Projeto que regulamenta homeschooling avança na Câmara

(Foto: Andrea Piacquadio/Pexels)

O recente caso da adolescente Elisa Flemer, 17, que, apesar de ter sido aprovada no vestibular para cursar Engenharia na USP, não foi aceita pela instituição de ensino por não ter concluído o Ensino Médio na escola, mas em casa, ganhou repercussão nacional no fim de abril e colocou novamente em destaque e em debate o homeschooling.

Também conhecida como educação domiciliar, nessa modalidade de ensino os pais assumem o processo global de educação dos filhos, ou seja, além da transmissão de valores, hábitos, costumes e crenças, também se responsabilizam pela formação acadêmica que, geralmente, é dever da escola.

No Brasil, no entanto, não há regulamentação para essa prática, embora se estime que há cerca de 11 mil famílias adeptas de tal modalidade, segundo informações da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned).

Esta semana, foi apresentado à Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), o texto substitutivo de um dos projetos de regulamentação do homeschooling, cuja relatora é a deputada Luísa Canziani (PTB-PR). O texto poderá ser votado em plenário até junho.

Para chegar à versão final do projeto, a relatora organizou oito debates, entre abril e maio, com especialistas em Educação, parlamentares ligados ao assunto, representantes da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), fundações de apoio à infância, associações ligadas ao homeschooling e pesquisadores da área.

Processo antigo

O debate sobre o tema existe há quase três décadas no Brasil. Nos últimos 27 anos, projetos de lei foram apresentados para a legalização do homeschooling, que já é reconhecido em mais de 60 países. Na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e na Câmara Municipal de São Paulo, também há projetos de lei para regulamentar a modalidade.

Em 2018, houve um passo significativo no movimento de educação domiciliar, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a prática não é inconstitucional, mas precisa de uma normatização para ser permitida.

Projeto

O texto apresentado ao plenário prevê a exigência de Ensino Superior de pelo menos um dos pais; a criança ou adolescente deverá ser matriculado em escola, que será uma espécie de instituição par ceira das famílias. Os alunos não irão frequentar essa escola, mas farão provas anuais nessa instituição de ensino, para a qual os pais precisarão apresentar relatórios bimestrais sobre as atividades pedagógicas dos filhos.

Uma vez vinculados ao sistema educacional, os estudantes da educação domiciliar deverão seguir a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), assim como as escolas formais.

Segundo o substitutivo apresentado pela deputada Luísa Canziani, os pais devem garantir a convivência familiar e social das crianças e adolescentes. O projeto também prevê que pais que tenham sido condenados ou estejam cumprido pena não poderão adotar a prática do ensino domiciliar. Pessoas que estejam respondendo por casos de violência doméstica, sexual ou crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também não poderão ensinar os filhos em casa.

O jornalista Jônatas Dias Lima, presidente da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF), acompanha de perto esse debate. Em entrevista ao O SÃO PAULO, ele destacou que alguns pontos do projeto ajudam a esclarecer dúvidas quanto à viabilidade do homeschooling no Brasil.

“Há, ainda, a previsão de acompanhamento dos pais pelo Conselho Tutelar, além de prever igualdade de direitos entre alunos do sistema escolar e domiciliar. Isso daria garantias para situações como a da jovem Elisa Flemer”, destacou Lima.

Decisão do STF

O presidente da Fameduc-DF enfati zou, ainda, que o projeto em tramitação corresponde ao que foi decidido pelo STF em 2018. “A decisão do Supremo não apenas diz que o homeschooling não é inconstitucional como dá a ‘receita’ de como deve ser a lei”, disse.

No julgamento, a maioria do STF entendeu que é necessária a frequência da criança à escola formal, para ser garantida a convivência com os estudantes de origens, valores e crenças diferentes, por exemplo. Os ministros argumentaram, ainda, que, conforme a Constituição federal, o dever de educar implica cooperação entre Estado e família, sem exclusividade dos pais.

Para a maioria do Supremo – Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Marco Aurélio e Cármen Lúcia – a prática poderá se tornar válida se aprovada uma lei que permita avaliar não só o aprendizado, mas, também, a socialização do estudante educado em casa.

(Foto: Natasha Hall/unsplash)

Família e Estado

Lima assinalou, ainda, que a suprema corte deixa claro que a única possibilidade de haver educação domiciliar no Brasil é a que prevê a avaliação periódica, acompanhamento e fiscalização do Estado. Nesse sentido, ele sublinhou a distinção entre homeschooling e unschooling, que poderia ser traduzida por “desescolarização”, isto é, um modelo de educação que não possua nenhuma espécie de vínculo com a educação formal, tampouco com o Estado. “Esse seria um formato inconstitucional, porque a nossa Constituição prevê solidariedade entre Estado e família”, reforçou.

“O homeschooling discutido no Brasil nunca foi esse desvinculado totalmente do Estado. A criança não terá frequência à escola, mas estará matriculada em uma instituição de ensino, fará seus estudos em casa e a família poderá, se desejar, solicitar orientação pedagógica e terá o dever de cumprir com a sua parte na educação dos filhos”, completou o jornalista, recordando que esse é o formato mais usado nas legislações de outros países, como nos Estados Unidos, Portugal, França e Rússia.

Igualdade de direitos

Um dos incisos do texto do projeto apresentado à Câmara destaca: “Garantia de isonomia de direitos e vedação de qualquer espécie de discriminação entre crianças e adolescentes que recebam educação escolar e aquelas educadas domiciliariamente, inclusive no que se refere à participação em concursos, competições, eventos pedagógicos, esportivos e culturais (…)”.

Se aprovada a lei, serão necessários outros passos, como a criação de diretrizes específicas para a viabilização da proposta. “A lei cria o direito e estabelece diretrizes mínimas. Em seguida, porém, haverá a necessidade de outras normatizações por parte do Ministério da Educação e das secretarias estaduais de Educação.”

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