‘Trata-se de um novo Código Civil, não de uma mera atualização’

Em entrevista ao O SÃO PAULO, juristas católicos alertam para os pontos da proposta de revisão e atualização do Código Civil que representam riscos às famílias e à sociedade como um todo

Arte: Agência Senado

A edição desta semana do jornal O SÃO PAULO apresenta a reportagemAtualização do Código Civil poderá mudar o conceito de família, alertam juristas católicos”, na qual três juristas católicos falam sobre os pontos preocupantes do anteprojeto de lei que visa à revisão e atualização do Código Civil brasileiro (Lei 10.406/2002).

A minuta da mudança desta lei começou a ser debatida no plenário do Senado, na quarta-feira, 17. O texto foi elaborado por uma comissão de juristas, criada em agosto de 2023, pelo senador Rodrigo Pacheco, presidente desta casa legislativa. Os trabalhos foram concluídos em 5 de abril, ou seja, em apenas oito meses, e resultaram em um anteprojeto que prevê alterações em mais de mil artigos da redação atual do Código.

Em nota publicada no início de março, a União Brasileira de Juristas Católicos (Ubrajuc) e outras uniões e associações de juristas católicos criticaram o fato de a comissão elaborar um texto final em tempo tão rápido, o que impediu um amplo debate, e que diante das propostas de mudanças em diversas matérias do Código não de se pode falar em atualização, mas, sim, de “refundação da própria visão de sociedade, de pessoa e de família que normatiza a nossa nação”.

Publicamos a seguir a íntegra das respostas dos três juristas ouvidos para esta reportagem:

Miguel da Costa Carvalho Vidigal, advogado, presidente da União Brasileira de Juristas Católicos, doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP)

Venceslau Tavares Costa Filho, advogado, Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e da UniFafire.

Maurício Pereira Colonna Romano, advogado, especialista em regulação econômica pela FIPE, Diretor da União Juristas Católicos de São Paulo (Ujuscasp)

O SÃO PAULO – No começo de março, a UBRAJUC divulgou uma nota, também assinada por outras uniões de juristas católicos, no qual externa preocupações com o anteprojeto de alteração do Código Civil brasileiro. Agora que a comissão de juristas constituída no Senado já apresentou a minuta do projeto de alteração, quais os pontos que mais preocupam neste texto?

Miguel Vidigal – Em primeiro lugar, preocupa a pressa para a elaboração do projeto. Ao instalar a comissão, o senador Rodrigo Pacheco determinou que o trabalho fosse concluído no prazo de 180 dias, feito inédito na história das codificações civis. Ante os possíveis impactos econômicos e sociais, pensamos que a concessão de mais tempo para a reflexão e os debates seria uma medida salutar e necessária.

Em linhas gerais, preocupam-nos os pontos relacionados ao direito de família, liberdade de expressão, bem como a proteção ao direito de propriedade e ao direito à vida. Há tantas mudanças no projeto de atualização que os juristas que não pertencem à comissão muitas vezes têm dito entre si que se trata na verdade de um novo Código e não em uma mera atualização.

Ao assumir o poder em 1800, Napoleão encomendou a alguns juristas um Código que, segundo ele, “uniria a imensidade de leis e características do povo francês”. Dois anos depois, com a frieza e repulsa do Parlamento em relação ao texto apresentado, o ditador simplesmente ordenou que se ignorasse os anseios dos deputados e que se adotassem as disposições legislativas já redigidas. Apesar da imposição napoleônica, apenas em 1804 o Código foi colocado como lei; 220 anos depois, estamos em uma situação semelhante no Brasil: há fortes e grandes reticências em relação a este projeto de alteração do Código, e esperamos que não tenhamos ninguém querendo fazer o papel impositivo e ditatorial de Napoleão.

Miguel Vidigal (Arquivo pessoal)

Quais os principais impactos que as mudanças propostas podem representar para o que atualmente se prevê no Código quanto ao Direito de Família, o Direito Pessoal e o Direito do Casamento?

Miguel Vidigal – Em linhas gerais, a proposta busca flexibilizar as formalidades para o casamento e para a obtenção do divórcio. De forma simplificada, pode-se dizer que se pretende permitir que o casal vá ao cartório e saia casado no mesmo dia. Ante a solenidade do casamento, consideramos importante manter as formalidades, não apenas para que os noivos reflitam mais sobre esta importante decisão, mas também para que se investigue eventuais impedimentos. Outro aspecto preocupante é a possibilidade do divórcio unilateral em cartório, que vem sendo chamado de divórcio “surpresa” por diversos especialistas. Imagine que a proposta permite que apenas um dos cônjuges se dirija ao cartório e já saia de lá divorciado. O outro cônjuge só saberá disto tempos depois quando for notificado. Neste período, de posse do divórcio, o cônjuge poderá excluir o outro do plano de saúde antes mesmo dele ter conhecimento do divórcio, por exemplo.

Não existiria mais uma garantia de família. Caso esta proposta seja aceita, será mais justo criar um outro termo para definir esta união. O cidadão casa sem nem sequer ter qualquer garantia de que sua vida se manterá estável. Caso o cônjuge mude de opinião ou vontade, a pessoa simplesmente, como em um passe de mágica, se torna descompromissada. Não nos parece uma atualização, mas, sim, uma modificação completa da concepção de família.

A defesa do casamento “no mesmo dia” tem como grande subsídio o avanço das soluções tecnológicas no sistema registral, que permitiria descobrir impedimentos automaticamente. De fato, não se pode ignorar as mudanças tecnológicas, tão pouco suas eventuais falhas e, quiçá, informações incorretamente lançadas. Não se pode presumir, ingenuamente, que estados menos estruturados terão a mesma eficiência que São Paulo, por exemplo, ou que a integração dos sistemas será rápida e eficiente.   

O anteprojeto propõe “alargar” a definição de família. O quanto isto poderá reverberar nos direitos hoje assegurados às famílias?

Maurício Romano – Após o movimento das várias uniões de juristas católicos, e, imagino que de outros setores da sociedade, a comissão retirou o dispositivo que se referia às famílias “não conjugais”. Tivemos conversas com alguns membros da Comissão, notadamente com os organizadores. Ainda assim restaram as referências à afetividade como elemento do parentesco. Preocupa-nos o avanço do processo de desprestígio da adoção, que pressupõe cautelas tais como a prévia investigação psicossocial e intervenção do Ministério Público. Na prática, tal investigação inexiste para o reconhecimento do parentesco afetivo, o que pode resultar em burla ao processo de adoção e em graves riscos para crianças e adolescentes.

Na proposta, o cartório toma a posição do juiz natural, e isso não é apenas um desprestígio ao corpo judiciário, mas também uma chance enorme para pessoas de má índole que, pretendendo adotar afetivamente alguém, escolham o cartório de sua preferência para realizar os trâmites. Com o atual e preocupante problema mundial de sequestro de pessoas, eis um prato cheio para os mal-intencionados agirem em conformidade com a lei.

Na minuta se propõe substituir as menções aos gêneros – homem e mulher – por “duas pessoas” ao se referir às uniões civis. De que maneira essa mudança afeta a natureza da família tal qual é reconhecida atualmente pela legislação brasileira?

Venceslau Tavares Costa Filho – A partir da Constituição Federal de 1988, a legislação brasileira passou a expressamente tratar os indivíduos como “homem” e “mulher” separadamente. Tratou-se de um movimento de reafirmação da igualdade entre ambos, sendo o maior exemplo o art. 5º, I, da Constituição.

No Código Civil que o precedeu (de 1916), nem sequer se falava nestes termos, apenas em “contraentes”, sem a distinção de sexo. No Código Civil de 2002, menciona-se que o casamento se realiza pela manifestação de vontade de um homem e uma mulher.

Na última década, no entanto, houve a consolidação da mudança ideológica: substitui-se a reafirmação da individualidade entre homem e mulher em favor da “neutralidade” de designação pelo termo “pessoa”.

Ninguém proporá o retorno ao texto de 1916 (“contraentes”), visto que a carga ideológica trazida por ele remete à família tradicional e a valores “conservadores”, por mais que ele seja morfologicamente neutro.

Na prática, muda-se o fundamento filosófico e ideológico da legislação e assume-se a suposta neutralidade de gênero advinda da ideologia/teoria de gênero – repudiada pela Igreja e inclusive bem recentemente pelo Papa Francisco. Não é um ponto que a Comissão assumiu, inclusive acreditamos que vários membros dela repudiam tal conceito, mas a realidade é que o trabalho final ruma para este sentido.

Venceslau Tavares Costa Filho

O texto da minuta aponta para direitos a serem assegurados aos animais. De algum modo isto pode ser considerado um “desvirtuamento” do propósito desta legislação que está centrada nos direitos e deveres das pessoas na ordem civil?

Venceslau Tavares Costa Filho – Causa estranheza ver que no texto se fale em relações afetivas entre pessoas e animais. É o que vem sendo chamado de família multiespécie. Não obstante o cuidado que devemos ter em relação aos animais, parece-nos óbvio que não se deva reconhecer juridicamente a eles o status de membros da família. Se forem perguntar à Comissão, temos certeza de que dirão que não é disso que se trata, mas que procuraram regulamentar um problema que já vem sendo objeto de decisões judiciais, contudo, a solução apresentada não parece conveniente.

A proposta da Comissão também delega a uma futura lei especial regulamentar melhor o tema, porém, sabemos como essas “leis especiais” nem sempre são produzidas com a velocidade esperada, não resolvendo o problema e gerando mais ações judiciais. De toda a forma, se a proposta é tratar o assunto em “lei especial”, por que não tratá-lo apenas nela em vez de fazer “puxadinhos legislativos”?

Por outro lado, ao mesmo tempo, o projeto parece permitir a gestação subrogada – popularmente conhecida como barriga de aluguel – e a doação de gametas. Ou seja, na mesma proposta que personaliza os animais, ao reconhecê-los como sujeitos de relações jurídicas, parece reduzir as pessoas humanas e partes do corpo humano a meros objetos de contratos.

No entender da UBRAJUC, há margens para que um novo Código Civil com tal redação seja considerado, no todo ou em partes, inconstitucional?

Maurício Romano – Entendemos que qualquer tipo de reconhecimento de direitos similares aos do casamento para uniões concubinárias resultaria na evidente contrariedade do texto de nossa Constituição Federal, que consagra a monogamia e a fidelidade no casamento e na união estável. Se procurarmos a bigamia no texto da proposta de reforma não vamos encontrar a menção explícita, porém, quando lemos os termos dos artigos que tratam das consequências das relações bígamas, a solução é uma evidente aprovação da infidelidade conjugal. Veja: o projeto tutelar patrimonialmente o convívio entre indivíduos em que um (ou mais) é impedido de contrair casamento (por exemplo por já ser casado), é dizer que tutela a bigamia sem chamar de bigamia.

O próprio Supremo Tribunal Federal, que tem normalmente aceito teses chamadas vanguardistas nesse domínio, já decidiu recentemente contrariamente à poligamia. Não se pode esquecer também que o Código Penal segue criminalizando a bigamia e a indução a bigamia. Ademais, o Brasil é signatário do Tratado de São José da Costa Rica, que protege a vida humana desde a concepção; e a nossa Constituição Federal também consagra a inviolabilidade do direito à vida. Qualquer disposição do Código Civil que resulte em fragilização ou exclusão da proteção a vida humana uterina ou pré-uterina padecerá de evidente vício de inconstitucionalidade. Esses são alguns pontos, mas há outros, como por exemplo a exclusão do Juiz Natural, como já falamos acima.

A verdade é que os trabalhos da Comissão foram tocados a “toque de caixa” e, por mais que tenham escolhido juristas de alto calibre para escrever o texto, não há como fazer um trabalho bem-feito em tão pouco tempo. O texto passará ainda pelo crivo de nossos legisladores, tanto no Senado quanto na Câmara de Deputados. Nossa esperança é de que se possa ter um debate amplo, artigo por artigo, e que se chegue a um ponto que contemple os reais anseios da população e menos as pautas de grupos minoritários de pressão.

Maurício Romano (foto: Arquivo pessoal)

O quanto é importante que a sociedade, em especial as famílias, acompanhe os trâmites deste projeto no Parlamento brasileiro? Quais os melhores caminhos para fazê-lo?

Miguel Vidigal – A legislação deveria refletir as regras pela qual a sociedade quer viver. Deveria consolidar os valores dos habitantes de um estado, e garantir a estabilidade e a coesão social – e isso só acontece quando há um conjunto de valores a ser seguido, os princípios morais, filosóficos e ideológicos que originam o texto proposto por um parlamentar. A letra “fria” da lei vem de algum lugar, que é extrajurídico. É a boa Política.

É importante que a sociedade e as famílias acompanhem o trâmite da proposta de alteração do Código Civil para que se garanta que os valores da sociedade permeiem a lei. O melhor caminho para isso é pressionar os políticos para que se importem com o tema, mas também fomentar grupos organizados que atuem junto aos Poderes Legislativo e Judiciário de forma técnica e profissional. E se importar inclui não apenas “atacar” os textos propostos, mas procurar participar da redação dele. Pressionar para que os integrantes de órgãos consultivos tenham um certo grau de afinidade.

Metaforicamente, do que adiantaria, por exemplo, um católico convicto, doente, buscar tratamento paliativo com um médico anticatólico? Certamente, haveria a recomendação de um “suicídio assistido”, a “morte digna”, tão em voga na Europa e totalmente oposta da moral cristã.

É preciso retomar o importante papel dos cidadãos e associações entre o Estado e os indivíduos. Para isso, é fundamental organizar e fomentar associações e grupos de pressão temáticos e contratar especialistas em advocacy.

Enquanto católicos, procuraremos sempre recordar a sociedade a bela História do Brasil, carregada de feitos cristãos e abençoado pela Providência. Que Nossa Senhora Aparecida, padroeira do país, nos ajude a encontrar pessoas dispostas a defender nossos valores e anseios.

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