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Leão XIII e seu tempo

A Rerum Novarum reflete as tensões de um tempo de profundas transformações, revelando o olhar realista e corajoso de Leão XIII diante dos desafios do seu tempo. Fruto de um processo amadurecido ao longo do século XIX — com forte participação dos leigos — a encíclica lança as bases filosóficas e teológicas que orientariam a ação social da Igreja nos séculos seguintes

Charles Chaplin. “Tempos Modernos”, Divulgação. Colorizado por Copilot

O século XIX foi um período de intensa efervescência política: revoluções, lutas sindicais e embates ideológicos explodiam na Europa e nos Estados Unidos. O mundo, abalado por profundas transformações, assistia ao colapso de antigas estruturas sociais. As velhas formas de organização davam lugar a uma nova ordem, impulsionada pelo ritmo acelerado da industrialização, pela substituição de antigos saberes e modos tradicionais de trabalho por outros, orientados pela técnica, pela ciência e pela lógica da produção. As cidades cresciam rapidamente e as antigas formas de associação entravam em declínio.

A industrialização transformou profundamente as relações sociais, dando origem à classe operária, formada por homens e mulheres que migraram em massa do campo para a cidade em busca de trabalho. Lá, enfrentavam jornadas exaustivas, baixos salários e condições precárias. Viviam em moradias insalubres, afetados por doenças, acidentes e exploração do trabalho infantil. Sobreviviam sem qualquer proteção ou direito, à margem de um progresso que construíam, mas não os incluía.

Desde o início do século XIX, católicos como Félicité de Lamennais (1782-1854) e Frederico Ozanam (1813-1853) buscavam soluções concretas para os novos problemas. O bispo Emanuel von Ketteler (1811–1877) foi um dos primeiros a considerar que a miséria dos operários não é apenas uma questão de caridade assistencial, mas uma exigência de justiça.

Nesse cenário de ebulição social e política, Leão XIII (1810-1903) dedicou-se profundamente à questão social. Publicou encíclicas com reflexões sobre temas como a natureza do Estado (Diuturnum Illud, 1881; Immortale Dei, 1885), o liberalismo e o socialismo (Libertas Praestantissimum,1888). Com a Rerum Novarum, de 1891, introduziu uma verdadeira novidade: a Igreja se pronunciava de forma estruturada e orgânica sobre a questão social, enfrentando os desafios do mundo moderno e propondo, à luz do Evangelho, critérios para compreender suas causas e formular soluções concretas.

Caridade: via mestra da Doutrina Social. A Doutrina Social da Igreja (DSI) é fruto do encontro do Evangelho, da Tradição e do Magistério da Igreja com as circunstâncias históricas concretas. É uma resposta da fé às realidades sociais, oferecendo princípios de reflexão, critérios de julgamento e orientações para a ação. Embora muitos dos temas e princípios desenvolvidos nas encíclicas posteriores já estivessem presentes na Rerum Novarum, a DSI não é um sistema fechado ou estático – é uma reflexão viva, em constante renovação.

Por exemplo, a questão da justa remuneração do operário, tratada por Leão XIII ao afirmar que o trabalho não pode ser visto como mercadoria submetida às leis do mercado, irá posteriormente se ampliar com a reflexão de São João Paulo II na Laborem Exercens (1981). São Paulo VI amplia a preocupação com a desigualdade, incluindo as disparidades entre nações e propondo o desenvolvimento integral como alternativa (Populorum Progressio, 1967). Diante das novas formas de exclusão, a Igreja a passa a criticar os sistemas econômicos e a defender uma reformulação baseada na solidariedade com as encíclicas Sollicitudo Rei Socialis (São João Paulo II, 1987), Caritas in Veritate (Bento XVI, 2009) e Fratelli Tutti (Francisco, 2020).

Um farol para o nosso tempo. A DSI não apresenta um modelo político ou econômico fechado, não é uma ideologia, nem pretende ser uma «terceira via» entre capitalismo e socialismo. Seu papel é oferecer critérios de discernimento para que as pessoas possam avaliar livremente os sistemas políticos e econômicos. Seus princípios, como o bem comum, a destinação universal dos bens, a solidariedade, a subsidiariedade e a participação, podem ser compartilhados também por não crentes e seguidores de outras religiões. Sempre guiados pela caridade – a via mestra da Doutrina Social – esses princípios despertam a consciência pessoal e social, oferecendo critérios éticos para a ação, e dialogam com todas as pessoas de boa vontade. 

Os próximos capítulos da Doutrina Social ainda estão sendo escritos por todos os que seguem Cristo e enfrentam os desafios do tempo presente. Leão XIV será protagonista dessa nova etapa. Assumir esse nome é mais do que um gesto de ousadia, é sinal de certeza na Presença que o acompanha.

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