Movimento Nacional de Familiares de Pessoas Desaparecidas é lançado para dar mais visibilidade à temática do desaparecimento e apoiar as vítimas da ausência

Luciney Martins/O SÃO PAULO
O céu sobre a Catedral da Sé, em 30 de agosto, ganhou um pontilhado simbólico. Dezenas de balões brancos foram soltos ao ar e, aos poucos, desapareceram no horizonte. As mãos que os soltaram eram as mesmas que, um dia, se viram esvaziadas pela ausência súbita de filhos, irmãos e pais desaparecidos.
O ato marcou o lançamento do Movimento Nacional de Familiares de Pessoas Desaparecidas, iniciativa que busca dar visibilidade ao tema, unir instituições que atuam em defesa dessa causa, abrir diálogo com as autoridades na construção de políticas públicas e assegurar que nenhuma família enfrente sozinha a dor da ausência.
REPRESENTATIVIDADE EM TODO BRASIL
A ideia de criar um movimento nacional surgiu em 2024, após um encontro que reuniu 80 familiares de pessoas desaparecidas de diversos estados. “O objetivo é fortalecer a união dos familiares em todo o Brasil e incentivar a criação de representantes em cada estado, para que possam falar em nome das famílias de sua região”, explica ao O SÃO PAULO, Ivanise Esperidião, fundadora da Associação Mães da Sé.
A escolha da data também carregou significado. Desde 2011, o 30 de agosto é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados. “Pessoas levadas pela violência de facções, vítimas de sequestro, de catástrofes naturais ou de qualquer circunstância em que o afastamento da família não foi uma escolha, abrange o sentido de desaparecimento forçado”, explica Ivanise.

“Os desaparecidos no Brasil ainda são tratados como se fossem invisíveis. Eles fazem parte apenas de uma estatística”, ressalta a fundadora da Associação Mães da Sé. Também integram o Movimento Nacional grupos como Mães em Luta, União de Vítimas, Esperança da Rua, Instituto Mercia Nakashima, Abrace, Mães do Paraná, Instituto Giorgio Renan por Justiça.
A dimensão do problema fica evidente nos números: somente em 2024, mais de 66 mil pessoas desapareceram no Brasil, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Entre elas estão 20 mil crianças e adolescentes. No mesmo período, foram localizados 43,5 mil desaparecidos.
MÃES DA SÉ: A TRAMA DA VIDA REAL
Em 1995, Ivanise Esperidião enfrentou o desaparecimento de sua filha, Fabiana, de apenas 13 anos, que sumiu enquanto regressava da casa de uma vizinha. A busca por respostas logo se tornou uma peregrinação diária a delegacias, hospitais e necrotérios. “Eu tive que me reinventar como pessoa, pra viver esse luto sem corpo, uma ferida que não cicatriza”.
Pouco tempo depois, Ivanise foi convidada para dar um depoimento em uma telenovela que abordava o desaparecimento de pessoas. “Eu tinha certeza de que, depois que o episódio fosse ao ar, alguém reconheceria minha filha, mas o que apareceu foram outras mães, pais, filhos e irmãos que também tinham perdido algum membro da família e não sabiam o que fazer”, relembra.

Com o telefone tocando sem parar, Ivanise percebeu que precisava dar uma resposta coletiva àquela dor compartilhada. Assim, decidiu convocar um encontro público na escadaria da Catedral da Sé no dia 31 de março de 1996. Mais de 100 pessoas compareceram, além da imprensa. E foi uma das repórteres quem, ao descrever o ato, cunhou a expressão que se tornaria a identidade do grupo: “As Mães da Sé”.
O movimento se expandiu rapidamente. “No dia 10 de dezembro do mesmo ano, realizamos o primeiro seminário sobre o tema na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, e já tínhamos 48 pessoas encontradas”, lembra Ivanise, que se tornou advogada e hoje é referência nacional na defesa dos direitos dos familiares de desaparecidos.
DA DOR À LUTA EM TORNO DA CAUSA
“Ao longo destes anos, já perdi 26 mães e três pais que morreram de câncer e problemas cardíacos desenvolvidos pela angústia da espera, que muitas vezes começa com depressão”, revela Ivanise.
Diante dessa constatação, ela buscou formas de transformar a dor em acolhimento, e as Mães da Sé passaram a oferecer tratamento psicológico gratuito, contando com o apoio voluntário de quatro profissionais comprometidos com a causa.
A visibilidade das pessoas desaparecidas também ganhou novos espaços. Fotos e informações de desaparecidos estampam o mobiliário urbano, painéis e telas de transportes públicos, chegando a milhares de pessoas diariamente. Outras iniciativas surgiram como a da marca de lácteos Piracanjuba, que estampa imagens de desaparecidos nas caixas de leite, incluindo projeções de como estariam atualmente, elaboradas com o auxílio de tecnologia de inteligência artificial, o que amplia a chance de reconhecimento.
Também no âmbito legal, houve avanços. Em 16 de março de 2019, foi instituída a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, por meio da lei 13.812, que definiu a estrutura de governança e estabeleceu as atribuições dos ministérios envolvidos na gestão compartilhada do tema.

ESPERANÇA NA TECNOLOGIA
De 5 a 15 de agosto deste ano, ocorreu a Campanha Nacional de Coleta de DNA de Familiares de Pessoas Desaparecidas, coordenada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, com 334 postos de coleta em todo o Brasil, para que familiares de desaparecidos fornecessem amostras de saliva ou sangue para a inclusão nos bancos de dados genéticos estaduais e nacional.
No dia 27 do mesmo mês, foi lançado o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas (CNPD). A iniciativa integra as bases de dados estaduais para facilitar a busca em todo o País. Atualmente, mais de 86,3 mil pessoas estão cadastradas automaticamente no sistema, que já opera de forma integrada em 12 estados.
O aplicativo Family Faces, desenvolvido pela Microsoft e a Mult-Connect, auxilia no reconhecimento e busca de pessoas, por meio de recursos de inteligência artificial e tecnologia de reconhecimento facial. A imagem é comparada com o banco de dados da Associação Mães da Sé, que contém registros de milhares de desaparecidos, e, caso haja semelhanças, o usuário é alertado para verificar se se trata de um caso real. Essa tecnologia possibilita identificar pessoas desaparecidas mesmo após anos.
Além do app, as redes sociais da Associação são uma poderosa ferramenta na busca por pessoas desaparecidas. “Já ajudei a encontrar quase 6 mil pessoas”, conta Ivanise. Entre elas está Vitor Silva, 21, que sofre de esquizofrenia e cujo desaparecimento deixou a família angustiada: “A pessoa que encontrou meu irmão o reconheceu pela foto na página das Mães da Sé e entrou em contato com a Ivanise”, relembra a irmã, Danielli Silva de Barros, aliviada. “Foi um final feliz poder reencontrá-lo com vida depois de 10 meses e 11 dias de sofrimento”.
“Divulgar é a melhor forma de ajudar a reencontrar um desaparecido”, assegura Ivanise.
COMO AJUDAR!
Colabore com informações ou acompanhando canais que atuam na causa:
Instagram das Mães da Sé: @maesdase
Whatsapp da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo: (11) 97549-9770
Site da Superintendência da Polícia Técnico-Científica – Cadastro de Desaparecidos: https://www.policiacientifica.sp.gov.br/iml/cadastrodesaparecidos
Baixe o APP Family Faces: download gratuito na Play Store e Apple Store