Vencendo o monstro da comparação

A diversidade de dons é graça da sábia criatividade divina, não para criar hierarquias de valores ou competições, mas para gerar complementaridade, como se vê nas pastorais da Igreja
Luciney Martins/O SÃO PAULO

Imagine chegar à igreja e perceber que ao seu lado no banco está uma criatura cujo corpo é inteiramente feito de olhos. Pense agora que no momento da “Paz de Cristo” você é saudado por um ser formado apenas por ouvidos. Essa imagem pode parecer bizarra, mas a proposta imaginativa vem do apóstolo Paulo: “Se o corpo todo fosse olho, onde estaria a audição? Se fosse todo ouvido, onde estaria o olfato? E, se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo?” (1 Cor 12,17.19). 

A monstruosidade de uma criatura composta por apenas um membro ajuda a ilustrar um problema recorrente nas comunidades cristãs: a comparação de dons. Será que esse “monstro” já foi vencido em nossos dias ou ainda continua assombrando nossa vivência pastoral?

Unidade na diversidade

Não é incomum ouvir relatos de membros de pastorais que buscam assumir tarefas além do que lhes cabe, como grupos que criam perfis próprios e disputam engajamento com as páginas oficiais de uma paróquia. Da mesma forma, também acontece de equipes de Pastoral da Comunicação monopolizarem as redes sociais paroquiais, publicando trends e fotos nas quais o protagonismo é sempre de seus próprios integrantes. Essa desarmonia é tão assustadora quanto as criaturas mencionadas no início deste texto.

A diversidade de dons é uma graça concedida pela sábia criatividade divina, não para criar hierarquias de valores ou competições, mas para gerar complementaridade. A saúde do Corpo de Cristo depende da compreensão e valorização dessas diversidades e do melhor aproveitamento das particularidades de seus membros. O Papa Francisco encoraja essa comunhão, afirmando: “Unidade é reconhecer e aceitar, com alegria, os diversos dons que o Espírito Santo concede a cada um, e colocá-los a serviço de todos”. O Pontífice nos oferece ainda um precioso modelo: “Toda unidade tem sua fonte na vida do Deus Uno e Trino”. 

Articulação é movimento

No corpo humano, articulações são as regiões nas quais dois ou mais ossos se conectam, permitindo movimento e estabilidade. Além de garantir mobilidade, elas asseguram a sustentação do corpo, funcionando como pontos de ligação essenciais para o seu funcionamento harmonioso.

A articulação é um dos quatro eixos da Pascom. No parágrafo 251 do Diretório de Comunicação, é ressaltado que a articulação na Pascom tem como objetivo envolver os agentes pastorais, incentivando ações concretas e integradas para a evangelização. Portanto, assim como as articulações no corpo humano garantem interação e estabilidade, a Pastoral da Comunicação deve promover diálogos e iniciativas que conectem toda a paróquia, assegurando que cada pastoral, em suas especificidades, trabalhe de maneira coesa, consistente e harmoniosa, contribuindo, de forma virtuosa, para a unidade do corpo.

Atrofiados na unidade

Quando as articulações de um corpo se atrofiam, ocorre uma degeneração ou enfraquecimento dos músculos e tecidos ao redor das articulações, comprometendo sua funcionalidade. Muitas vezes, isso acontece devido à imobilização prolongada, resultando em perda de força, flexibilidade e mobilidade, e levando a uma condição debilitante.

Seguindo essa metáfora, se a articulação dentro da comunidade paroquial não é movimentada, isto é, se as pastorais atuam isoladamente, cada uma focada apenas no sucesso de seu grupo, sem conexão com as demais, o corpo da Igreja tende a se tornar deficiente. Alguns membros ficam sobrecarregados, outros subutilizados, e outros ainda paralisados.

E, quando se chega nessa condição, começam a surgir os diagnósticos: “A culpa é do padre que não corrige os erros”; “Isso é por causa daquele coordenador quer fazer tudo sozinho”; “Ninguém me escuta nessa paróquia” … Em vez de procurar culpados, não seria melhor buscar a cura do corpo?

‘Fisioterapia do amor’

A responsabilidade de corrigir um problema cabe sempre ao mais instruído. E se você chegou até aqui na leitura, acredite: Deus tem esperança na sua cooperação na recuperação desse corpo adoecido. É necessário, antes de tudo, paciência e dedicação, pois, assim como um membro atrofiado só recupera o movimento com a repetição de gestos simples, a unidade se fortalece pela constância em pequenos atos.

“Por meio do diálogo e da comunhão fraterna, a vocação da Pascom é abraçar as pastorais, movimentos, serviços eclesiais e organismos, assumindo a responsabilidade pelo anúncio alegre de Jesus Cristo. Devemos abraçá-los com convicção e coerência evangélica”, disse o Padre Tiago Barbosa, Assessor da Pascom no Regional Sul 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Trata-se de uma recuperação lenta, mas eficaz, que pode começar com pequenos gestos, como elogiar o trabalho do outro; oferecer ajuda nas atividades; e compartilhar, com caridade, conceitos como o de articulação em reuniões de CPP.

Que não tenhamos na Igreja um corpo monstruoso, no qual os membros rivalizam por reconhecimento, mas um corpo harmonioso, que não apenas se mantém de pé, mas avança com velocidade em direção ao céu: “Que não haja divisão no corpo, mas que os membros tenham igual solicitude uns com os outros. Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois seus membros, cada um por sua parte” (I Cor 12,25.27).

guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Veja todos os comentários