“Perseveravam na doutrina dos apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações” (At 2,42). Essa afirmação sintetiza os alicerces da vida dos cristãos já nos primeiros séculos. Em outros textos do Novo Testamento e de autores da época, também é possível identificar a centralidade da oração, especialmente da Eucaristia, na Igreja primitiva.
Uma das fontes que mostram com detalhes esse aspecto das primeiras comunidades é a Didaqué (ou Doutrina dos Doze Apóstolos), uma espécie de catecismo antigo redigido entre o I e o II séculos.
Sobre a Eucaristia, esse documento destaca: “Reunidos no dia do Senhor (dominus), parti o pão e dai graças, depois de confessardes vossos pecados, a fim de que vosso sacrifício seja puro. Quem tiver divergência com seu companheiro não deve se juntar a nós antes de se reconciliar, para que não seja profanado vosso sacrifício, conforme disse o Senhor: ‘Que em todo lugar e tempo me seja oferecido um sacrifício puro, pois sou um rei poderoso, diz o Senhor, e meu nome é admirável entre as nações’”.
Esse trecho, inclusive, mostra que os primeiros cristãos já tinham a consciência da celebração eucarística não apenas como um banquete, mas como o memorial do sacrifício de Cristo.
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Liturgia
A Didaqué também descreve os detalhes dessa celebração, que são semelhantes aos da liturgia celebrada hoje. “Primeiro, sobre o cálice: Damos-te graças, Pai nosso, pela santa videira de Davi, teu servo, que nos deste a conhecer por Jesus, teu Servo. Glória a ti nos séculos! Depois sobre o pão partido: Damos-te graças, Pai nosso, pela vida e pela sabedoria que nos deste a conhecer por Jesus, teu Servo. Glória a ti nos séculos!”, ensina.
“Que ninguém coma ou beba da vossa Eucaristia se não for batizado em nome do Senhor, pois a este respeito disse Ele: ‘Não deis aos cães o que é santo’ (Mt 7,6)”, reforça a Didaqué.
Além do catecismo primitivo, há relatos sobre a Eucaristia feitos pelos chamados santos padres da Igreja, os primeiros grandes teólogos, como as Apologias de São Justino, escritas por volta do ano 150. Nesse texto, o Mártir descreve a celebração:
“Terminadas as orações, damos mutuamente o ósculo da paz. Apresenta-se, então, a quem preside aos irmãos, pão e um vaso de água e vinho, e ele, tomando-os, dá louvores e glória ao Pai do universo pelo nome de seu Filho e pelo Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças em razão dos dons que dele nos vêm”, destaca o Mártir, acrescentando: “Este alimento se chama entre nós Eucaristia, não sendo lícito participar dele senão ao que crê ser verdadeiro o que foi ensinado por nós e já se tiver lavado no banho (Batismo) da remissão dos pecados e da regeneração, professando o que Cristo nos ensinou”.
São Justino continua o relato, explicando que, uma vez dadas as graças e feita a aclamação pelo povo, os diáconos oferecem a cada um dos assistentes parte do pão, do vinho, da água, sobre os quais se disse a ação de graças, e levam-na aos ausentes. Nota-se aí o hábito de levar a comunhão àqueles que não podiam participar da celebração, como os enfermos e os muitos encarcerados.
Esse Santo também descreve a prática da oferta de dons durante a celebração, que eram partilhados com os mais necessitados da comunidade. “Os que têm, e querem, dão o que lhes parece, conforme sua livre determinação, sendo a coleta entregue ao presidente, que assim auxilia os órfãos e viúvas, os enfermos, os pobres, os encarcerados, os forasteiros, constituindo-se, numa palavra, o provedor de quantos se acham em necessidade”, escreve.
Oração Eucarística
Na obra “Tradição Apostólica”, Santo Hipólito de Roma descreve os costumes da Igreja no século II e mostra como a celebração dos santos mistérios evoluiu e permite identificar as raízes da oração eucarística feita atualmente.
“Logo que se tenha tornado bispo, ofereçam-lhe todos o ósculo da paz, saudando-o por ter se tornado digno. Apresentem-lhe os diáconos a oblação e ele, impondo as mãos sobre ela, dando graças com todo o presbiterium, diga: ‘O Senhor esteja convosco’. Respondam todos: ‘E com o teu espíri- to’. ‘Corações ao alto! Já os oferecemos ao Senhor’. ‘Demos graças ao Senhor. É digno e justo’.”
Santo Hipólito continua a descrição com uma espécie de prefácio, como os da liturgia atual: “Graças te damos, Deus, pelo teu Filho querido, Jesus Cristo, que nos últimos tempos nos enviastes, Salvador e Redentor, mensageiro da tua vontade, que é o teu Verbo inseparável, por meio do qual fizestes todas as coisas e que, porque foi do teu agrado, enviaste do Céu ao seio de uma Virgem; que, aí encerrado, tomou um corpo e revelou-se teu Filho, nascido do Espírito Santo e da Virgem”.
Corpo e sangue
Retomando a Apologia de São Justino, é possível também identificar que, já nos primeiros séculos, os cristãos não compreendiam a Eucaristia como uma mera representação ou recordação simbólica da ceia. “Não tomamos estas coisas como pão e bebida comuns, mas da mesma forma que Jesus Cristo, Nosso Senhor, se fez carne e sangue por nossa salvação, assim também se nos ensinou que, por virtude da oração do Verbo, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças – alimento de que, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossas carnes – é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado”, afirma.
Esse mesmo Santo explica de onde vem essa verdade de fé professada pela Igreja nascente: “E foi assim que os apóstolos, nas memórias por eles escritas, chamadas Evangelhos, nos transmitiram ter-lhe sido ordenado fazer, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: ‘Fazei isto em memória de mim, isto é o meu corpo’”.