6 mil afegãos chegaram ao Brasil desde 2021; alguns que vieram para São Paulo têm sido auxiliados por entidades católicas
Fatema Fahimi pensou em desistir do mestrado em gestão de negócios em uma universidade do Irã quando o Talibã voltou ao poder em seu país, o Afeganistão, em agosto de 2021. No entanto, ela decidiu finalizar o curso e, logo depois, embarcou para o Brasil, assim que obteve o visto humanitário concedido aos afegãos pelo governo brasileiro.
Quando a mulher de 27 anos, bonita, de estatura pequena e inglês excelente conversou com a reportagem do O SÃO PAULO, em meados de agosto, ela havia chegado fazia pouco tempo ao Brasil. Estava entre os 27 afegãos hospedados na Casa de Acolhida Todos Irmãos, em Guarulhos (SP).
O abrigo é coordenado pela Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP), em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a Caritas Diocesana de Guarulhos e a Prefeitura de Guarulhos.
‘PERDI MINHA ESPERANÇA E FUTURO NO AFEGANISTÃO’
Ao ouvir Fatema contando sobre o quão ativa era em seu país, é possível ter a noção do quanto o regime imposto pelo Talibã é terrível para as mulheres que, como ela, querem o direito de estudar, trabalhar e ter uma vida independente. “Tive que deixar tudo para trás – casa, amigos, família, trabalho – e ser migrante em outro lugar”, diz.
O marido de Fatema só chegaria ao Brasil uma semana depois da entrevista. “O português é um pouco difícil e muita gente não fala inglês aqui”, afirma, revelando ainda não se sentir plenamente livre. “Mas eu quero ficar e espero poder ter um futuro brilhante aqui. Perdi minha esperança e futuro no Afeganistão. O Talibã destruiu todos os sonhos das mulheres. Estou aqui para um recomeço na minha vida”, complementa.
O Talibã ocupava o poder em seu país quando Fatema era criança. A mãe dela faleceu, o pai, um comerciante, se casou novamente, e os irmãos dela vivem em outros países. Por isso, a jovem se sentiu livre para dar a entrevista e mostrar o rosto, algo que não é muito comum entre afegãos fugidos de um regime ceifador de liberdades.
O grupo radical havia sido deposto quando tropas norte-americanas assumiram o controle do Afeganistão em 7 de outubro de 2001 para vingar os ataques terroristas de 11 de setembro daquele ano nos Estados Unidos, orquestrados pela Al Qaeda.
O objetivo da missão era caçar Osama bin Laden, o cabeça dos ataques, e punir o Talibã por fornecer abrigo aos líderes do grupo terrorista. Com as mais de duas décadas de ocupação das tropas norte-americanas, os membros do grupo ultrarradical tiveram que se readequar.
Fatema afirma querer ter filhos, “mas em um ambiente em que a criança possa ir à escola, ser educada, especialmente se ela for uma garota”, diz. “Ela tem que ter o direito de ir à escola, universidade, fazer algo na sociedade, ser uma mulher ativa. Claro que eu quero voltar um dia, ver meu país e meu povo novamente. Mas enquanto o Talibã estiver lá, será impossível”, pontua.
SEM PLANEJAMENTO
Com a deterioração da situação humanitária no Afeganistão a partir de 2021, dados do ACNUR apontam que há 5,7 milhões de pessoas refugiadas do país. Desse total, 5,1 milhões estão no Irã e Paquistão, nações com as quais faz fronteira.
Ainda segundo o ACNUR, 6 mil afegãos chegaram ao Brasil desde o início da crise, pois o país foi o único a conceder visto humanitário a essa população. Contudo, a falta de planejamento organizado entre União, estados e municípios trouxe como consequência as cenas que têm sido vistas quase todos os dias no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, porta de entrada dos afegãos no Brasil.
Não tem sido incomum ver afegãos apinhados no saguão do aeroporto. As razões para isso são variadas, mas o cerne da questão mora, principalmente, na falta de uma política nacional de acolhimento a refugiados.
O APOIO DA IGREJA
A situação desses afegãos só não tem sido pior devido à ação de entidades da sociedade civil, algumas delas ligadas à Igreja Católica, como a Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP), a Caritas Brasileira-Regional São Paulo, a Missão Paz e as Irmãs Scalabrinianas do Pari que estão diretamente envolvidas no apoio, orientação e acolhimento dessa população.
No entanto, para essas entidades, que têm suas origens no acolhimento e abrigamento de refugiados, a recepção a afegãos imprime uma série de desafios na acolhida, devido principalmente à barreira do idioma e aos aspectos culturais muito distintos dos brasileiros.
A primeira leva de afegãos forçados a deixar o Afeganistão era composta majoritariamente de pessoas que trabalhavam no governo apoiado pelos Estados Unidos, de militares ou agentes ligados a organismos internacionais. Ou seja, era um perfil de maior poder aquisitivo, grau de escolaridade maior e a grande maioria falava inglês, o que facilitava a comunicação.
O perfil dos que chegam agora é de homens solteiros, de poder aquisitivo mais baixo e muitos nem “arranham” o inglês, o que dificulta a comunicação. Por isso, a ajuda dos próprios afegãos tem sido importante nessa mediação.
A PÁTRIA É O MUNDO
Há cerca de dez meses no Brasil, Nasratullah Safi tem trabalhado como mediador cultural para a CASP.
Ele chegou ao Brasil com os pais, um irmão mais velho e duas irmãs mais novas. A família tentou permanecer no Irã, onde ficaram por cinco meses, mas devido a problemas com outros afegãos, os iranianos não facilitavam as coisas. Então, venderam tudo (ou quase tudo), pediram dinheiro emprestado a parentes, compraram as passagens e chegaram quase sem nada ao Brasil.
Nasratullah Safi havia cursado dois semestres da faculdade de engenharia civil, em Cabul, capital do Afeganistão. A mãe era professora em uma escola; o pai, gerente de recursos humanos em uma universidade; o irmão mais velho, dentista; e as irmãs iam para a escola.
Com o Talibã no poder, nem a mãe podia mais dar aula, nem as irmãs podiam ir à escola. A vida ficou complicada, por isso, decidiram fugir.
Sobre o trabalho que faz com a Caritas, Nasratullah diz que está gostando muito de poder ajudar seus conterrâneos. “Há crianças de poucos meses, mulheres grávidas. O governo brasileiro não providenciou tudo, mas as organizações como a Caritas e o ACNUR têm tentado contribuir ao máximo”, diz.
Quando questionado sobre o que sonha para a sua vida, se ficar aqui ou voltar para o Afeganistão, Nasratullah mostra um idealismo pouco comum em pessoas da sua idade.
“Claro que eu sinto falta da minha família, dos meus amigos, da universidade. Há parentes meus ainda lá. Mas temos que ter em mente que, hoje, temos que construir uma vida melhor para a próxima geração, seja do Brasil ou do Afeganistão. Somos todos seres humanos”, diz.
DESAFIOS
A família de Nasratullah está na Repúblicas, na zona leste de São Paulo, abrigo mantido pela Caritas Brasileira – Regional São Paulo, em parceria com a Diretoria Regional de Assistência Social do estado de São Paulo.
O local abriga 80 pessoas ao mesmo tempo, sendo dez pessoas em cada acomodação, que tem cozinha, quartos e banheiro. “Hoje, mais de 90% das pessoas que estão aqui são afegãos. Uma família é angolana”, explica Juliane de Oliveira Santos, coordenadora do abrigo.
As pessoas em situação de refúgio podem ficar 180 dias no local, mas há uma metodologia que avalia a situação a cada 90 dias pela equipe técnica. “No caso dos afegãos, o problema é a comunicação. Aparecem vagas de trabalho, mas que exigem um pouco de português. Então, eles não conseguem o emprego.”
A estada nos apartamentos ou casinhas também é rotativa. “Vamos readequando os perfis conforme novos hóspedes vão chegando, até para eles entenderem que aqui é provisório”, conta.
Além da Repúblicas, a Caritas Brasileiras – Regional São Paulo mantém a Casa da Passagem, na região central da cidade.
CONSTRUINDO PONTES
Em maio passado, em sua mensagem para o 109º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, que será celebrado em 24 de setembro, o Papa Francisco disse que “o migrante é Cristo que bate à nossa porta”. Como tema para marcar a data este ano, o Pontífice escolheu “Livres de escolher se migrar ou ficar”.
“Trabalhamos para que toda a migração possa ser fruto de uma escolha livre. Somos chamados a ter o maior respeito pela dignidade de cada migrante, construindo pontes e não muros”, explicou o Pontífice sobre a escolha do tema.
No ano passado, o mundo atingiu a inédita marca de mais de 100 milhões de pessoas sendo forçadas a deixar suas casas, cidades e países, como consequência de guerras, violência, violação de direitos e perseguições políticas, étnicas e raciais. Os dados são do ACNUR.
Grande parte dos refugiados quer entrar na Europa, onde as condições de vida são consideradas melhores.
ACOLHIDOS NA CARITAS E NA MISSÃO PAZ
No Brasil, de 1985 até junho do ano passado, foram reconhecidas como refugiadas cerca de 60 mil pessoas, sendo a maioria delas provenientes da Venezuela (48.789), seguida por Síria (3.667), República Democrática do Congo (1.448) e Angola (1.363), segundo dados do Ministério da Justiça, compilados no relatório “Refúgio em Números”, editado pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).
“Há dois anos, recebemos afegãos e para a Caritas tem sido uma experiência desafiadora, por ser uma cultura completamente diferente. Mas eu diria que, principalmente, a língua é uma barreira importante”, diz o Diácono Márcio José Ribeiro, Diretor da Caritas Arquidiocesana de São Paulo, criada há 55 anos, por iniciativa de Dom Paulo Evaristo Arns, então Arcebispo de São Paulo.
Há três décadas, a entidade mantém um convênio com o ACNUR para o seu Serviço de Acolhida e Orientação para Refugiados (Saor), além de parcerias com ministérios e outros organismos para auxílio de pessoas em situação de refúgio.
A entidade tem assento no Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), com direito a voto, e recentemente foi eleita para uma vaga no Conselho Municipal de Imigrantes (CMI) de São Paulo, o que vai facilitar sua ação como um agente formador de políticas públicas para refugiados no âmbito municipal. E, há um ano, coordena a Casa de Acolhida onde Fatema estava abrigada quando falou com a reportagem.
Apesar de terem um papel relevante no acolhimento e apoio a pessoas em situação de refúgio, o Diácono Márcio reforça que o papel do governo é fundamental e insubstituível na concessão de vistos e na elaboração de políticas públicas para que essas pessoas possam viver de maneira digna no país.
Criada em 1939 com o estabelecimento dos Missionários Scalabrinianos, na região do Glicério, para apoiar a comunidade migrante de italianos, a Missão Paz também tem auxiliado aqueles que chegam ao Brasil.
Um dos coordenadores da Missão, Padre Paolo Parisi conta que a Casa do Migrante, abrigo iniciado em 1974, tem capacidade para abrigar 110 pessoas ao mesmo tempo, em um sistema organizado que divide homens e mulheres, com serviços de lavanderia e alimentação, além de assistência psicológica e social.
Na semana passada, o abrigo tinha duas famílias afegãs (uma com seis e outra com três pessoas). A permanência no local é por até três meses, tempo que as pessoas têm para se organizar.
“Essas pessoas chegam de várias formas, ou de um jeito espontâneo, quando um afegão familiar já passou pela casa e dá a indicação, ou por meio da coordenação desde Guarulhos, pelo Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante [equipamento da Prefeitura de Guarulhos no Aeroporto], ou a própria Caritas. Ou seja, é muito variada a forma”, explica.
Padre Paolo salienta que, embora o Brasil tenha uma boa lei de imigração (Lei 13.445, de 24 de maio de 2017), falta uma política nacional de acolhimento. “Deve-se pensar não só no papel [visto, documentos], mas na acolhida e integração. A falta de política nacional cria todos esses problemas e enormes dificuldades no Aeroporto de Guarulhos, por exemplo”, diz.
Padre Marcelo Maróstica Quadro, Vice-diretor da CASP, destaca que o Brasil tem leis modernas e importantes, como a Lei do Refúgio e a Lei de Imigração (Lei 9.474, de 22 de julho de 1997), que respeita os direitos humanos e marca a postura de não devolução do migrante para o seu país de origem.
“Mas na questão da responsabilidade, acaba ficando mais para o município. Quando discutimos migração e refúgio, uma palavra que aparece é municipalidade, porque o migrante/refugiado vai chegar no município. Mas não existe uma política nacional de acolhimento, com recursos destinados aos municípios para auxiliá-los nesse acolhimento. Ou seja, o município tem que se virar, e a sociedade civil acaba preenchendo essas lacunas”, explica.
Contudo, Padre Marcelo avalia que com os afegãos está havendo essa mobilização. “Na história da Caritas, pela primeira vez a gente vê grandes investimentos financeiros de município, estado e governo federal nessa realidade dos afegãos”, pontua.
COM A FORÇA DE DEUS
No Pari, região central de São Paulo, as Irmãs Scalabrinianas mantêm um abrigo com capacidade para 200 pessoas em situação de refúgio, apátridas ou migrantes, em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
A chegada até o local é feita por intermédio do Centro Pop Mooca, departamento de assistência social da Prefeitura.
De janeiro até agosto, o local abrigou 542 pessoas, de 17 nacionalidades diferentes. A maioria vem de Angola.
A exemplo da Casa do Migrante, o local também separa a ala feminina da masculina. Havia outra destinada a mães com bebês – a maioria angolanas. “Sete bebês nasceram aqui”, conta Irmã Rosane Costa Rosa, assistente social com 32 anos de experiência com refúgio.
Na visita da reportagem à ala, apenas uma família afegã com sete crianças – a mais velha com 14 anos – estava abrigada.
Muito bem-organizado, o local possui uma equipe com 61 funcionários. Os acolhidos dispõem de lavanderia, armários, e quartos com beliches, banheiro coletivo e rede wi-fi.
Conforme explica Irmã Rosane, a equipe técnica do local mantém conversas frequentes com os abrigados a fim de motivá-los a buscarem trabalho e terem sonhos para que possam construir suas vidas no Brasil.
Segundo Irmã Shirley Anibale, administradora do local, alguns refugiados afegãos deixaram o abrigo rumo ao Sul do país, para trabalharem em frigoríficos que vendem carnes halal para países islâmicos.
Sobre a dificuldade de trabalhar com refugiados, Irmã Rosane diz que não foram poucas as vezes em que sentiu enorme impotência: “Algumas vezes conversei com Deus dizendo a Ele: ‘O Senhor me colocou nisso, então me segure para que eu possa ficar aqui’”.
Raio x do Afeganistão · Nome oficial: República Islâmica do Afeganistão. · Localização: Ásia Central. · Capital: Cabul. · Clima: desértico · Governo: república islâmica. · Idioma: pastó e dari. · Religiões: 99% (islamismo), 1% (outras). · População: 32.225.560 habitantes. · Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): 0,511 (baixo). · Moeda: afegane. |