Júlio Medaglia é arranjador, maestro e compositor. Formado em Música pela Universidade Federal da Bahia e pela Escola Superior de Música da Universidade de Freiburg, na Alemanha, ele estudou com figuras centrais da música contemporânea, como Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez, e teve aulas de regência com o maestro John Barbirolli.
Sua trajetória é marcada por participações em momentos decisivos da música erudita e popular no Brasil. Escreveu o arranjo de “Tropicália”, canção de Caetano Veloso, considerada o marco inicial do Tropicalismo. Criou a Ama- zonas Filarmônica, esteve à frente da direção da Orquestra da Rádio de Baden Baden e da Orquestra da Rádio Roquete Pinto. Atuou como maestro em importantes orquestras no mundo, como a Filarmônica de Berlim, na Alemanha.
Nesta entrevista ao O SÃO PAULO, o maestro fala sobre o percurso da música no Brasil e destaca o papel da Igreja Católica na evolução e produção musical ao longo da história.
O SÃO PAULO – Como o senhor iniciou sua trajetória na música?
Júlio Medaglia – O primeiro conta- to com a música se deu ainda criança. A empregada da família trazia em sua mochila um velho e pequeno violino, de uma corda só. Comecei a brincar com aquela caixinha barroca, me divertia ouvindo a sonoridade do violino. Ali nasceu o interesse pela música. Meu pai, no início, não apoiou, pois queria que eu seguisse outra profissão, mas minha mãe me incentivou e até comprou um instrumento novo. As primeiras aulas de violino foram com uma tia. Depois, ingressei na Orquestra de Amadores da Lapa, aqui em São Paulo; em seguida, fui convidado para estudar na Escola Livre de Música e, assim, surgiram convites nacionais e internacionais, e nunca mais parei.
O senhor atua nas várias frentes da música, desde composições para o cinema, rádio e Tv, performances nas salas de concerto, circula entre a música popular e erudita. Como descreveria o seu perfil musical?
Costumo dizer que meu perfil musical é um só: interesse pela música de cunho cultural. Pode ser um apito de uma ocarina lá do interior do Ceará, uma Filarmônica de Berlim, uma tri- lha sonora, uma canção de ninar, desde que envolva a criatividade humana com algum interesse cultural, me inspira. Evidentemente, comecei pela música erudita, que é uma escola de alfabetização musical. Ali se aprende toda a engenharia de criação musical que dá condições para entender o todo das expressões artísticas. A Música Popular Brasileira é uma das minhas paixões, porque envolve essa profunda dimensão cultural, desde o fim do século XIX até os dias de hoje.
Como avalia o percurso histórico da música no Brasil em suas múltiplas facetas?
Cada década apresenta na música uma certa característica própria e com destaque de alguns elementos próprios da época. No fim do século XIX, o Brasil, com sua miscigenação, começou a ter um espírito de música popular urbana, da qual os artistas herdaram elementos da música de salão europeia e transformaram em música brasileira. Os anos 1920 foram uma explosão, multiplicaram-se as formas de dança e as formas de execução musical. Nos anos 30, surgiram cantores como Orlando Silva, Chico Alves, com uma música abrangendo uma certa linearidade musical romântica. Nos anos 40, houve a explosão da rádio, em que as orquestras de rádio eram um fenômeno. Nos anos 50, explodiu o Samba Canção. Nos anos 60, a Bossa Nova, englobando o mundo inteiro na execução do estilo. Já no fim de 60, nasce a Jovem Guarda com músicas com conteúdo de protesto, frente à ditadura. Nos anos 70, veio a música melódica. E, nos anos 90, brota a música caipira. O percurso da música brasileira é marcado por novidades a cada década, com particularidades e peculiaridades próprias em sua composição e essência.
Por que a década de 1960 é considerada uma simbiose na cultura musical do País?
Na década de 1920, nos chamados “loucos anos 20”, o mundo inteiro explodiu em ideias, inclusive fora da Europa, e a década de 60 foi, também, essa simbiose, marcada por eventos excepcionais em que o mundo estava conectado com várias provocações culturais das mais variadas maneiras, tanto na área da música, da cultura popular, quanto nas grandes vanguardas intelectuais da época. Foi um momento de grande explosão e, felizmente, a Música Popular Brasileira reagiu bem, mesmo sob a pressão da ditadura na época. Apesar da censura, foi o período mais fértil da música brasileira, entre 1964 e 1972, com a popularização da Bossa Nova, com a Jovem Guarda. Com o rock internacional, não só dos Beatles, mas depois do Sargento Pepper, o rock passou a ser um elemento de provocação cultural política nos Estados Unidos e no mundo. A década de 60 é a época áurea não só na música, mas na arquitetura, no cinema, nos festivais musicais na televisão, marcados pelo espírito provocador de cultura e criação intelectual.
Como o senhor definiria o belo na música? É algo que se tem perdido?
O belo é algo indescritível, indecifrável. O belo tem características próprias que fazem você não saber explicar porque uma música é bela. É algo que a alma humana realmente esconde. A repetição de notas fascina. Frank Sinatra, Beethoven, Tom Jobim são cantados no mundo todo, com letras simples e poucas notas repetidas, que emocionam e encantam a alma humana.
Qual o papel da Igreja para a evolução da produção musical ao longo da história?
A Igreja patrocinou metade da música de qualidade no mundo. Felizmente, os papas, bispos e os grandes líderes culturais investiram nos melhores artistas do mundo para a sua produção musical. A Igreja intermediou grandes oratórios, festivais de música. Sem a co- laboração da Igreja, não existiria meta- de da música. A Igreja Católica é dotada de uma tradição musical astronômica, os maiores gênios da música fizeram suas peças mais belas para a Igreja. Hoje mudou um pouco esse cenário. Os corais, o órgão, canções de grandes compositores são um marco da Igreja que, infelizmente, foi se perdendo com a democratização da música. Dedico-me para manter vivo esse legado e para recuperar essa tradição.
Como o senhor percebe a capacidade da música de conectar o homem ao transcendente, a uma manifestação de fé?
A música tem o poder de conectar o ser humano a Deus e aproximá-lo Dele. Uma obra, seja ela de cunho religioso ou não, permite uma possibilidade de interpretação da alma humana, e por meio dela o ser humano é capaz de compreender o sobrenatural e se aproximar do transcendente, por meio da manifestação da fé e sensibilidade à arte.
A música e as artes, como um todo, de que forma foram essenciais para a humanidade suportar esse período de pandemia?
A meu ver, a pandemia e as medi- das restritivas marcam um período de obscurantismo para a música coletiva. A música envolve muitas pessoas, seja na composição das orquestras, seja nos bastidores dos espetáculos, seja na plateia. Infelizmente, com teatros e cinemas fechados, essa realidade impediu a execução de obras musicais nesse estilo. Muitas pessoas, porém, buscam na música uma relação de serenidade, paz e quietude. Muitos ouvem Bach, Beethoven, Tom Jobim, Chico Buarque, entre tantos outros, para se reconectar consigo mesmos. A música tem esse poder de apaixonar e serenar, mesmo nas agitações do cotidiano ou nas restrições de uma pandemia. Por exemplo, Beethoven escreveu suas canções há mais de 200 anos e ainda hoje as pessoas as ouvem e se emocionam.
O que é preciso fazer para resgatar a essência musical para as novas gerações?
O ensino musical é essencial na grade educacional. Essa foi a luta da minha vida inteira. Lutei para inserir no currículo a educação musical, para mostrar como o ser humano é rico, criativo musicalmente e para que, desde criança, ele possa ampliar o seu universo e o repertório musical.
Eu acho que ao citar a ”Jovem-Guarda”,duas vezes,ele estava querendo dizer ”Tropicália”.