Quarentena: ocasião para associar a vida ao mistério da cruz de Cristo

(Foto: Luciney Martins/O SÃO PAULO)

“Fique em casa”. Essa expressão começou a fazer parte do cotidiano da população em meados de março de 2020, quando começaram as ser adotadas as medidas de isolamento social para conter o avanço da pandemia de COVID-19.

A princípio, imaginava-se que a popular “quarentena” duraria algumas semanas ou, no máximo, poucos meses. Já se passou um ano, porém, o coronavírus não foi contido e, novamente, as restrições voltaram a se intensificar.

O longo confinamento tem causado uma série de transtornos e dificuldades de ordem psicológica, afetiva, econômica e também espiritual. A rotina adaptada para unir trabalho, estudo e convívio familiar no mesmo ambiente tem desestabilizado várias pessoas que, em muitos casos, já não conseguem suportar nem mais um dia “presos” em casa. Em outras situações, a impossibilidade de trabalhar gera angústia, ansiedade e a perda de esperança. Além disso, há aquelas pessoas cujo isolamento social é sinônimo de solidão ou abandono.

Como encarar esses tempos difíceis sob a perspectiva cristã? A resposta está na cruz de Cristo. No entanto, isso não pode ser entendido apenas como uma frase de efeito ou uma tentativa de romantizar uma situação tão séria. Pelo contrário, é uma ocasião de enxergar as situações negativas da vida, sejam elas extraordinárias, sejam cotidianas, com um olhar sobrenatural.

Sentido cristão do sofrimento

Na carta apostólica Salvifici doloris, São João Paulo II ressalta que, ao experimentar o sofrimento, é inevitável que o ser humano questione o sentido da dor, perguntando-se: “Por quê?” e “Para quê?”.

“Ambas as perguntas são difíceis, quando o homem as faz ao homem […]. Com efeito, o homem não expõe esta questão ao mundo, ainda que, muitas vezes, o sofrimento lhe provenha do mundo; mas a expõe a Deus, como criador e Senhor do mundo”, destacou o Santo Padre.

Entretanto, na experiência cristã, Deus não é alguém distante, mas, ao contrário, encarnou-se e assumiu a humanidade, com seus limites e fragilidades. O Papa Wojtyla sublinhou que Cristo acolhe com seu próprio sofrimento essas questões humanas e quer respondê-las “da cruz, do meio do seu próprio sofrimento”. O Pontífice polonês acrescentou, ainda, que, à medida que o homem toma a sua cruz, unindo-se espiritualmente à cruz de Cristo, manifesta-se mais o sentido salvífico do sofrimento.

Em Cristo

O apóstolo São Paulo é quem melhor ilustra essa busca da identificação com Cristo também por meio do sofrimento, quando afirma: “Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo, pelo seu corpo, que é a Igreja” (Cl 1,24).

Não se alcança esse estágio de identificação com Jesus Cristo, porém, de forma imediata. Trata-se de um processo, uma luta gradual que só é possível por meio do cultivo de uma vida interior e do constante exercício das virtudes. Por isso, não apenas as ocasiões de grande dor e sofrimento são oportunidade para esse encontro com Cristo, mas, antes disso, as pequenas contrariedades e privações, quando enfrentadas sob uma perspectiva sobrenatural, são oportunidades para o amadurecimento da fé e da confiança em Deus.

No cotidiano

Em uma série de meditações publicadas no formato de podcast, o Padre Francisco Faus, sacerdote catalão com mais de 60 anos de experiência como pregador de retiros e autor de diversos livros de espiritualidade, convidou as pessoas a enxergarem nessa situação excepcional uma oportunidade para o crescimento humano e espiritual.

Para isso, o Sacerdote recorda as palavras de São Paulo, quando escreveu aos romanos: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a  nudez, o perigo, a espada? Mas, em todas essas coisas, somos mais que vencedores por aquele que nos amou” (Rm 8,35.37).

“Nós, muitas vezes, nos queixamos atormentados, nestes dias da pandemia, porque não temos isto ou aquilo, porque não podemos fazer algo, porque agora não dá para praticar aquele esporte, fazer aquele passeio ou aquela viagem… E não percebemos que mesmo que conquistássemos o mundo inteiro, se não tivermos amor, nada disso tem proveito”, reforçou o Pregador.

Padre Faus ainda recomendou que, quando o sofrimento, o tédio, a solidão e tantas outras contrariedades atingem a pessoa, “a voz cálida do Cristo crucificado nos convida a sermos generosos e a subir um degrau na escada do amor”.

Culto espiritual

Essa oferta dos sofrimentos, incômodos, desconfortos e privações é uma expressão do que o apóstolo dos gentios chama de “culto espiritual”, quando exorta os romanos a se oferecerem “como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12,1).

De forma prática, esse ato de louvor se dá por meio das pequenas manifestações de renúncia e de oferta a Deus e ao próximo. O cultivo da paciência com as crianças que, confinadas em casa, se agitam e atrapalham quem está tentando trabalhar em regime de home office; a busca da compreensão dos cônjuges um com o outro diante da irritação, do estresse do trabalho e dos afazeres domésticos, a impossibilidade de visitar um parente para não o expor ao risco do contágio. Todas essas são ocasiões de encontro com Deus, quando ofertadas como verdadeiros “sacrifícios de louvor” em favor de si, da família, da Igreja, das pessoas que sofrem, das vítimas da pandemia. 

Em resumo, essas não são apenas dicas para saber lidar com os limites impostos pela pandemia. Mais que isso, são meios eficazes de santificação, como recorda o Papa Francisco na exortação apostólica Gaudete et exsultate, sobre o chamado à santidade no mundo atual:

“Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante. Esta é, muitas vezes, a santidade ‘ao pé da porta’, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus.”

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