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Lilia Schwarcz: ‘A leitura tem um grande potencial de quebrar o círculo vicioso da desigualdade’

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Lilia Moritz Schwarcz, antropóloga e historiadora, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2024, e autora e coautora de dezenas de livros, entre os quais “O sol do Brasil” (2008), “Um enigma chamado Brasil” (2010), “Enciclopédia Negra” (2021) e “Óculos de cor: enxergar e não ver” (2022), com os quais venceu o Prêmio Jabuti, a mais tradicional premiação literária do país, concedida pela Câmara Brasileira do Livro. Professora sênior do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), ela defende a leitura como um ato de cidadania, prazer e transformação social. 

Nesta entrevista ao O SÃO PAULO, Lilia fala sobre o papel da escola, das bibliotecas e do exemplo dos adultos na formação de novos leitores – “muitas vezes, os adultos querem que as crianças leiam, mas eles não leem” –, e ressalta a responsabilidade do Estado na promoção do acesso aos livros como “um ato fundamental de cidadania”. Leia a íntegra a seguir. 

O SÃO PAULO - Qual é o papel da leitura na formação moral e humanística das pessoas e também para ajudá-las a construir bons valores? 

Lilia Schwarcz – A leitura é fundamental na formação das pessoas. Sempre digo que quem tem um livro nunca está só. Os livros permitem viajar sem sair de casa, fazer amigos, lidar com as dificuldades e com as virtudes de outras pessoas. Os livros têm esse papel no sentido de desenvolver afeto e empatia, aguçam um espírito crítico, porque, ao ganhar informações, nós ganhamos repertórios, mais maturidade, nos colocamos nos lugares dos outros e, portanto, temos muito mais chances de ter uma cidadania mais plena e responsável, porque é uma cidadania aberta à escuta. Os livros são instrumentos de escuta. 

Em tempos de forte atração por telas e redes sociais, como podemos despertar e manter o interesse pela leitura, especialmente nas crianças e nos jovens? 

Eu tenho lido várias pesquisas que mostram a queda da leitura como espaço de lazer, o que é muito grave. Muitas vezes, os adultos querem que as crianças leiam, mas eles não leem. O que acontece, muitas vezes, é que nós, adultos, também não temos hábitos de leitura. Lemos por obrigação, não lemos em nossas horas vagas. O hábito de ler ajuda muito os filhos e os alunos. E o mesmo vale para os professores: precisamos de professores leitores tenham gosto pela leitura e que saibam incutir a beleza de um livro. Assim, teremos muito mais crianças e jovens não apenas presos ao celular, mas também inspirados por uma boa leitura. 

De que forma a família pode incentivar o hábito da leitura no dia a dia e criar um ambiente que estimule o prazer pelos livros? 

Eu penso que um ambiente de leitura em casa, no dia a dia, é o melhor exemplo. Sobretudo, é importante mostrar que a leitura não é obrigação: a leitura é lazer, é prazer, é o gosto pela boa informação, pelo pensamento crítico. Isso se constrói muito com a alteridade que o livro proporciona, essa possibilidade que ele traz de entrarmos em outras realidades e nos sentirmos, de fato, tocados, mobilizados e emocionados por elas. 

Como a escola pode ir além do currículo tradicional para promover a leitura como ferramenta de conhecimento, imaginação e cidadania? 

Como professora universitária, nas disciplinas de História e de Antropologia, jamais deixo de indicar livros de ficção, de poesia; também de indicar filmes e obras de não ficção que não são exatamente da minha área. A escola, os professores e os orientadores podem comentar com seus alunos quais são os autores de sua predileção, promover saraus de leitura, organizar a divisão da escola entre vários livros e pedir que uns ensinem aos outros. Existem muitas maneiras de difundir a leitura, mas a principal delas, repito, é o espaço que cada um de nós cultiva para ler um livro. 

Em um país com grandes desigualdades educacionais, quais estratégias podem ampliar o acesso de crianças e jovens a livros e bibliotecas de qualidade? 

Estamos em um país marcado pela desigualdade. Pesquisas mostram que países educados tendem a ser menos desiguais, menos autoritários e menos radicais. Uma política de distribuição de livros para professores da escola pública, custeada pelo governo e realizada de forma ampla, assim como a distribuição de livros para os próprios alunos e a implantação de políticas de fortalecimento das bibliotecas públicas, constituem um conjunto de medidas fundamentais. A leitura tem um grande potencial de quebrar o círculo vicioso da desigualdade, da pobreza, e o governo tem um papel muito grande nesse sentido. Todo governo republicano precisa nos garantir segurança, educação e saúde. A educação faz parte dessas metas fundamentais de um governo, e a compra e distribuição de livros para alunos, professores e às bibliotecas públicas é um ato fundamental de cidadania. 

Qual é, hoje, o papel da Academia Brasileira de Letras na sociedade brasileira, especialmente na valorização da cultura e da língua portuguesa e no incentivo à leitura? 

Estou na Academia há pouco mais de um ano e tenho percebido esse lugar simbólico que a ABL possui. As pessoas projetam muito, imaginam muito a partir desse espaço, como uma instituição de preservação — não de um saber livresco, mas um saber que se atualiza e se transforma com o tempo —, e, também, como um espaço de defesa da língua portuguesa, ou, poderíamos dizer, da língua brasileira, à moda de Macunaíma. 

Temos poucas instituições culturais centenárias, como é o caso da ABL, e por isso ela precisa ser preservada e não só expandida, servindo de exemplo. Claro, cada um dos membros carrega suas especificidades, mas todos têm na leitura um hábito comum e uma forma de vida. Por isso, acredito muito nesse espaço da ABL. 

Qual conselho a senhora daria a quem deseja desenvolver o hábito de ler e transformar a própria realidade por meio do conhecimento, mesmo com poucos recursos? 

Existem muitas maneiras. Primeiro, temos muitos livros on-line agora, em PDF. Se a pessoa não tem muitos recursos, pode ir às redes sociais e encontrar livros, ou ainda ir a bibliotecas. O Padre Júlio Lancelotti, por exemplo, inaugurou uma biblioteca aberta à população de rua. Esses são exemplos que estão aumentando no Brasil e que precisam aumentar muito mais. Toda pessoa pode recorrer a uma biblioteca pública. E o que ela precisa, eu diria, é ser tomada pela febre do conhecimento. Precisa entender o que a cativa mais: É a literatura? A ficção? A não ficção? Os livros em quadrinhos? Os romances de divulgação? Os livros de história, de poesia? Esse é o caminho mais bonito para um futuro leitor: descobrir o que, de fato, bate no coração, de que maneira ele se sente acolhido pelos livros de um ou outro estilo. 

O historiador e acadêmico Evaldo Cabral de Mello diz que não há uma única forma. Ele costuma brincar dizendo que a história é como a casa do Senhor, que tem muitas portas e muitas janelas. Eu acredito que a literatura é assim: também é uma casa com muitas portas e janelas. Não existe um único caminho, mas sim o melhor caminho para a melhor pessoa. 

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