Natália Fregonesi: ‘Não será uma política única que vai conseguir melhorar a educação básica no Brasil’

Todos pela Educação/Divulgação

O Censo Escolar da Educação Básica 2023, apresentado pelo Ministério da Educação em 22 de fevereiro, revelou melhorias nos indicadores de matrículas nas escolas de tempo integral e na educação técnico-profissional, porém persistem problemas como a evasão escolar no ensino médio e uma quantidade significativa de pessoas – cerca de 68 milhões – sem a devida alfabetização no Brasil, segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016-2023 (PNAD).

Nesta entrevista, os dados são analisados por Natália Fregonesi, analista de políticas educacionais da organização Todos pela Educação, que se dedica a estudos sobre a qualidade da educação básica no Brasil. 

O SÃO PAULO – Os dados recentes apresentados pelo Ministério da Educação indicam que 68 milhões de brasileiros – cerca de 31% da população – não possuem escolarização básica, dos quais 8,8 milhões têm entre 18 a 29 anos. O quanto estes indicadores são preocupantes?

Natália Fregonesi – Apesar de este cenário ser extremamente desafiador, o Brasil vem evoluindo ao longo dos anos nestes indicadores, embora seja um avanço muito lento frente aos desafios que encontramos. É preciso que consigamos mitigar esta realidade, pois há diversos estudos que mostram os efeitos benéficos de bons indicadores em educação para uma sociedade, seja para o desenvolvimento econômico, redução de violência, níveis de trabalho. Portanto, é muito importante que os governos federal, estaduais e municipais pensem em um plano sistêmico para a educação básica, pois não será uma política única que vai conseguir melhorar a educação básica no Brasil. Quando se apresenta um cenário em que muitas pessoas não concluem a educação básica, elas não terão outros níveis de escolarização para se qualificar para o trabalho e se perceberá este impacto na mão de obra. Há também os aspectos sociais, pois quando as pessoas concluem a educação básica poderão ter, depois, acesso à educação superior ou técnica, atingirão melhores trabalhos, melhores salários. Assim, ter muitas pessoas sem a educação básica reverbera nas questões sociais, com maior nível de desigualdade social e mais pessoas em situação de pobreza.

O Censo Escolar indicou uma realidade de 7% de evasão escolar no 1o ano do ensino médio. Quais fatores explicam este indicador?

Não há uma causa única, mas algumas hipóteses. Uma delas é que muitos estudantes do ensino médio optam por deixar a escola para trabalhar, seja pela necessidade de ajudar financeiramente a família, seja para ter independência financeira; outra possível causa é o fato de a escola ter se tornado desinteressante para estes jovens, que já chegam ao ensino médio muito desmotivados e encontram uma escola que não lhes faz sentido perante a sua realidade. Além disso, os níveis de reprovação são altos, o que pode contribuir para a evasão. E há, ainda, as questões de aprendizagem. Muitos estudantes chegam ao ensino médio com dificuldades para acompanhar as disciplinas, ficam facilmente desmotivados e se evadem da escola. 

Iniciativas como o programa ‘Pé de meia’, recentemente anunciado pelo governo federal, podem ajudar a reverter essa evasão escolar?

Quando olhamos para a experiência de outros países que implementaram programas parecidos, vemos que esta iniciativa pode dar certo, pois tem um desenho que combina pagamentos recorrentes mensais com uma poupança ao final do ensino médio. É importante destacar, porém, que esta não pode ser vista como a única solução para o ensino médio, pois a magnitude dos problemas é bem maior que essa política. O programa garante que os estudantes permaneçam na escola, mas não tem nada atrelado à aprendizagem. E os dados de aprendizagem do ensino médio estão estagnados há muito tempo. Portanto, é preciso olhar o ensino médio de uma forma mais sistêmica, repensar a própria estrutura curricular, o financiamento desta etapa, a formação dos professores, suas condições de trabalho e a infraestrutura das escolas. 

Houve o aumento do número de matrículas de educação em tempo integral no ensino médio. O quanto isto é um dado positivo?

Inicialmente, é importante diferenciar que existe a escola em tempo integral e existe a educação integral, que é mais do que o estudante estar mais tempo na escola. Nesta proposta diferenciada da escola, continua a existir a estrutura curricular comum, com todas as disciplinas, mas nas escolas em que há resultados efetivos, como por exemplo no estado de Pernambuco, o estudante tem maior protagonismo, há disciplinas diferenciadas, como a de projeto de vida, para que pense o próprio futuro após o ensino médio, e ele participa de clubes de leitura, esportes e outras atividades que o fazem ‘aprender a aprender’. A questão estrutural também é importante, com professores com dedicação exclusiva, de modo que conseguem criar vínculos com os estudantes e apoiá-los em seu desenvolvimento. Mas este primeiro passo já é muito importante: garantir que estes estudantes estejam mais tempo na escola para que este modelo pedagógico mais eficiente possa ser aplicado.

O aumento de 12% no número de matriculados no ensino técnico de 2022 a 2023 representa quais ganhos para os próprios estudantes e para o País?

Consideramos como um fato muito positivo este aumento na quantidade de matrículas na educação profissional, pois mostra que os estudantes estão tendo esta possibilidade de escolha. Em recente pesquisa que fizemos com jovens do ensino médio, uma grande parcela deseja realizar faculdade, mas há uma parcela também significativa que quer fazer um curso técnico, matricular-se na educação profissional. Assim, é muito importante garantir vaga para estes estudantes e que haja qualidade nesta formação, para que aquele que realizar o ensino técnico fique bem preparado para o mercado de trabalho, tenha a possibilidade de alcançar um emprego melhor. 

Outro dado que chamou a atenção é o fato de 51,6% dos professores das redes estaduais de ensino serem contratados de forma temporária. O quanto isto impacta o processo de ensino nas escolas?

O papel do professor é fundamental e se quisermos ver melhorias na educação precisamos valorizá-los mais. É preciso considerar que professores com contrato temporário mudam muito de escola, trabalham em mais de uma, e tudo isso é ruim, pois dificulta a criação de vínculos com os estudantes e com a própria comunidade. 

Mesmo o País tendo 68 milhões de pessoas sem a devida escolarização básica, houve queda de 7% nas matrículas nas turmas de educação de jovens e adultos. Como entender este fato?

Há um grande desafio para a educação de jovens e adultos que é a atratividade e a permanência dos estudantes nas turmas. Para eles, é um cenário difícil: a maioria trabalha durante o dia e só terá tempo para frequentar a escola à noite. Além disso, muitas vezes estas pessoas não enxergam a real necessidade de possuir o diploma do ensino médio, pois mesmo tendo abandonado os estudos no passado conseguiram algum trabalho, têm renda, não veem, portanto, uma perspectiva sobre o que de fato pode melhorar em suas vidas com os estudos. Nesse sentido, é importante que a formação de jovens e adultos seja mais atrativa e atrelada à formação profissional. 

O Censo Escolar também mostrou que ainda estamos distantes da meta de ao menos 50% das crianças de 0 a 3 anos matriculadas em creches. O percentual atual é de 41%. O que pode ser feito para que alcancemos o mínimo previsto no Plano Nacional de Educação (PNE) para 2024?

Olhando para os próximos anos, há um ponto muito importante para a ampliação de vagas em creche que é o regime de colaboração. Hoje, os responsáveis pela oferta das creches são os municípios, mas muitas vezes eles têm dificuldades de garantir esta oferta, por causa de limitações financeiras ou dificuldades técnicas. Neste sentido, ter o apoio dos estados é fundamental, bem como do governo federal, por meio de uma política nacional para a educação infantil, que ofereça apoio técnico e financeiro para os municípios nesta etapa.

Diante de tantos desafios, qual a contribuição a ser dada pelas famílias? 

Quando conversamos com professores ou observamos as pesquisas de opinião com eles, percebemos que é sempre desafiador esse relacionamento da escola com a família, especialmente nos anos finais do ensino médio, quando a presença dos pais na escola vai diminuindo: pouco participam da vida escolar de seus filhos, vão apenas para as reuniões. É muito importante que os pais e familiares estejam engajados na rotina dos estudantes, que possam apoiá-los tanto na questão motivacional quanto nos estudos. E à escola compete criar ambientes favoráveis para o fortalecimento dos vínculos e das relações com as famílias. E isso pode ser feito propondo mais momentos para que as famílias estejam presentes no ambiente escolar. Quanto maior o engajamento dos pais na vida escolar de um filho, maior o potencial deste estudante conseguir se desenvolver. 

No Pacto Educativo Global, proposto pelo Papa Francisco, se ressalta a construção de um processo educativo que coloque o desenvolvimento das potencialidades de cada pessoa como prioridade e que estas se formem disponíveis para estar a serviço da comunidade. O quanto estamos próximos deste horizonte na educação básica do Brasil?

Acredito que estamos tentando trilhar este caminho. As boas experiências nacionais de educação, especialmente de educação integral, vão no sentido de colocar o desenvolvimento dos estudantes no centro do processo, ter professores valorizados, a comunidade mais integrada à escola. Tudo isso, porém, ainda é desafiador, pois colocar em prática os pontos essenciais do Pacto esbarra em questões com a infraestrutura das escolas, as condições de trabalho dos professores e a desmotivação dos estudantes. 

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