Padre João Bechara Ventura: ‘Ignorar as Escrituras – inclusive o Antigo Testamento – é ignorar a Cristo’

Paróquia Nossa Senhora Aparecida da Vila Arapuá

Ao cultivar a relação com as Sagradas Escrituras, os cristãos católicos, em geral, acabam tendo maior familiaridade com os textos do Novo Testamento, que narram a vida de Jesus Cristo e os ensinamentos dos apóstolos. No entanto, o contato com os livros do Antigo Testamento é igualmente importante para um profundo conhecimento da Palavra de Deus.

Em entrevista ao O SÃO PAULO, o Padre João Bechara Ventura, Sacerdote da Arquidiocese de São Paulo, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e concluindo o doutorado em Teologia Bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana, falou da importância e da beleza do Antigo Testamento.

O SÃO PAULO – Qual é a importância do Antigo Testamento para o Cristianismo?

Padre João Bechara Ventura – Naturalmente, o Novo Testamento (NT) e sobretudo os quatro Evangelhos possuem preeminência em relação ao Antigo Testamento (AT). Uma vez que narram o nascimento, a vida, milagres, discursos e, principalmente, a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, os Evangelhos nos transmitem a plenitude de toda a Revelação. A Bíblia, no entanto, deve ser sempre interpretada na unidade entre os dois testamentos, que são inseparáveis entre si. Esta unidade profunda foi expressa por uma célebre frase de Santo Agostinho: “O Novo Testamento se encontra escondido no Antigo, e o sentido do Antigo se torna manifesto no Novo”. Desde os primeiros séculos, a Igreja faz uma leitura cristológica do AT, isto é, enxerga a presença misteriosa e profética de Cristo nos diversos acontecimentos e personagens do tempo do AT. Temos a convicção de que Cristo é a Palavra de Deus que se fez carne (cf. Jo 1,14), o Mediador de toda a Revelação e, por essa razão, Ele de algum modo já falava no Antigo Testamento. Por isso, São Jerônimo, Patrono dos estudos bíblicos, diz que “ignorar as Escrituras” – inclusive o AT – “é ignorar a Cristo”.

Quais são os principais temas e mensagens proeminentes no Antigo Testamento e como eles influenciam a compreensão da fé católica?

Todo o AT é importante! Ele mostra as diversas etapas em que se deu a Revelação divina na história. Tais etapas anunciaram e prepararam a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, plenitude de toda a Revelação. Entre elas, poderíamos mencionar as diversas alianças estabelecidas por Deus com os homens desde Adão: a aliança cósmica com Noé, a promessa da bênção de todas as nações em Abraão e a aliança do Sinai estabelecida por meio de Moisés. Podemos mencionar ainda os profetas perseguidos, que se tornaram uma espécie de anúncio vivo de Cristo, o Justo perseguido por excelência. Entre eles, destacamos Jeremias que, além de sofrer por causa de seu ministério, anunciou uma Nova Aliança (Jr 31) que se cumpriria com a vinda do Senhor; e também Isaías, considerado uma espécie de “Quinto Evangelista” por ter anunciado o mistério de “uma virgem que conceberá e dará à luz um filho” (cf. Is 7,14) e a figura do Servo Sofredor (Is 52,13-53,12) que é uma prefiguração da Paixão de Cristo. Poderíamos ainda citar os Salmos, precioso livro de oração cujo valor é perene. Os Salmos constituem, no dizer de Santo Agostinho, a oração do Cristo Total, isto é, da Igreja. Por isso, eles são cantados e recitados diariamente pelo clero e pelos religiosos. As riquezas do AT são infinitas.

Algumas pessoas consideram que a imagem de Deus que muitas vezes é retratada nos textos do AT contrasta com aquela anunciada por Cristo. Como explicar isso?

A visão segundo a qual o AT mostraria um Deus rigoroso e castigador, enquanto o NT retrataria um Deus bondoso e misericordioso, é completamente falsa. Ela decorre, antes de tudo, da ignorância acerca das Escrituras. Segundo ambos os Testamentos, Deus é, ao mesmo tempo, justo e misericordioso. Embora contenha menções frequentes a castigos temporais que Deus, como um Pai, aplica para corrigir o seu povo, o AT afirma claramente que “o Senhor é misericórdia e piedade, Ele é amor, paciência e compaixão; Ele é bom para com todos, sua ternura abraça toda criatura” (Sl 144,8-9). O NT, por sua vez, anuncia o perdão e a graça, mas não exclui a realidade da justiça e da punição divinas. Jesus declara a existência do inferno com uma clareza e uma frequência superiores ao AT: “Afastai-vos de Mim, malditos! Ide para o fogo eterno preparado para o diabo e os seus anjos” (Mt 25,41).

A pretensa oposição entre AT e NT é uma versão requentada da heresia propagada por Marcião já no século II. Segundo esse autor de tendência gnóstica, o “deus do AT” seria um demiurgo malvado, artífice do mundo físico, enquanto o Pai de Jesus Cristo seria um Deus bom e espiritual. Trata-se se uma visão claramente errada, que reaparece ao longo da história da interpretação da Bíblia revestida de formas diversas. Lutero, por exemplo, foi influenciado em algum nível pelo marcionismo, ao estabelecer uma radical oposição entre a lei antiga e graça de Jesus Cristo, bem como entre a justificação pela fé e as boas obras que demonstram a fé. Interpretando o conteúdo do AT de modo excessivamente negativo, Lutero acabou estabelecendo uma falsa oposição entre AT e NT que condicionou a sua visão equivocada sobre os Sacramentos, sobre o sacerdócio e sobre toda a Teologia. No século passado, um outro tipo mitigado de marcionismo foi utilizado em meios protestantes alemães como justificativa teológica para o antissemitismo.

A questão da relação entre os dois Testamentos não é simples e deve ser examinada nos casos particulares, de acordo com os textos e temas concretos que se querem investigar. De maneira geral, tal relação pode ser de continuidade, de descontinuidade ou de progresso. Em certas passagens, Cristo cumpre em plenitude algo que já está presente no AT: “Não vim abolir a Lei, mas levá-la à plenitude” (Mt 5,17). Os Mandamentos, por exemplo, continuam plenamente válidos. Em outros casos, ele supera as realidades do AT. Assim, por exemplo, as normas rituais e cerimoniais, bem como os sacrifícios de animais prescritos no AT foram superados pela Nova Lei e pelo Sacrifício que Ele ofereceu de si mesmo sobre a Cruz e que é renovado na Missa.

Como evitar uma leitura ou interpretação fundamentalista dos textos veterotestamentários com seus diferentes gêneros literários?

Uma leitura correta do AT requer a obediência a três princípios fundamentais: cada passagem deve ser lida dentro da unidade de toda a Bíblia; dentro da Tradição da Igreja; e observando-se a “analogia da fé”, isto é, a coesão das verdades de fé entre si. Além disso, é necessário conhecer bem o NT. O Papa Bento XVI insistiu sobre o fato de que a Igreja deve sempre mais voltar à leitura cristológica do AT. Temos de reaprender a ler os fatos do AT como uma prefiguração ou um anúncio profético da salvação realizada pelo Senhor. O verdadeiro significado dos fatos, personagens e normas do AT vem à luz somente a partir da Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, chave de leitura de toda a Bíblia. Sem conhecer bem a Jesus Cristo, mesmo os temas fundamentais do AT seriam incompreensíveis: a arca de Noé, a oferta de Abraão, a saga de José do Egito, a figura de Moisés, o sacerdócio levítico, os sacrifícios, a conquista da terra prometida, o martírio dos sábios de Daniel e dos hebreus (cf. 2Mac), a Sabedoria divina personificada (cf. Pr 8, Sb 9, Eclo 24), o profeta Jonas, e tantos outros. Além do mais, é preciso que se levem em conta os gêneros literários de cada livro ou texto: histórico, profético, sapiencial, hinos, cânticos, parábolas, poemas etc.

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