Popularidade de cigarro eletrônico entre jovens preocupa estudiosos

Docente da Unesp que colabora em pesquisa internacional sobre o tema alerta para problemas que podem acometer o fumante do futuro. Embora proibidos no Brasil, dispositivos são usados livremente e estão conquistando público na faixa entre 18 e 24 anos.

Em 2019, a sétima edição do relatório da Organização Mundial da Saúde sobre a Epidemia Mundial do Tabaco destacou Brasil e Turquia como os únicos países a alcançarem sucesso nas ações que implementaram para combater o tabagismo, uma doença crônica causada pela dependência do consumo de nicotina, substância presente no tabaco. Iniciativas como a criação de espaços livres da fumaça do cigarro, a restrição da publicidade e a oferta de tratamentos para largar o cigarro por meio do sistema público de saúde resultaram em uma queda no número de fumantes da ordem de 40%. Na comparação com o ano de 2006, o total de fumantes do país passou de 15,7% para 9,3% da população, segundo dados do Ministério da Saúde.

Porém, os dados positivos e os elogios vindos da principal agência global para a saúde tratam de uma história que já se desenrolou. Quando analisam o futuro, os especialistas no combate ao fumo alertam para o surgimento de novas formas do consumo da nicotina. Nelas, o cigarro convencional e a fumaça saem de cena e dão lugar a dispositivos eletrônicos de design atraente, discretos e com alto apelo entre os jovens. Não à toa, em 2021, na oitava edição do mesmo relatório, a OMS abordou pela primeira vez os dispositivos eletrônicos de fumar, ou DEFs, e apontaram falhas na abordagem e na regulamentação desses dispositivos pelos diversos países.

O termo DEFs é um nome técnico para designar uma gama de produtos comumente conhecidos como vaporizadores, ou simplesmente vapes. Embora existam algumas diferenças entre eles, seu funcionamento em geral envolve a liberação de um aerossol a partir do aquecimento de um líquido que contém nicotina, solventes, aromatizantes e outras substâncias químicas. Dessa forma, substitui-se a fumaça pelo que os usuários chamam de vapor. Daí o nome vape.

A primeira versão do cigarro eletrônico foi criada pelo farmacêutico chinês Hon Lik, 20 anos atrás, como uma estratégia para auxiliar usuários do cigarro convencional a gradualmente abandonarem o vício. Ao longo dos anos, a ideia de que o usuário se beneficiaria da ausência das substâncias tóxicas produzidas pela queima do tabaco e seria capaz de abandonar o fumo usando doses controladas de nicotina caiu por terra. Conforme os pesquisadores passaram a investigar os dispositivos e suas consequências para a saúde humana. Ao mesmo tempo, o consumo de cigarros eletrônicos cresceu, se tornando um mercado de bilhões de dólares que tem jovens e novos consumidores no centro das suas campanhas de publicidade e ações comerciais.

No Brasil, proibidos  mas populares

No Brasil, esses dispositivos têm sua comercialização, importação e propaganda proibidas pela Anvisa desde 2009. Posteriormente, o tema foi incluído para discussão na Agenda Regulatória 2021-2023, no intuito de avaliar os efeitos da medida e propor, caso necessário, outras mudanças. A agenda promoveu a realização de painéis de discussão, consultas dirigidas aos setores impactados pela regulação e audiências públicas com especialistas. Em julho de 2022, a diretoria do órgão aprovou um relatório técnico produzido a partir dessas discussões em que manteve a decisão anterior de proibição, sugerindo novas ações para coibição do comércio irregular desses produtos, tais como o aumento das ações de fiscalização e a realização de campanhas educativas.

Entre os argumentos que embasaram a decisão, a Agência afirma que a redução da emissão de substâncias por parte dos cigarros eletrônicos não significa redução de risco ou de dano à saúde, e que os DEFs causam dependência por conta da presença de nicotina nos líquidos que abastecem os dispositivos. Além disso, a agência acusa esses produtos de serem ineficientes para o tratamento do tabagismo, de atuarem como porta de entrada dos jovens ao vício e de proporcionarem aos usuários uma percepção incorreta dos riscos em que estão se inserindo, uma vez que não se enxergam como fumantes  e se sentem atraídos pelos aditivos adocicados.

“Com o uso do vape e dos demais sistemas eletrônicos de liberação de nicotina, a comunidade científica tem preferido usar o termo nicotismo ao invés do tabagismo”, explica Janete Dias Almeida, dentista e professora do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, campus de São José dos Campos, que há mais de duas décadas desenvolve pesquisas relacionadas ao tabagismo, cessação tabágica e câncer bucal. Em 2021, Almeida foi uma das autoras de um artigo publicado na revista científica Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology and Oral Radiology que apontou que o uso dos dispositivos eletrônicos pode causar danos à células da mucosa bucal semelhantes aos do cigarro convencional.

Uso de vapes causa alterações celulares

O estudo, que contou com apoio da Fapesp, analisou células da mucosa bucal de mais de 90 participantes entre fumantes de cigarro convencional, fumantes de cigarro eletrônico, ex-fumantes e não fumantes. Os exames detectaram alterações significativas nas células dos dois primeiros grupos. “Em nossos estudos na linha da carcinogênese, trabalhamos com indivíduos sem qualquer lesão na boca e procuramos entender em que momento a célula começa a se alterar”, diz Almeida. Nos próximos meses, a professora da Unesp deve ir à Espanha para participar de outra etapa das pesquisas, na qual ocorrerá a avaliação da saliva de usuários de cigarros eletrônicos. “Um ponto importante do nosso trabalho é mostrar que o tabagismo, ou nicotismo, é uma doença evitável. Se a pessoa não começa a usar a substância, não vai desenvolver dependência. Nossa abordagem em relação ao cigarro eletrônico é continuar nessa linha de dependência de nicotina, e estudar esses novos sistemas de liberação para entender o que nos espera no futuro.”

Os líquidos, ou juices, presentes nos cigarros eletrônicos são um ponto de especial atenção dos especialistas. Além de muitos deles apresentarem uma elevada concentração de nicotina, como mencionado no relatório da Anvisa, o líquido contém uma série de substâncias tóxicas cujo efeito sobre o organismo ainda está sendo objeto de estudo por parte dos pesquisadores. Em 2019, por exemplo, os Estados Unidos registraram dezenas de mortes e milhares de hospitalizações entre pessoas jovens decorrentes de uma doença batizada de EVALI (sigla em inglês para lesão pulmonar relacionada ao uso de cigarro eletrônico), que foi posteriormente associada a substâncias presentes nos líquidos dos vapes. O surto motivou o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA) a criar uma página especial sobre o tema em que disponibiliza evidências e orientações sobre a doença.

Outra preocupação diz respeito à quantidade de açúcar presente nos líquidos que abastecem os cigarros eletrônicos. Disponíveis em aromas que vão desde a imitação de frutas, como abacaxi ou melancia, até produtos industrializados e de apelo infantil, como Coca-Cola e chiclete Bubbaloo, esses líquidos podem causar cárie e doenças periodontais. É sabido na comunidade científica e entre os dentistas que o surgimento da cárie tem mais relação com a frequência com que se consome o açúcar que com a sua quantidade. Neste sentido, o uso repetidas vezes ao longo do dia do cigarro eletrônico contendo um líquido açucarado pode ser um fator determinante para o desenvolvimento da cárie.

O grupo de pesquisadores liderados pela professora Almeida apresentou recentemente, no Congresso Brasileiro de Estomatologia e Patologia Bucal, um trabalho que analisou o conteúdo dos líquidos antes e depois da queima, e também a saliva de um paciente ex-fumante usuário de vapes há quatro anos. O estudo apontou a alta quantidade de glicerol e outros açúcares nos juices, bem como a presença de formol após a queima, uma substância apontada pela IARC (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer) como pertencente ao grupo 1, o que indica ser comprovadamente cancerígena para seres humanos. Em relação à saliva, embora a sialometria (ou seja, a produção salivar) e o pH estivessem normais, a viscosidade estava muito alta, com o fio alcançando até 4 cm de comprimento, em virtude da alta quantidade de açúcar presente. Os dados foram submetidos para publicação e devem ser apresentados também em um evento na Espanha, no próximo mês.

“A questão dos aditivos nos preocupa porque eles adicionam um apelo enorme ao consumo, uma vez que permitem ao usuário escolher o sabor mais agradável para provar. E como o líquido é proibido no Brasil, não existe uma fiscalização quanto ao seu conteúdo. Ainda assim, esses produtos são bastante contrabandeados e muito fáceis de adquirir pelas redes sociais”, lamenta Almeida.

O fumante do futuro

Os riscos  à saúde bucal representados pelos vaporizadores identificados pelo grupo de pesquisa liderado pela docente, que incluem alterações nas células da mucosa bucal e o desenvolvimento de diabetes, cáries e outras doenças periodontais, em virtude da grande quantidade de açúcar, além do potencial da presença de nicotina para promover dependência, motivaram a publicação de uma carta  no ano passado na revista Human and Experimental Toxicology, que chama a atenção para a atuação dos dentistas diante do que os autores chamam de “fumante do futuro”.

O documento, que tem a docente do Departamento de Biociências e Diagnóstico Bucal do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, entre seus autores, argumenta que há uma mudança do perfil do fumante, que principalmente na faixa etária mais jovem vem deixando de lado o cigarro convencional para aderir aos vaporizadores e demais DEFs. Neste sentido, os dentistas devem estar cientes dessa tendência, por exemplo, considerando esses dispositivos durante a anamnese, em especial entre pacientes mais jovens ou que estão no processo de largar o cigarro. “Temos chamado a atenção dos nossos alunos de odontologia para que os pacientes sejam rotineiramente questionados acerca de seus hábitos de consumo de cigarro eletrônico na sua história médica odontológica”.

A percepção de que existe uma mudança nas preferências e no perfil dos fumantes no Brasil e no exterior vem se confirmando em pesquisas recentes. No caso brasileiro, os levantamentos têm apontado um crescimento no uso de vaporizadores e demais dispositivos eletrônicos, mesmo com a proibição da sua comercialização, e em especial entre consumidores de perfil jovem e escolarizado.

Um trabalho publicado no início deste ano pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) ouviu, por telefone, quase 10 mil pessoas de todas as regiões do Brasil em um inquérito que procurou estimar, além do consumo de cigarros convencionais, a experimentação e o uso também dos cigarros eletrônicos. O levantamento apontou uma forte tendência de uso entre jovens e jovens adultos: na faixa etária entre 18 e 24 anos, quase 20% afirmaram já ter usado dispositivos eletrônicos, enquanto na faixa entre 25 e 34 anos foram cerca de 10% dos entrevistados. Acima dos 35 anos, apenas 3% já fizeram uso de algum DEF, e somente 1,6% no grupo acima de 60 anos.

O artigo, publicado no início deste ano no Jornal Brasileiro de Pneumologia, aponta também que a “popularidade” dos vapes tende a acompanhar a escolaridade do usuário. Entre pessoas que possuem de 9 a 11 anos de escolarização, mais de 11% já experimentaram a modalidade. Entre aqueles com mais de 12 anos escolarização, o percentual dos que afirmaram usar o cigarro eletrônico foi de 8,4%. Já entre os entrevistados com até 8 anos de estudo, o percentual de usuários foi apenas de 5%.  Quando aplicado um recorte de gênero nas análises, constatou-se que mais de 10% dos homens já fumaram por meio destes novos dispositivos, enquanto entre as mulheres esse percentual ficava pouco abaixo de 5%.

A penetração dos vapes entre as novas gerações chamou a atenção das grandes empresas do “antigo” cigarro. Não à toa, nos últimos anos, muitas delas vêm se movimentando para a aquisição de empresas e marcas de sucesso dos DEFs. O maior deles talvez tenha sido a aquisição de parte da start-up Jull Labs, uma das mais conhecidas fabricantes de cigarros eletrônicos dos EUA, pela gigante Philip Morris, por mais de US$ 12 bilhões. “O que os especialistas têm discutido é que os DEFs são uma nova roupagem dessa indústria voltada para angariar jovens e novos fumantes”, afirma Almeida. Nesta estratégia, as redes sociais exercem um papel fundamental como a principal plataforma para exposição de publicidade e comercialização dos produtos.

 “O fato de que os cigarros eletrônicos estão sendo consumidos por pessoas mais jovens, e não necessariamente por indivíduos com idade suficiente para buscarem cessar o hábito de fumar, nos preocupa bastante, e sinaliza um futuro que pode ser assustador”, alerta a docente. “E tudo isso ocorre embora o seu uso seja proibido pela Anvisa”, diz.

Fonte: Jornal da UNESP/Marcos do Amaral Jorge

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