Este crime silencioso, que transforma vidas em mercadoria, tem atingido desde pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social a profissionais com alta escolaridade

Sob a fachada de uma São Paulo que atrai milhões de pessoas em busca de oportunidades, há uma rede criminosa que transforma seres humanos em mercadoria. De profissionais de tecnologia iludidos por falsas promessas de trabalho na Ásia a jovens do interior e migrantes venezuelanos, o perfil das vítimas do tráfico de pessoas é diverso e revela a complexidade de um crime que movimenta bilhões de dólares no mundo.
Para conscientizar sobre esta grave violação de direitos humanos, é celebrado, em 30 de julho, o Dia Mundial de Combate ao Tráfico de Pessoas.
O mais recente Relatório sobre Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) aponta que o número de vítimas detectadas no mundo cresceu 25% no comparativo de 2019 com o de 2022, revertendo a tendência de queda observada durante a pandemia.
A ONU estima que esse crime atinja 2,5 milhões de vítimas e movimente cerca de 32 bilhões de dólares por ano, com mulheres e meninas representando 61% dos casos, principalmente para a exploração sexual.
O Protocolo de Palermo, tratado da ONU, define o tráfico de pessoas como o recrutamento, transporte ou alojamento de indivíduos sob ameaça, fraude ou abuso de uma situação de vulnerabilidade. Para Heidi Cerneka, missionária e advogada do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), este último ponto é a chave do problema: “Os traficantes visam aos indivíduos vulnerabilizados. No Brasil, a questão é frequentemente tratada apenas sob a perspectiva do policiamento, sem considerar o contexto da vulnerabilidade social que joga as pessoas nas mãos dessas redes”.
UM PROBLEMA ATUAL
Operações recentes da Polícia Federal (PF) expõem a ousadia das quadrilhas. No final de 2024, uma organização que usava uma falsa agência de modelos para traficar mulheres para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, foi desarticulada em São José dos Campos (SP). As vítimas tinham passaportes confiscados e eram forçadas a ostentar uma vida de luxo nas redes sociais para atrair novas vítimas, enquanto eram sexualmente exploradas.
Neste mês de julho, com mandados cumpridos em São Paulo e no Distrito Federal, outra operação da PF desmontou um esquema de tráfico internacional de mulheres para a Europa. O grupo as aliciava principalmente a partir de um perfil de modelo pelas redes sociais.
O Brasil avança com políticas de combate a este crime, como o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, criado em 2006, mas o desafio permanece. Em São Paulo, as vítimas vão desde pessoas em extrema vulnerabilidade até indivíduos com alta escolaridade, todos iludidos por propostas que, depois, se revelam uma armadilha.
Para Heidi Cerneka, a lógica por trás de todas as histórias é a mesma: a mercantilização do ser humano. “As pessoas são vistas como produtos descartáveis para gerar lucro”, afirma.
Giuliano Campos de Farias, coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) do estado de São Paulo, alerta que o tráfico de pessoas afeta todas as classes sociais, desde empresários a trabalhadores comuns: “É importante que as pessoas estejam cientes dos riscos ao aceitar algumas propostas de trabalho, e devem comunicar os familiares sobre elas. Casos de trabalho escravo doméstico também são comuns e ‘normalizados’, com vítimas muitas vezes abandonadas pelas famílias que as exploraram por décadas. O Ministério Público do Trabalho tem atuado para proteger essas trabalhadoras e garantir seus direitos”.
NOS ÚLTIMOS 4 ANOS
- Das 480 denúncias feitas ao Disque 100 em todo o Brasil, 122 foram de São Paulo (25,4% do total);
- 64,42% das possíveis vítimas em São Paulo são mulheres;
- Foram registradas 3,3 mil denúncias de crimes cibernéticos ligados ao tráfico no País;
- Apenas em 2024, o SUS notificou o atendimento a 50 vítimas de tráfico em SP.
Fonte: Painel sobre Tráfico Humano do Ministério da Justiça e Segurança Pública
Um sonho que virou um terror

Viúva, mãe de dois filhos e desempregada na Venezuela, Anabella (nome fictício) viu na proposta de uma vizinha para trabalhar como cuidadora de idosos em São Paulo uma boa chance de reestruturar a própria vida.
“Quando ela me falou da oferta, vi como uma oportunidade para cuidar dos meus filhos e da minha avó”, contou à reportagem do O SÃO PAULO, detalhando que a rede criminosa organizou tudo: passagens, instruções e dinheiro para que ela dissesse à Polícia Federal que vinha ao Brasil a turismo.
Ao chegar ao prédio em que supostamente trabalharia, o sonho virou terror. Seus documentos foram tomados, e a verdade, revelada: ela fora recrutada para servir de “mula” no tráfico internacional de drogas. “Eles me obrigaram a engolir aquelas coisas. Caso não o fizesse, disseram que matariam minha família”, recordou.
Anabella não conseguiu engolir as cápsulas. Como punição, foi torturada e violentada por três dias. Após desmaiar, acordou sozinha e conseguiu chegar à sacada, onde foi avistada por pessoas que chamaram a polícia. Socorrida, foi levada a um hospital e, depois, a um albergue. O trauma deixou marcas profundas: uma gravidez resultante dos abusos – ela acabou por sofrer aborto espontâneo depois – e a família ameaçada na Venezuela, tendo inclusive sua casa completamente destruída.
Com a ajuda de uma pastoral social, Anabella trouxe seus filhos para o Brasil. Embora um dos traficantes tenha sido preso, a justiça parece distante. “Além de viver com os traumas, convivo com o medo. Recentemente, vi a mulher que me aliciou andando livremente pela rua”, relatou.
Domésticas abandonadas após anos de trabalho
Uma realidade recorrente nos centros de acolhida de São Paulo é a de trabalhadoras domésticas resgatadas de condições análogas à escravidão. Muitas iniciaram o trabalho ainda na infância, sob a falsa promessa de educação. Privadas de direitos, saúde e vida social, são abandonadas quando sua força para trabalhar acaba.
As narrativas dessas mulheres são semelhantes: décadas de dedicação exclusiva a uma família, sem nunca terem vivenciado experiências comuns como celebrar o próprio aniversário, um Natal com dignidade ou simplesmente o direito ao descanso. Quando a força de trabalho se esvai, por doenças crônicas ou degenerativas, o abandono é a sentença final e resta-lhes tentar acolhimento nos serviços sociais do município de São Paulo.
Segundo Alline Pedrosa Oishi Delena, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT-SP), a reintegração é delicada: “Muitas dessas mulheres, que passaram décadas em uma mesma casa, desenvolvem laços afetivos com a família exploradora e se recusam a ir para abrigos”.
Para atender a essa demanda, o MPT-SP analisa o perfil de cada vítima para inseri-la em programas de assistência social adequados. Uma das iniciativas é a parceria com a Prefeitura de São Paulo para a concessão de um auxílio-aluguel, permitindo que as resgatadas tenham uma moradia digna sem a necessidade de institucionalização.
As ações pós-resgate são fundamentais para evitar que essas mulheres, na maioria idosas, analfabetas e com a saúde debilitada por anos de negligência e trabalho ininterrupto (24 horas por dia, 7 dias por semana), retornem ao ciclo de exploração. Muitas delas nunca tiveram a oportunidade, por exemplo, de realizar exames médicos básicos. Nesse contexto, o projeto “Ação Integrada”, do MPT-SP, visa a fortalecer o apoio a essas vítimas, complementando a atuação do Estado e garantindo um suporte direcionado para a superação das vulnerabilidades e a reconstrução de suas vidas.
O aliciamento das redes de tráfico aos profissionais de TI

O relato de brasileiros aliciados pelas redes de tráfico de pessoas para trabalhar com Tecnologia da Informação (TI) em países como Myanmar e Tailândia tem sido crescente. Atraídos por altos salários em dólares, ao chegar aos países eles têm os passaportes retidos e são forçados a cometer crimes on-line.
“As vítimas enfrentam sérios danos psicológicos ao retornar, e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Único de Saúde (SUS) estão disponíveis para suporte”, assegura Giuliano Campos de Farias, coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo.
Conforme informou a Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado de SãoPaulo, nos casos das vítimas que foram para Myanmar, além dos altos salários em dólar, todas tiveram suas viagens pagas até lá pelos aliciadores. Ao chegarem, porém, enfrentaram dívidas iniciais, tiveram passaportes retidos e foram forçadas a cometer crimes on-line sob ameaça de violência.
Após dificuldades até de natureza burocrática para que fossem resgatadas, essas vítimas foram atendidas por serviços sociais no Brasil, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), além das organizações da sociedade civil como o Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami). Existem ainda casos de pessoas que foram vítimas de tráfico duas vezes. Graziella Rocha, da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad), destaca a complexidade deste cenário: “Os golpes on-line, uma realidade para muitos, são desenvolvidos por vítimas traficadas que, sob coação, são forçadas a criar essas fraudes. A prevenção precisa ser adaptada a esses diferentes perfis”.
E o que tem feito o poder público perante o problema?

Para fortalecer a proteção às vítimas, o Governo do Estado de São Paulo afirma que reestruturou seu principal órgão de combate ao tráfico de pessoas: o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) foi transformado em uma divisão, agora integrada a um novo Departamento de Proteção à Pessoa na Secretaria de Justiça e Cidadania, centralizando também o amparo a testemunhas e crianças ameaçadas.
Apesar da mudança, há relatos de escassez de recursos financeiros e humanos, limitando ações essenciais, como as campanhas de conscientização e capacitações em locais estratégicos como portos, aeroportos e rodoviárias.
Entidades da sociedade civil e especialistas apontam fragilidades na articulação entre os diferentes órgãos. O Comitê Estadual (CEETP/SP) é considerado enfraquecido, e a frequência de suas reuniões, a cada 60 dias, é vista como insuficiente para uma resposta ágil.
Giuliano Campos de Farias, coordenador da Divisão, admite a necessidade de ajustes e de mais capacitação nas prefeituras, especialmente em municípios menores. Ele ressalta que a atuação em rede com a sociedade civil é um pilar crucial, com ONGs garantindo acolhimento humanizado às vítimas: “As pessoas se sentem muito mais à vontade de buscar a Secretaria do que uma delegacia”.
Roque Renato Patussi, do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami), diz não ter visto avanços: “Desde a pandemia, as reuniões são apenas virtuais, a cada dois ou três meses. Essa frequência é insuficiente para desenvolver políticas públicas eficazes. A percepção é de que há uma aparência de cumprimento da lei, mas falta organização, verba e ações concretas”.
Apesar desses desafios, especialistas dizem que o Brasil possui uma das abordagens mais avançadas do mundo para o combate ao tráfico de pessoas. Graziella Rocha explica que o País se destaca por reconhecer o trabalho escravo de forma abrangente, para além do cárcere privado, e por ter uma lei migratória que prioriza os direitos humanos. “A abordagem brasileira inclui uma visão sistêmica, observando as cadeias produtivas e buscando responsabilizar grandes empresas, em vez de focar casos isolados. Essa perspectiva estrutural é um diferencial importante”, avalia.
NÃO CAIA NAS REDES DO TRÁFICO DE PESSOAS
Sempre desconfie de:
Promessas de dinheiro fácil e rápido.
Pesquise para saber se a ‘empresa’ não tem histórico de:
Restrição de liberdade dos funcionários;
Isolamento e vigilância constante;
Retenção de documentos pessoais (passaporte, RG);
Condições de trabalho degradantes;
Dívidas fraudulentas.
Como Denunciar:
Disque 100 (Direitos Humanos): denúncias anônimas de tráfico de pessoas;
Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher): apoio a mulheres em situação de violência;
Sistema Ipê (Trabalho Escravo): plataforma on-line para denúncias de trabalho análogo à escravidão. A identidade é mantida em sigilo: https://ipe.sit.trabalho.gov.br/#!