Padre Lício: ‘Manifestações verbais e mudanças comportamentais são indicativos de um possível risco de suicídio’

Desde a adolescência, o Padre Lício de Araújo Vale, do clero da Diocese de São Miguel Paulista, lida com a temática do suicídio. Quando ele tinha 13 anos, seu pai se matou. “O tema do suicídio entrou precocemente em minha vida pessoal, tornando-me, de certa forma, um sobrevivente que teve que lidar com as complexas questões associadas a essa tragédia”, disse ao O SÃO PAULO o Sacerdote que é especializado, pela Universidade Federal de Santa Catarina, em Suicidologia, ciência que estuda o fenômeno do suicídio.

Padre Lício de Araújo Vale (fotos: Arquivo pessoal)

Neste mês, é realizada a campanha Setembro Amarelo, com vistas a uma reflexão global sobre a urgência do tema, já que a cada ano, em média, 700 mil pessoas cometem suicídio, 14 mil destas no Brasil.  

Nesta entrevista, Padre Lício indica os sinais típicos das pessoas que planejam se matar, comenta sobre políticas públicas a serem aprimoradas no Brasil a respeito do tema e ressalta que a Igreja têm uma indispensável contribuição pastoral a dar para a prevenção de suicídios. Leia a seguir a íntegra da entrevista.

O SÃO PAULO – Sob a perspectiva clínica, o que é o suicídio?

Padre Lício de Araújo Vale – A Organização Mundial de Saúde (OMS) define o suicídio como o ato deliberado, conscientemente, realizado por um indivíduo com a intenção de pôr fim à própria vida, utilizando para tal fim um método que a pessoa acredita ser fatal.

A pessoa que comete suicídio dá indicativos anteriores de que não está bem em sua saúde mental? Como é possível perceber estes sinais?

Padre Lício de Araújo Vale – Indivíduos que manifestam tendências suicidas emitem dois tipos de indicativos. Primeiramente, há os sinais verbais, e é um equívoco sustentar a crença de que quem expressa o desejo de tirar a própria vida não o faz. Na  realidade, a verbalização é frequentemente um dos primeiros sinais de alerta. A pessoa pode proferir declarações diretas, como “Eu quero morrer” ou “Eu vou me matar”, ou, então, declarações mais indiretas, tais como “Estou pensando em tomar uma decisão terrível se as coisas não melhorarem”. Portanto, é crucial prestar atenção a tais manifestações verbais.

O segundo conjunto de sinais perceptíveis pelos indivíduos mais próximos se relaciona a  mudanças comportamentais, as quais podem se manifestar de forma direta, incluindo variações no humor ou padrões de sono, ou de forma indireta, como a pessoa repentinamente se desfazendo de pertences importantes ou adquirindo comprimidos em excesso. Assim, é  fundamental que todos estejam atentos tanto às manifestações verbais quanto às mudanças comportamentais como indicativos de um possível risco de suicídio.

Ano a ano, o número de suicídios é crescente. Dados mais recentes indicam que a cada 100 casos, em 58 a pessoa tinha menos de 50 anos de idade. De algum modo, esta alta tem relação com a rotina das pessoas na atualidade?

De fato, o aumento nos casos de suicídio está intrinsecamente ligado ao modo de vida na sociedade contemporânea. Vivemos em uma era que muitos chamam de pós-modernidade, em que tudo parece acontecer em uma velocidade vertiginosa. O tempo parece correr mais rápido, e nossa rotina se tornou incrivelmente estressante. Isso, sem dúvida, representa um fator de risco significativo para pessoas com menos de 50 anos.

Entre os jovens, o suicídio é a 4a maior causa de mortes no mundo. Quais fatores ajudam a explicar este fato?

É notável que, entre os jovens, o suicídio figure como a quarta maior causa de óbitos, um dado que suscita uma reflexão profunda. Esse fenômeno é de natureza intrincada e multifatorial, exigindo uma análise cuidadosa dos elementos que contribuem para essa triste estatística. Em primeiro plano, destaca-se o alarmante aumento dos diagnósticos de depressão em faixas etárias cada vez mais precoces, um fenômeno observado pela Organização Mundial da Saúde. Esse diagnóstico precoce de transtornos depressivos configura-se como um dos principais fatores de risco.

Outros fatores críticos incluem situações que envolvem violência física e homofobia, especialmente quando um jovem se descobre como parte da comunidade LGBTQ+. O processo de aceitação pessoal, frequentemente conflituoso, aliado à falta de apoio familiar, pode gerar um profundo sentimento de não pertencimento.

A crescente distração dos pais com dispositivos digitais também se apresenta como uma preocupação. Muitas famílias contemporâneas parecem ter perdido a habilidade de ensinar seus filhos a lidar com a frustração, uma capacidade essencial para o desenvolvimento saudável dos jovens.

Adicionalmente, o bullying, seja nas escolas, seja nos lares ou em ambientes virtuais, incluindo o ciberbullying, exerce uma pressão significativa sobre a saúde mental dos adolescentes. O constante estímulo proveniente das redes sociais e a ausência de experiências que os ajudem a lidar com a frustração são fatores que devem ser levados em conta.

É imperativo abordar essas questões com empatia e compreensão, reconhecendo a necessidade premente de um ambiente que promova o apoio, a educação e o cuidado com a saúde mental dos jovens. Devemos capacitá-los a enfrentar os desafios da vida com resiliência, combatendo os principais fatores de risco que contribuem para o trágico aumento das taxas de suicídio nessa faixa etária.

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(Foto: Luciney Martins)

No Brasil, no somatório de casos entre 2010 e 2019, chega-se a uma média de 38 mortes por suicídio a cada dia. O que pode ser feito como política pública para a prevenção ao suicídio no País?

É imperativo que se advogue em prol da implementação das políticas públicas destinadas a efetivar o Plano Nacional de Prevenção ao Suicídio. Além disso, a sociedade civil, as  instituições religiosas e outras organizações devem engajar-se ativamente na promoção de Planos Municipais de Prevenção ao Suicídio; bem como na criação de Planos Estaduais de Prevenção ao Suicídio, elaborados com a participação da  sociedade civil e coordenados  entre diversas  secretarias, como Assistência Social, Saúde e Educação.

Também é crucial assegurar a disponibilidade de recursos para viabilizar a efetiva  implementação da política pública de saúde  mental, indo além das diretrizes  estabelecidas no âmbito nacional. Embora  exista uma  política  nacional  conduzida  pelo  Sistema  Único  de  Saúde  (SUS), por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), é necessário melhorá-la, por vezes, suprimindo a carência de psicólogos, mesmo quando psiquiatras estão presentes nos CAPS. Portanto, é imprescindível promover a criação de planos municipais e estaduais  de Prevenção ao Suicídio, complementando as iniciativas nacionais para enfrentar esse grave  problema de saúde pública.

Qual a postura que a comunidade católica pode ter em relação à temática do suicídio e à acolhida pastoral para aqueles que já tentaram pôr fim à própria vida, bem como aos familiares de quem cometeu suicídio?

Nós, católicos, devemos adotar uma atitude acolhedora e compassiva. É fundamental que se estabeleça uma Pastoral de Escuta Ativa, que pode ser desenvolvida a partir das pastorais de acolhida já existentes nas paróquias. Muitas já possuem pastorais de acolhida, responsáveis por distribuir folhetos na entrada das igrejas e receber os fiéis nas missas. Em algumas paróquias, os padres contam com o apoio de psicólogos.

Uma  ideia  viável  seria  oferecer  treinamento  para  os  integrantes  da  pastoral  de  acolhida em colaboração com psicólogos e psicólogas. Eles poderiam ser capacitados para realizar uma “Pastoral da  Escuta” com plantões de atendimento. Isso não deve recair unicamente sobre os ombros do pároco ou dos diáconos permanentes, mas deve ser uma pastoral dedicada à escuta ativa. Leigos voluntários seriam treinados de forma específica por profissionais da psicologia. Dessa forma, a  paróquia poderia oferecer plantões de atendimento para pessoas que estejam enfrentando angústia emocional e mental ou lutando contra o pensamento suicida. Assim, quando alguém em sofrimento chegasse à paróquia, encontraria um acolhimento compreensivo e atencioso por parte desses voluntários treinados.

Além  disso, essa “Pastoral da Escuta” poderia ter conhecimento das unidades básicas de saúde mais próximas, dos CAPS e outros serviços de apoio na comunidade, para encaminhar adequadamente as pessoas que procuram ajuda.

É  crucial  que  os  voluntários  dessa  pastoral  tenham informações sobre os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e unidades básicas de saúde, bem como a capacidade de encaminhar aqueles que necessitam para profissionais especializados. Se houver psicólogos ou psicólogas voluntários na paróquia, eles poderiam oferecer suporte em saúde mental. Dessa forma, a equipe da “Pastoral  da  Escuta” estaria não apenas ouvindo e acolhendo a dor do próximo, mas também encaminhando adequadamente para os recursos e profissionais apropriados. Assim, estaríamos promovendo uma pastoral que verdadeiramente contribui para a prevenção do suicídio.

O senhor é especializado em Suicidologia e tem livros publicados a respeito do tema. Por que optou em se debruçar nesta área de estudo?

Decidi me especializar em Suicidologia com base em uma experiência pessoal: o meu pai morreu por suicídio. Na época, eu tinha apenas 13 anos, e lembro-me vividamente dele saindo de casa, dando um beijo na minha mãe e, em seguida, tomando a trágica decisão de se lançar debaixo de um caminhão. O tema do suicídio entrou precocemente em minha vida pessoal, tornando-me, de certa forma, um sobrevivente que teve que lidar com as complexas questões associadas a essa tragédia.

Com o aumento alarmante dos casos de suicídio que tenho observado ao longo do tempo, tomei a decisão de aprofundar meu conhecimento nesta área. Optei por realizar um curso de especialização na Universidade Federal de Santa Catarina para adquirir uma formação  acadêmica sólida, que pudesse aprimorar o meu trabalho como  pesquisador e na pastoral  de  atendimento e formação, tanto na prevenção quanto no apoio às pessoas que enfrentam o risco de suicídio.

Assim, meu interesse pela Suicidologia nasceu a partir de uma experiência pessoal dolorosa, a perda de meu pai para o suicídio, e foi fortalecido pela necessidade de contribuir de maneira mais eficaz na prevenção e no auxílio àqueles que enfrentam esse desafio.

As opiniões expressas na seção “Com a Palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.
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Estela Aragão
Estela Aragão
9 meses atrás

Deveria ser mais divulgado essa questão do suicidio. Deus seja louvado pelo trabalho do padre