Orquestras sinfônicas se reinventam durante a pandemia e encontram o público pelas telas

As lives já chegaram a reunir, cerca de 10 mil pessoas ao mesmo tempo e 85 mil no total. As transmissões exigem das orquestras uma atualização constante de repertório e as obrigam a pensar ainda mais na recepção do público

Orquestra Sinfônica Brasileira – Divulgação

Uma sala de concerto comporta, em média, 1,4 mil pessoas. A Sala São Paulo, uma das mais conhecidas do Brasil, tem 1.498 lugares. Apresentações com salas lotadas já vinham sendo uma realidade no País, mas o que muitas orquestras não esperavam era realizar uma única apresentação para 85 mil pessoas.

Essa experiência foi vivida pela Orquestra Ouro Preto, que reuniu, em sua primeira live, cerca de 10 mil pessoas ao mesmo tempo e 85 mil no total. “Na nossa última live, que aconteceu semana passada, tínhamos cerca de 1,8 mil pessoas nos acompanhando ao mesmo tempo e mais de 10 mil no fim da apresentação. Isso num contexto em que as pessoas já estão cansadas das lives”, disse, em entrevista ao O SÃO PAULO, o maestro Rodrigo Toffolo, regente e diretor artístico da Orquestra Ouro Preto.

As transmissões exigem das orquestras uma atualização constante de repertório e as obrigam a pensar ainda mais na recepção do público. A Orquestra Sinfônica Brasileira, por exemplo, inovou, apresentando ao público concertos de músicas românticas, brasileiras e, na quinta-feira, 22, apresentará um noneto de cordas e sopros, tudo gratuito. Já a Orquestra Ouro Preto prepara uma apresentação virtual em que o repertório será escolhido pelo público, ao vivo.

ADAPTAÇÃO

Quando conversou com a reportagem em setembro de 2020, Emmanuele Baldini, maestro italiano, violinista e spalla da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), falou sobre as dificuldades em celebrar os 250 anos de Beethoven, previstos para 2020, que foram prorrogados para 2021.

Isso porque o streaming, ou seja, a transmissão em tempo real, foi se tornando uma realidade ao longo do tempo e, num primeiro momento, as orquestras tiveram que improvisar formas de dar continuidade às apresentações.

“Num primeiro momento, tivemos muitas dúvidas e, como os encontros estavam proibidos, começamos a realizar gravações domésticas. Como conciliar isso, porém, quando, na apresentação ao vivo, é o maestro que dá as coordenadas? Por outro lado, foi muito bonito ver os músicos em suas próprias casas. Saímos da nossa zona de conforto. A sala de concerto é nosso habitat e as relações mudam quando o formato muda”, explicou Toffolo.

O maestro salientou que a arte foi muito importante durante a quarentena. “Foi a arte, em grande medida, que ajudou as pessoas a permanecerem em casa. E quando falo arte, refiro-me a todos os tipos de arte”, disse, apontando para o fato de que houve, também, um movimento de percepção dos processos artísticos e não só do resultado. “Em minha opinião, as pessoas perceberam que há muita coisa por trás do controle remoto”, continuou.

Toffolo disse que o streaming veio num segundo momento. “Fazer transmissão ao vivo também foi um desafio, pois requer mais qualidade e precisão. Nenhuma orquestra hoje, no Brasil, tem estrutura e orçamento suficiente para fazer boas transmissões e, por isso, a sensibilidade dos patrocinadores foi essencial.”

Ele disse, ainda, que foi um processo de encontro de novos profissionais e competências. “Por exemplo, as pessoas que ficavam na mesa de corte tinham que ser acompanhadas por uma maestrina, pois não sabiam qual seria o próximo instrumento a ser tocado”, explicou.

O maestro lembrou, ainda, que até os erros são mais relativizados num concerto presencial, enquanto nas gravações tudo fica registrado e erros são mais perceptíveis.

“Outra mudança foi a do repertório, pois fazíamos turnês com o mesmo repertório por meses e, nas transmissões on-line, é preciso renová-lo constantemente”, completou.

Outra vantagem das transmissões é o fato de pessoas de todos os lugares acompanharem as apresentações. “Isso dá possibilidade a quem nunca pode ir ao teatro”, disse Toffolo.

Embora existam muitas vantagens, o regente da Orquestra Ouro Preto disse, porém, que não vê a hora de voltar às apresentações presenciais. “Algumas mudanças nos ajudaram a refletir e agir como artistas da música. Aprendemos a importância de formar um público e de sentir a sua recepção, ou seja, de nos aproximarmos das pessoas que nos escutam. Devemos ser mais cuidadosos com o repertório, com a maneira de tocar, com a interação, com as redes sociais”, disse.

RECEPTIVIDADE

Gregório Tavares é diretor executivo da Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira. Ele falou sobre os desafios que a pandemia criou para as orquestras, sobretudo ao longo de 2020.

“Foi preciso fazer todo o trabalho artístico remotamente. Muitas adaptações foram necessárias, inclusive com a capacitação de profissionais de audiovisual para a produção de conteúdos musicalmente interessantes, com cada músico gravando de sua própria casa”, disse à reportagem.

Para ele, a adaptação por parte dos músicos para que fosse possível realizar os conteúdos artísticos com eles mesmos tocando e realizando as gravações, explorando as múltiplas e novas funções de cada um, foi um dos principais trabalhos.

Tavares salientou a dificuldade em conseguir fazer música a distância. “O músico (de orquestra, principalmente) precisa estar junto, é um organismo pulsante e coletivo. Pouco a pouco, porém, fomos conseguindo criar dinâmicas possíveis de fazer a coletividade acontecer, mesmo no distanciamento. Hoje, estamos realizando um modelo de gravação com as pessoas reunidas (seguindo rigorosos protocolos de segurança), o que é motivo de muita alegria para todos os envolvidos”, continuou.

Ao ver o engajamento e o retorno das plataformas da orquestra ganhar novos contornos e dimensões, o diretor viu o cenário se transformar e afirma que a receptividade do público foi surpreendente.

“Podemos afirmar que nos unimos e nos fortalecemos coletivamente. Por meio de diálogos frequentes e constantes, pudemos buscar o acolhimento entre nós mesmos e o acolhimento do público, que desde o início da pandemia tem sido muito generoso e carinhoso em cada conteúdo que veiculamos nos palcos virtuais da orquestra”, afirmou.

Para Tavares e os demais membros da orquestra, é extremamente motivador ler cada mensagem, cada comentário recebido diariamente durante os concertos digitais, nos bate-papos on-line que são realizados nas plataformas: “É um espaço de trocas novo e que nos aproximou das pessoas, mesmo no distanciamento social”.

A Orquestra Sinfônica Brasileira tem realizado gravações presenciais, mas sem o público presente fisicamente. “Nossa expectativa é que poderemos voltar a receber o público de maneira gradual a partir do mês de setembro. Estamos bastante felizes e animados com essa perspectiva. De todo modo, nosso plano é continuar gravando conteúdos on-line e manter o contato com o público presencial, mas também virtual, o que permite o acesso a pessoas em diversas regiões do País e do mundo.”

POSSIBILIDADES

Orquestra Sinfônica Brasileira – Divulgação

Do outro lado do mundo, a experiência de Francesco Mastromatteo, concertista e diretor do Conservatório Umberto Giordano, no Gargano, na Itália, mostra que um dos aspectos positivos das transmissões ao vivo é justamente a possibilidade de as pessoas terem acesso à música de excelência que está sendo produzida em diferentes partes do mundo. 

Para ele, a limitação que a pandemia trouxe ao permitir somente apresentações virtuais por cerca de um ano e meio foi uma forma de manter viva a arte musical e, por outro lado, importante para sentir o quanto é necessária a proximidade entre os músicos e o público.

“A interação do público muda nossas apresentações, bem como as relações entre professores e alunos num conservatório, como é o nosso caso. Por isso, eu vivi esse período como paliativo, algo que fez com que eu desejasse sempre mais o encontro entre as pessoas e a possibilidade de nos abraçarmos artisticamente.

Sobre a reação do público em concertos on-line, Mastromatteo apontou para o fato de ser totalmente diferente daquele presencial. “Para nós, como artistas, foi pedido mais precisão técnica, porque a execução ao vivo deixa as imprecisões menos perceptíveis e fazem parte do espetáculo. Já nas lives, é preciso estar mais atento a todo e qualquer erro.” 

Sobre o futuro da música clássica, o concertista foi enfático ao dizer que as transmissões ao vivo farão parte da linguagem artística e se somarão aos concertos ao vivo. 

“A reprodução on-line será, porém, para ampliar o horizonte do público, mas não substituirá a atmosfera do concerto ao vivo. Espero que que todos possam perceber a diferença entre os diversos modos, mesmo em se tratando de uma mesma apresentação. E que o on-line possa estimular as pessoas a escutarem cada vez mais música”, afirmou.

Mastromatteo disse, ainda, que a qualidade da música de concerto atual é extremamente alta, pois o contexto faz com que todas as linguagens sejam realizadas em diferentes níveis de qualidade e com a ampliação dos gêneros.

 “As pessoas têm, hoje, muitas possibilidades no que se refere à música e, sobretudo, a de fazer escolhas. Vejo a música clássica numa trajetória de diversificação e experimentação com a capacidade de oferecer originalidade ao público, e isso é muito valioso”, concluiu. 

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