Tráfico e exploração de pessoas são realidades facilmente perceptíveis em Roraima

Em visita ao estado no Norte do País, Comissão da CNBB ouviu relatos de recorrentes violações de direitos humanos

Fotos: Cláudia Pereira/Cepast

Na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, as violações aos direitos humanos são latentes, sobretudo com os migrantes e os povos indígenas

“Crianças foram raptadas, tiradas à força de suas mães e utilizadas para exploração. Tivemos casos de crianças usadas como locação”.

Relatos como estes causaram impactos no primeiro dia da visita à Roraima da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CEETH-CNBB), de 17 a 23 junho, realizada em parceria com organizações religiosas e civis. A comitiva esteve em diversos locais e escutou relatos sobre o crime do Tráfico de Pessoas em suas diferentes modalidades.

A visita ocorreu durante a Semana do Migrante, momento em que a Igreja Católica dedica-se à reflexão sobre a situação dos migrantes. Em Roraima, o olhar atento revelou um cenário que gerou na comitiva um misto de indignação e esperança, dois sentimentos expressos inúmeras vezes.

O Tráfico Humano é a terceira atividade ilegal mais rentável do mundo, segundo relatório publicado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Estima que mais 50 milhões de pessoas no mundo são vítimas da escravidão contemporânea.

“As pessoas naturalizam muitas práticas, realidades que geram endividamento, cárcere, exploração e ações que privam a liberdade de alguém. Isso implica no que conceituamos como tráfico de pessoas”, afirma a professora e socióloga Márcia Maria de Oliveira, da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

A doutora em Sociedade e Fronteiras acompanha frentes de pesquisa que estudam a economia garimpeira, um dos setores econômicos do estado de Roraima. A atividade do garimpo, sobretudo o ilegal, muitas das vezes resulta em violência contra os indígenas no estado que tem a 5ª maior população de povos originários do Brasil: são 13 etnias em 32 territórios.

Na praça do centro cívico da capital, Boa Vista, encontra-se um monumento que ostenta um garimpeiro, representando um setor econômico que causa danos ambientais e viola os direitos humanos.

O estado tem como nome de origem o significado indígena de “Morro Verde”, que faz todo sentido ao se contemplar a paisagem entre Boa Vista e Pacaraima. A vegetação aberta denominada de lavrado, com montanhas, muita água e um verde intenso nesta época do ano.

O Rio Branco corta a cidade formando um balé em alta velocidade com seus afluentes, nos quais se vê beleza e perigo em todos os sentidos. A cidade com suas ruas, calçadas e praças largas bem arborizadas transmite uma calma absoluta, mas camufla uma realidade que é visível aos olhares e ouvidos atentos.

‘As meninas brasileiras têm um valor no mercado do sexo na Venezuela, Guiana e para a exploração sexual no garimpo’

FLUXO MIGRATÓRIO E O TRÁFICO DE PESSOAS NO ESTADO

Dias antes da visita a Boa Vista da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB circulava, nos meios de comunicação locais e redes de mensagens, a notícia de que três meninas de 16 anos tinham sido aliciadas e levadas para a Guiana.

“O tráfico de pessoas ainda acontece aqui no estado de Roraima. As meninas brasileiras têm um valor no mercado do sexo na Venezuela, Guiana e para a exploração sexual no garimpo”, afirmou Socorro Santos, diretora do Programa de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Roraima.

Ela apontou falhas nas funções dos órgãos de investigação. No caso das três meninas desaparecidas, a investigação estava com a Polícia Civil, uma vez que a denúncia cabe à investigação da Polícia Federal.

“Esse momento é oportuno para nos ajudar a lutar pela efetivação das políticas que nos faltam nesta pauta aqui no estado. Aqui, meninas e meninos, independentemente de nacionalidades ou raça, estão sendo traficados em todas as modalidades. E digo mais: existe extração de órgãos em nosso estado”, assegurou Socorro, chamando a atenção para o tráfico de pessoas interno. Ela disse ter recebido recentemente relatos de meninas resgatadas que denunciaram casos ocorridos em Roraima.

Os migrantes que atravessam ao Brasil em busca de uma vida melhor estão muito suscetíveis ao aliciamento das redes de tráfico de pessoas, seja para o trabalho análogo à escravidão, seja para exploração sexual ou outras violações. Um exemplo é o de crianças aliciadas para ser cuidadoras de carros nas proximidades de centros gastronômicos da cidade de Boa Vista ou para a mendicância.

A TENTATIVA DE REGULARIZAÇÃO

Um dos locais visitados pela comitiva foi o Posto de Interiorização e Triagem (PITRIG), localizado próximo à rodoviária internacional de Boa Vista. O posto atende em maioria migrantes venezuelanos que buscam refúgio, documentos e regularização para a permanência no Brasil.

“Aqui é um lugar que recebemos os migrantes para regularizar documentos, permanência e abrigá-los para que a cidade possa ficar livre”, dizia o soldado ao receber a comitiva, logo na entrada. Não é permitido filmar ou fotografar no local sem antes uma solicitação prévia. “Caso você queira fazer fotos, teremos que verificar antes de você sair”, alertou.

O espaço é coberto por várias tendas distribuídas com funções específicas para os trabalhos realizados em ação conjunta que envolve a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a Organização Internacional de Migração (OIM), o Exército Brasileiro e outras organizações que integram o atendimento.

O local possui setores de serviços, porém poucas pessoas para atender. No dia da visita, a temperatura média de Boa Vista era de aproximadamente 30º C, mas sob as tendas a sensação térmica era insuportável e o ar-condicionado estava disponível somente nas salas de atendimento.

Enquanto caminhávamos nos espaços, os olhares curiosos das crianças e de alguns adultos pareciam implorar por algo. Uma estrutura improvisada que se tornou permanente, assim como os oito abrigos para migrantes na cidade.

A estrutura organizada dos abrigos é semelhante a um camping, com barracas perfiladas. Em média, cada abrigo acolhe entre 2 mil e 3 mil pessoas. As casinhas de plásticos sob o sol são denominadas de Unidade de Habitação para Refugiados (RHU). É difícil imaginar como viver por um longo período nestas condições. 

O que é desnecessário imaginar é como se dá o tráfico de pessoas, pois os sinais são evidentes. Os migrantes, suscetíveis pelas condições precárias ao chegarem na fronteira, são alvos dos aliciadores para o trabalho escravo contemporâneo, exploração sexual e outras modalidades.

Em uma roda de conversa e brincadeiras para crianças, a agente de pastoral distraía um pequeno grupo de crianças com idades entre 7 e 12 anos, enquanto os pais acompanhavam orientações e informações sobre seus direitos como migrantes. Alguns deles falaram que trabalhavam durante a semana. Questionados se mais gostavam de brincar ou trabalhar, a maioria afirmou que era melhor trabalhar.

‘O Estado não tem assumido ainda o seu papel no enfrentamento ao tráfico de pessoas’

MÚLTIPLAS EXPLORAÇÕES NOS GARIMPOS

Durante os cinco dias de missão, os momentos de escuta tiraram da invisibilidade o tráfico de pessoas existe em Roraima.

Na fronteira de Bonfim com a Guiana, a 125km de Boa Vista, predominam os indígenas Wapichana, afetados pelo garimpo que contamina o território pelo uso indevido de mercúrio.

“Os garimpos continuam aumentando com mais força, dragas e outros meios. Já não se pode mais chamar apenas de garimpo. É um ‘narcogarimpo’ que atua com tráfico de armas, drogas e de pessoas”, enfatizou Dom Evaristo Spengler, Bispo de Roraima.

“O Estado não tem assumido ainda o seu papel no enfrentamento ao tráfico de pessoas”, denunciou o Bispo. Ele acredita que a Missão é capaz de aproximar os órgãos e a sociedade civil para propor políticas públicas, bem como aproximar as ações nas fronteiras para trabalhar em conjunto no enfrentamento ao tráfico de pessoas e na defesa da vida.

“Precisamos fortalecer esse trabalho. A situação aqui em Roraima é muito mais complexa. Temos duas fronteiras: com a Guiana, onde há um corredor de migração em que chegam pessoas de modo especial da América central; e temos a fronteira com a Venezuela, com um fluxo de migração muito grande, já desde o ano 2017. Isso coloca as pessoas em situações frágeis”, reforçou Dom Evaristo.

Muitos também são os relatos de ocorrências de tráfico de pessoas para o garimpo, comércio chinês e exploração sexual.

“Aqui em Bonfim, o tráfico de pessoas é uma realidade. Meninas são traficadas para exploração sexual no garimpo, e homens e mulheres, principalmente migrantes, são aliciados para o trabalho escravo. Muitas vezes durante o atendimento que realizava como servidora pública, presenciei meninas muito jovens e bonitas indo para o garimpo. Diziam que iam trabalhar como cozinheiras. Percebi que sempre havia pessoas que as levavam. Temos o caso da Raissa que ficou conhecida nacionalmente. Ela foi vítima de tráfico de pessoas, infelizmente não voltou viva. Foi brutalmente assassinada grávida aos 7 meses de gestação e todos os indícios levavam a crer que ela foi mais uma vítima. O tráfico de pessoas existe”, disse uma testemunha durante uma roda de conversa.

O tráfico de pessoas não se restringe à região de fronteira com a Guiana Inglesa. Os rios e afluentes da região, muito próximos ao Suriname, são outros espaços intenso do garimpo.

A professora Márcia Maria de Oliveira conta que historicamente essa rota sempre foi reconhecida como lugar de exploração sexual, mas o dinamismo do tráfico muda com frequência o fluxo: “No geral, as mulheres vão com a promessa de serem cozinheiras, mas sabemos que cozinheira é um código do garimpo que significa que a pessoa está sendo explorada sexualmente. É uma forma de aliviar essa situação para a família encarar, sem problematizar e denunciar”, explica.

COM FOME E SOB FORTE SOL

A realidade das pessoas em condições de vulnerabilidade, nos espaços de acolhidas superlotados, precariedades no atendimento e em alguns casos despreparo para atender situações delicadas e de conflitos, é um dos olhares nesse itinerário da Missão.

Em Boa Vista, na proximidade do terminal rodoviário, há uma espécie de território sem lei. Os membros da comitiva ouviram relatos sobre assassinatos dentro dos abrigos, sequestro de crianças, abuso sexual e atividades que envolvem o tráfico de drogas.

Passava de 12h quando a comitiva chegou ao acampamento que distribui refeições pelo projeto da Cozinha do Sumauma. A cena impacta. Centenas de pessoas perfiladas entre grades de proteção, na tentativa de organizar a entrega dos alimentos. As filas se estendem para além da tenda, sob o sol, e terminam dentro de um galpão com o tamanho proporcional de uma quadra de futebol, no qual as pessoas se sentam para fazer suas refeições.

Todos os dias são distribuídas mais de 1,5 mil refeições. O espaço é mantido pelo Exército Brasileiro, organizações da Igreja e serviços da agência humanitária internacional. A cena é semelhante à entrada de migrantes na fronteira de Pacaraima. Todos os dias, centenas de mulheres, homens e crianças se aglomeram sob sol e chuva em busca de um novo viver. “Podemos afirmar que a cidade de Boa Vista é a cidade com maior porcentual de população de rua do Brasil”, frisou uma agente de pastoral.

“Existe uma omissão do poder público no enfrentamento desta causa. Como comissão, denunciamos em coletiva de imprensa essa ausência do poder público. Como Igreja fortalecida e envolvida com as causas dos mais pobres, a Diocese de Roraima continua firme e forte neste enfrentamento e defendendo a vida”, disse a Irmã Eurides Alves de Oliveira, assessora da CEETH.

IGREJA: MÃOS ESTENDIDAS E VOZ QUE DENUNCIA

Na divisa de Pacaraima, a cerca de 215 km de Boa Vista, durante a visita aos abrigos e organismos da Igreja que apoiam os migrantes com o suporte de órgãos públicos e de organização humanitária internacional, as vozes que ressoam são mais em espanhol do que em português. Os rostos também trazem características indígenas. A presença dos indígenas venezuelanos da etnia Warao é marcante na região que sobrevive da venda de artesanatos.

Em uma ação de conscientização em espaço público, um homem venezuelano falou que foi vítima de trabalho escravo. “Trabalhei em fazenda de nome Nossa Senhora Aparecida por quase três meses, sem carteira assinada. E ao cobrar meus direitos e salários como migrante, o proprietário avisou que não teria direito algum. Fui ameaçado e até o momento não recebi pelos meses trabalhados”.

‘É necessário que haja um compromisso com essa causa’

A Igreja Católica em Roraima não está indiferente a estas realidades. Por meio de suas pastorais, tem atuado em parcerias com a universidade federal, organismos internacionais humanitários e a sociedade civil. Em Pacaraima, ao lado do abrigo Janokoida, que acolhe os povos indígenas que chegam da Venezuela, fugindo de conflitos e fome, fica a Casa São José. Crianças são maioria nesses espaços de acolhida. Ao entrar na casa, havia uma fila de mulheres grávidas ou com crianças no colo à espera do atendimento acolhedor que as Irmãs de São José de Chambéry realizam com apoio da igreja e voluntários.

Criada em 2020, a casa acolhe mulheres vítimas de diversas violações e em especial às vítimas de exploração do tráfico de pessoas. “Aqui se chega a atender centenas de pessoas entre mulheres e crianças, embora o fluxo da migração esteja menor atualmente. A passagem destas mulheres na casa é de no máximo seis meses”, disse um voluntário ao apresentar os cômodos da casa que possui espaços para crianças, alojamento para dormir e ambiente para oficina profissionalizante de manicure, corte de cabelo e maquiagem.

Tudo que as irmãs organizaram para a casa até o momento é resultado de muita luta, sofrimentos inclusive perseguições.

Do outro lado da fronteira, em Santa Elena, na Venezuela, a Igreja, desde 2022, tem se aproximado desta pauta. De acordo com a Cáritas do Vicariato do Caroní, aproximadamente 70% dos migrantes venezuelanos no Brasil são mulheres e a organização tem acompanhado de perto as questões relacionadas ao fluxo migratório por meio de atividades de intercâmbio entre Venezuela e Brasil.

“Como Igreja, fortalecemos o trabalho da Diocese de Roraima no enfrentamento ao tráfico de pessoas, porém ressaltamos a importância do papel do poder público federal, estadual e municipal. É necessário que haja um compromisso com essa causa e que essas instâncias atuem de forma integrada para combater essa chaga humana”, enfatizou Dom Adilson Busin, Presidente da CEETH e Bispo de Tubarão (SC).

‘A cidade de Boa Vista é a cidade com maior porcentual de população de rua do Brasil’

As atividades da Missão foram encerradas com um Colóquio sobre Tráfico Humano, na Universidade Federal de Roraima. A participação superou a expectativa da organização: foram mais de 150 pessoas, quase não havia espaço para acomodá-las. Cerca de 80% dos presentes nesta terceira edição do evento eram migrantes e refugiados que expuseram questionamentos e denúncias sobre o tráfico de pessoas em Roraima.

“O colóquio foi um ponto muito forte, um espaço com protagonismo popular. Esse momento revelou que é inevitável a necessidade de se organizar em rede. Observou-se, inclusive, que as respostas desconexas em relação às perguntas e cobranças feitas pela população foram marcantes. Isso confirma, pelas escutas que tivemos, que não existe integração de alguns órgãos do poder público. O Estado faz seu papel, porém falta garantir as necessidades humanas”, ressaltou Alessandra Miranda, secretária executiva da Comissão Especial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da CNBB.

Apesar do sentimento de indignação em todo percurso desta Missão, a esperança é soberana por meio da presença articulada da Igreja Católica em Roraima, sobretudo pela alegria dos migrantes e brasileiros, uma pura demonstração de resistência.

Além da CEETH, outras instituições/organizações religiosas e civis se integraram a Missão, entre elas:

Comissão Pastoral da Terra (CPT);

Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (ASBRAD);

Rede CLAMOR Brasil;

REPAM Brasil;

Serviço Pastoral do Migrante (SPM);

Sefras – Ação Social Franciscana;

Cáritas;

Universidade Federal de Roraima (UFRR);

Rede Um Grito Pela Vida, da Conferência dos Religiosos/as do Brasil (CRB). 

A Missão contou com a articulação de Dom Evaristo Spengler, Bispo de Roraima e membro da Comissão; Dom Plínio José Luiz da Silva, Bispo de Picos (PI); e Dom Adilson Pedro Busin, Bispo de Tubarão (SC) e atual presidente da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB.

*Cláudia Pereira é jornalista da Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CEPAST – CNBB)

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