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Empreender nas periferias: vocação à dignidade, força comunitária e desafio coletivo

O empreendedorismo entre pessoas de baixa renda, principalmente nas periferias urbanas, é muitas vezes mal interpretado. Há quem o veja com desconfiança, como se todo pequeno empreendedor fosse alguém iludido pelo mito do enriquecimento rápido, propagado por versões distorcidas do capitalismo. Outros o romantizam como símbolo de uma liberdade absoluta, como se bastasse “ter coragem” para prosperar, dispensando o apoio do Estado ou de políticas públicas. Ambas as visões ignoram a realidade concreta das pessoas e comunidades que, cotidianamente, empreendem por necessidade, mas também com esperança e senso de missão. Para quem vive em territórios vulneráveis, empreender não é, geralmente, uma escolha romântica: é uma forma de resistir, de criar brechas de vida em que tudo parece sufocado. É, muitas vezes, o caminho possível para colocar o pão na mesa e manter a dignidade. E aqui já está uma verdade que a Doutrina Social da Igreja nos ajuda a reconhecer: todo trabalho digno é expressão da vocação humana à criatividade e ao cuidado com o mundo. Como lembra São João Paulo II na encíclica Laborem exercens, o trabalho não é apenas meio de subsistência, mas participação na obra criadora de Deus. Empreender nas periferias é, assim, um ato de resistência e de fé. Fé na própria força, na comunidade e em um futuro melhor.

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Na Evangelii gaudium, o Papa Francisco convida a superar “a economia da exclusão” e lembra que os pobres não são um problema, mas portadores de sabedoria e protagonistas de novos caminhos. Essa visão pode nos ajudar a entender que o empreendedorismo popular é, muitas vezes, uma forma concreta de buscar o bem comum — aquele princípio central da ética cristã que nos orienta a construir uma sociedade em que todos possam viver com dignidade, acesso e participação.

Muitos pequenos negócios nascem com esse espírito: o desejo de oferecer um serviço que falta no bairro, criar algo com cuidado, recuperar uma tradição local, sustentar a família e gerar oportunidades para outros. É um caminho de autonomia, sim, mas não de isolamento. A lógica do empreendedor periférico é frequentemente comunitária, relacional, solidária.

O livro Brilhos da Periferia (Curitiba: Inverso Comunicação & Marketing, 2024) traz à tona esse espírito com intensidade. Um dos relatos é da Shirlei. A experiência dela é uma dessas trajetórias que revelam a potência escondida nas periferias urbanas. Após enfrentar perdas, violência e baixa autoestima, ela encontrou no empreendedorismo com semijoias uma forma de se reerguer: “Começou a trabalhar com semijoias, que surgiram como uma forma de terapia e ferramenta de escape”. Em meio aos desafios, Shirlei transformou a dor em força, a partir de oportunidades de formação e apoio coletivo — mostrando que o empreendedorismo periférico não é fuga, mas sim caminho de reconstrução.

O papel das políticas públicas e do apoio comunitário. No entanto, não podemos esquecer que o empreendedorismo popular não cresce em um vácuo. Ele é frequentemente acompanhado de desafios estruturais que precisam ser enfrentados para que esses pequenos empreendedores possam prosperar de forma sustentável. O crédito acessível, a segurança jurídica para formalização dos negócios, o acesso a mercados e a educação empreendedora são elementos essenciais que devem ser promovidos para garantir que o esforço de tantos não se perca nas dificuldades do caminho. Entidadescomo o Instituto SYN também atuam nessa frente por meio de advocacy com outras organizações como a Aliança Empreendedora, participando de fóruns em Brasília (DF) para buscar novas políticas públicas.

Além disso, o papel do Estado é fundamental. A perspectiva de que “basta ter coragem” ou que o empreendedorismo vai florescer sem apoio é um equívoco. Como cristãos, sabemos que a justiça social e a solidariedade exigem ações concretas de apoio, e o auxílio do Estado e de organizações não governamentais deve ser parte de um compromisso coletivo para garantir que as condições necessárias para o sucesso do empreendedorismo estejam ao alcance de todos.

Luz que brilha a partir da periferia. Outro exemplo comovente do livro é Everton Silva, empreendedor social à frente da CicloLog, uma iniciativa que une ciclologística, comunicação e sustentabilidade. A partir de sua vivência em comunidades periféricas e cenários de crise, Everton criou soluções inovadoras que aliam mobilidade urbana com impacto socioambiental. Ele converte bicicletas em ferramentas de transformação: entregando mantimentos, promovendo educação, cultura e formando redes de cuidado em territórios vulneráveis.

Com atuação em desastres como o de Mariana (MG) e projetos no Rio de Janeiro, seu trabalho prova que o empreendedorismo pode (e deve) ser uma resposta às urgências sociais e ambientais do nosso tempo.

Everton não está só gerando renda para si, mas também construindo um impacto positivo, inclusão e esperança. Isso é bem comum em ação.

É por isso que iniciativas como as da ONG Aventura de Construir, apoiada pelo Instituto SYN, têm tanto valor. Elas atuam lado a lado com empreendedores de baixa renda, ajudando-os a desenvolver seus negócios com ética, planejamento e impacto social positivo. A partir dessa experiência nasceu o livro Brilhos da Periferia, uma coletânea de histórias que mostram como os pequenos empreendimentos são, muitas vezes, sementes de transformação plantadas em solo árido, mas fértil de humanidade.

O que essas histórias demonstram é que o empreendedorismo nas periferias não é apenas uma estratégia para gerar renda, mas uma poderosa forma de resistência social e construção de comunidade. É um reflexo das capacidades e talentos muitas vezes escondidos, e que, quando cultivados, podem gerar mudanças reais.

Desafios e perspectivas para um futuro mais justo. Se o empreendedorismo popular é uma ferramenta para a transformação social, ele também revela as limitações de um sistema que nem sempre favorece a inclusão de todos. O próprio Papa Francisco, em sua encíclica Laudato si’, nos lembra que “a dignidade humana está vinculada à liberdade de trabalhar” e que a desigualdade social é um obstáculo para a verdadeira fraternidade. Isso significa que é necessário repensar o sistema econômico e as estruturas de poder que perpetuam a pobreza e a exclusão.

Portanto, é fundamental que a sociedade e as instituições – públicas e privadas – se unam para criar um ambiente em que o empreendedorismo nas periferias não apenas sobreviva, mas floresça. Isso envolve mais do que doar recursos: trata-se de criar um compromisso de longo prazo com a justiça social, com a redução das desigualdades e com a promoção de um desenvolvimento sustentável que beneficie a todos os cidadãos.

Para que todos tenham vida. O empreendedorismo popular não deve ser tratado nem como falácia do sistema nem como solução libertadora. Ele é, antes, uma expressão legítima da luta por dignidade em contextos muitas vezes desiguais. E, como toda realidade humana, carrega ambiguidades, mas também potências, como aprendemos com o convívio com empreendedores e com a equipe da Aventura de Construir. Cabe à sociedade como um todo criar condições para que esse esforço seja reconhecido, valorizado e acompanhado com solidariedade e justiça.

Como nos lembra o Evangelho segundo João, Jesus veio para que todos tenham vida, e a tenham em abundância (Jo 10,10). Apoiar quem empreende nas periferias é caminhar nessa direção.

Comentários

  1. Parabéns Alexandre!! Que sirva de exemplo para outros que tem vontade de empreender !!! E que a sociedade de condições para que esse esforço seja realmente reconhecido!!!

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