro Alves, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
PARTICIPAÇÃO DA IGREJA
A mobilização para que o menor de idade fosse reconhecido como sujeito de direito e em condição de desenvolvimento teve o apoio da Igreja Católica. Em 1987, o assunto foi tratado na Campanha da Fraternidade, com o lema “Quem acolhe o menor a mim acolhe”, e a própria redação do ECA teve a colaboração de católicos, como a assistente social Ruth Pistori e a Irmã Maria do Rosário, pioneiras da Pastoral do Menor, juntamente com Dom Luciano Mendes de Almeida, que presidiu a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) entre 1987 e 1995.
“A realidade exigia que a Igreja, junto com a sociedade civil, se manifestasse diante da invasão de direitos, descaso com as crianças e seu abandono”, recordou Sueli Camargo, coordenadora da Pastoral do Menor na Arquidiocese de São Paulo.
REORDENAMENTO INSTITUCIONAL
O artigo 3º do ECA indica que à criança e ao adolescente deve ser assegurada “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
Para que isso fosse efetivamente garantido, foi necessário um reordenamento institucional, que envolveu, por exemplo, a criação das varas da infância e juventude no sistema de Justiça, delegacias especializadas, conselhos municipais, estaduais e federal e os conselhos tutelares, que permitem um acompanhamento mais próximo da garantia de direitos dos menores e a averiguação de denúncias. Além disso, os antigos orfanatos, por vezes com centenas de crianças e adolescentes, deram lugar a abrigos, com até 20 menores, e as casas-lar, com até dez atendidos.
MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
O ECA também estabelece a aplicação de seis medidas socioeducativas para os adolescentes entre 12 e 18 anos que cometam ato infracional: advertência, reparação de dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação, esta última a mais privativa de liberdade.
Em setembro de 2019, conforme dados do Conselho Nacional do Ministério Público, mais de 18 mil adolescentes estavam em privação de liberdade.
“Temos essa aplicação muito extensiva por parte do Poder Judiciário, a pedido do Ministério Público, da internação em casos que não seriam necessários. Isso se explica pela falta de programas qualificados de medidas de meio aberto de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade, e em razão dessa mentalidade dos juízes de que precisam proteger a comunidade, mantendo os adolescentes afastados do convívio social, o que, não raramente, faz com que eles tenham até mais envolvimento na criminalidade, pois conviverão em unidades com outros adolescentes, que, por vezes, são reincidentes ou cometeram crimes mais graves”, afirmou Alves.
AVANÇOS E DESAFIOS
Em 30 anos de história, o ECA impulsionou avanços na atenção a crianças e adolescentes, mensurados por indicadores como a redução da mortalidade infantil, que antes do Estatuto era de 50 mortes a cada mil nascidos, e hoje está em 15 para cada mil.
No entanto, os desafios persistem. Em 2018, um levantamento da Fundação Abrinq indicou que, no Brasil, 46% dos menores com até 14 anos viviam em famílias em condição de pobreza ou miséria, 4,1% das crianças de 0 a 5 anos estavam desnutridas e mais de 1,3 milhão de pessoas entre 6 e 17 anos estavam fora da escola.
“O Estatuto apresenta toda a direção para que seja implementada uma política pública devida, mas vemos que isso ocorre precariamente, porque requer investimento do poder público. Nenhuma política pública se faz sem recurso; assim, a criança e o adolescente precisam ser vistos como prioridade absoluta também no orçamento dos municípios”, enfatizou Sueli.
Já Ariel de Castro Alves avalia que um dos problemas é a forma como o recurso público é aplicado. “Enquanto um adolescente custa para a Fundação Casa cerca de R$ 10 mil por mês na privação de liberdade, o Estado repassa às entidades que atuam com outras medidas socioeducativas uma renda per capita de R$ 500, o que dificulta pagar os técnicos de forma adequada, como assistentes sociais, psicólogos, advogados, pedagogos e educadores sociais”, lamentou.
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