Padre Carlos Alberto Contieri: ‘Paulo foi alcançado pela misericórdia de Deus’

Luciney Martins/O SÃO PAULO

A Festa da Conversão de São Paulo, celebrada no dia 25, recorda a experiência que transformou Saulo, perseguidor implacável dos cristãos, no ardoroso apóstolo de Cristo. Para compreender como se deu essa mudança radical na vida de Paulo, O SÃO PAULO entrevistou o Padre Carlos Alberto Contieri, Diretor do Pateo do Collegio, na capital paulista.

Especialista em Exegese Bíblica pelo Instituto Bíblico de Roma (Itália), pela Universidade de Louvain (Bélgica) e pela École Biblique de Jerusalém (Israel), o Jesuíta destacou que a conversão de Paulo é resultado de uma experiência que o próprio apóstolo descreve como uma profunda “revelação” de Cristo, que mudou radicalmente a sua vida. Confira a seguir.

O SÃO PAULO – A partir dos relatos bí- blicos, é possível descrever quem e como era Saulo de Tarso?

Padre Carlos Alberto Contieri – O ponto de partida é considerarmos que temos dois blocos de testemunhos sobre Saulo ou Paulo. O primeiro não é narrado por ele, mas por Lucas, que são os três episódios que falam dele nos Atos dos Apóstolos. Depois, tanto na Carta aos Gálatas quanto na Primeira Carta aos Coríntios, há os testemunhos mais importantes em que Paulo fala de sua própria experiência.

O que podemos dizer de Saulo é que era um exímio fariseu, não apenas zeloso, mas acima da média. Era um defensor da tradição dos seus ancestrais, profundamente identificado com as raízes do seu povo. Como fruto da sua conversão, ele mesmo vai dizer que era um perseguidor implacável da Igreja de Cristo e que, no caminho para Damasco, essa Igreja se identificará com o próprio Senhor, que lhe pergunta: “Por que me persegues?”

E como foi essa conversão exatamente?

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que nem nos Atos dos Apóstolos nem nas cartas de Paulo, o termo “conversão” é utilizado. Nós falamos e celebramos liturgicamente a conversão de São Paulo e podemos usar esse termo legitimamente para designar sua experiência. No entanto, o que  Paulo utiliza para se referir à experiência do caminho para Damasco é o termo “revelação”. Para ele, tratou-se de uma revelação de Jesus Cristo, que mudou radicalmente a sua vida. Fez com que ele passasse de perseguidor implacável da Igreja a apóstolo. Portanto, não foi nenhum ser humano que provocou essa transformação radical. Nós ainda poderíamos dizer, à luz do próprio relato de Lucas, que a experiência de Damasco foi uma “iluminação”. O Messias que os judeus esperavam, Paulo encontra, ou melhor, é encontrado por Ele. Tanto que, de fato, uma luz muito forte ofusca sua visão. Podemos dizer que, teológica e biblicamente, essa cegueira de Paulo é como se fosse para dar a ele uma nova visão de todas as coisas. Portanto, o dinamismo de toda e verdadeira conversão radical sempre se dá pela iniciativa de Deus. E sempre há, de algum modo, uma experiência de iluminação, de revelação.

Essa transformação na vida de Paulo se deu por meio de um processo ou foi uma mudança imediata?

Não existe conversão imediata, de modo que eu durma de uma maneira e acorde de outra. A conversão depende de um processo, de uma história. Assim foi para Paulo. Deus só se revela em uma história e nós não o conhecemos em um ato, mas olhando como Ele passa pela história. Não existe a mágica da conversão, mas um processo doloroso e, muitas vezes, prolongado, porque exige que admitamos que, em muitas ocasiões, nós nos equivocamos ou não estávamos no passo desejado e, por isso, temos que refazer opções, ver as coisas de uma nova maneira. Tomemos outra imagem, a do capítulo 18 do livro do Profeta Jeremias, aquele belíssimo episódio do vaso que é modelado pelas mãos do oleiro. Isso é dolorido. Quando não dá certo, é preciso refazer a forma.

Quanto a Paulo, não há como precisar quanto tempo durou esse processo de conversão. Podemos prever, porém, que, após a experiência de Damasco, viveu três anos na Arábia antes de se encontrar com os outros apóstolos. É como se ele precisasse amadurecer a experiência vivida. Além disso, dado quem ele era, as pessoas não iriam acreditar de imediato na sua transformação radical. Era preciso um tempo para assimilar essa existência transfigurada. Se lermos as suas cartas com o cuidado que elas merecem, veremos que essa conversão se dá aos poucos, que ele tem que refazer várias posições.

Muitas pessoas entendem a conver- são apenas como a mudança de al- guns aspectos ou hábitos da vida. No entanto, com Paulo foi mais profun- do, certo?

Exatamente. Foi uma mudança radical que consistiu em um amor incondicional à pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esse amor, esse encontro com o Ressuscitado, é o que transformou radicalmente a sua vida e a partir do qual ele passou a servi-lo. O abandono de algum vício, por exemplo, é uma consequência posterior desse encontro. É o amor arrebatador de Jesus Cristo que caracteriza a sua transformação radical.

Quem, portanto, se tornou Paulo após esse encontro transformador?

Um homem profundamente tocado pelo amor de Cristo, um missionário incansável, para quem as dificuldades, os obstáculos, as perseguições, não foram empecilhos para que ele tornasse viva a Palavra de Cristo, para que ele fundasse inúmeras comunidades e levasse o Evangelho para fora das terras de Israel, e, por isso, foi chamado Apóstolo dos Gentios. Um homem totalmente entregue ao serviço de Deus. Alguém para o qual tudo era muito pequeno. Ele é quem diz: “Considerei tudo como perda”, em razão do amor de Cristo Nosso Senhor. Penso que isso ele também traz do seu zelo farisaico, pois a conversão recanaliza aquilo que temos de melhor. Aquilo que era o cuidado pela tradição de seus ancestrais fez com que ele tivesse o mesmo zelo por Nosso Senhor Jesus Cristo e, por amor e fidelidade a Ele, foi capaz de aceitar sofrer o martírio.

Sabemos que a Igreja é de Cristo, mas é possível imaginá-la sem o legado de São Paulo?

Eu respondo de maneira mais ampla. A Igreja não existe sem o testemunho dos apóstolos. Nós dizemos que a nossa fé é apostólica, pois depende do testemunho dos apóstolos. O que Paulo fez de extraordinário foi levar a pregação cristã àquilo que, na época, era chamado de confins do mundo ou o centro do mundo, Roma, a partir da qual a fé dos apóstolos  se irradiou para o mundo inteiro. A Igreja é, portanto, consequência da fé apostólica.

Como a conversão de São Paulo pode inspirar a experiência de conversão de cada pessoa?

É importante que mantenhamos a clareza de algo que considero fundamental e que, talvez, esqueçamo-nos ou nem nos damos conta: Deus é surpreendente. Para nós que cremos e partilhamos da mesma tradição religiosa, alimentamo-nos da mesma fonte das Escrituras, devemos manter o coração aberto para a surpresa de Deus. Paulo fez a experiência desse Deus surpreendente e que pode nos encontrar onde quer que estejamos, até na situação mais lastimável da vida. Por isso, como tem dito muito bem o Papa Francisco, por causa da misericórdia de Deus, que é surpreendente, não há para o ser humano, nem fim de linha, nem estrada sem saída. Apesar de tantas frustrações e decepções, se há algo do qual não devemos desistir é do ser humano, como Deus não desiste de nós. Paulo é fruto dessa aposta de Deus no ser humano. Não há ninguém a quem  a bondade, a misericórdia e a graça de Deus não possam alcançar. Se alcançou Paulo, se alcançou a mim e a você, pode alcançar a todos. Penso que esta seja a grande lição que podemos tirar da Festa da Conversão de São Paulo.

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