A história da humanidade é marcada por grandes processos sociais que determinam a vida de milhares de pessoas – vítimas anônimas da estultice de alguns e/ou da inclemência da natureza. Deus, que tudo vê, acompanha a cada uma dessas vidas, esperando que cada um de nós também as acompanhe com solidariedade e espírito fraterno. Essa é a experiência cotidiana daqueles que acolhem migrantes e refugiados…
Em 2023, dois dos quatro nigerianos que cruzaram o Atlântico no exíguo e perigoso espaço do leme de um navio, após 14 dias de angustiante agonia, puderam usufruir do conforto que a Casa do Migrante lhes ofereceu. Muito antes deles, no final da década de 1970, uma família nordestina, quando abordada na rodoviária, apresentou como endereço de destino na metrópole paulista, em um papel amarrotado, “o bar azul da esquina”. Foi acolhida pelos agentes da instituição e trazida para o aconchego da Casa. São estes apenas dois fatos entre milhares de outros tantos ocorridos ao longo de uma trajetória de 50 anos marcada por quatro distintos momentos que delinearemos sucintamente a partir da ótica dos assistidos.
Mas tudo tem um antes. A Casa do Migrante não caiu das nuvens. É fruto das angústias, dores e sonhos dos migrantes, amalgamados pelos desafios do chão da história. Aparentemente contraditórios, dois saltavam aos olhos e foi a esses que os Scalabrinianos fizeram frente. De um lado, a década de 1970, marcada pela onda do milagre econômico, produziu o maior êxodo rural da nossa história. O fluxo Nordeste-Sudeste dominava a cena e a metrópole paulista emergia como seu epicentro. As demandas por mão de obra minimamente qualificada eram gritantes e os recém-chegados não atendiam às expectativas. Do outro lado, sobressaíam-se os sobrantes, os indesejáveis. Dentre esses, muitos residiam nagrande favela do Vergueiro, encravada em área nobre entre os bairros Ipiranga e Vila Mariana, na capital paulista. Em 1968, ocorreu o despejo e muitos decidiram retornar para o “Norte”. Rumaram pela ferrovia Central do Brasil, mas não foram sós. Os Scalabrinianos, que atuavam na favela, viajaram com eles em vagões de 2ª classe. No retorno, vagões apinhados de migrantes. Os que não tinham endereço certo ficavam à mercê do Estado que lhes fornecia bilhete para seguirem adiante pela ferrovia Sorocabana. Em 1969, os Scalabrinianos também percorreram esta ferrovia que corta o Sudoeste paulista e desemboca no norte do Paraná. Conheceram de perto a realidade dos migrantes e se solidarizaram com eles.
Migrantes recém-chegados. Para responder às urgentes demandas dos migrantes, sob a liderança do então seminarista e depois Padre Alberto R. Zambiasi, em 4 de novembro de 1974 surgiu oficialmente a Associação de Voluntários pela Integração dos Migrantes (AVIM). Como primeiro desafio, em parceria com o Estado e entidades da sociedade civil, a AVIM passou a ofertar 15 modalidades de cursos profissionalizantes ministrados por voluntários em periferias e favelas da cidade, na Baixada Santista e nos espaços da Casa do Migrante. Apresentar-se ao mercado com certificado da AVIM era emprego certo. Ao segundo desafio, a Associação atuou em clara oposição ao Estado. Em vez da distribuição de passes para seguir adiante, a oferta de um espaço de acolhida digna e de suporte para as demandas dos recém-chegados. Capacitação profissional e acolhida caminharam lado a lado até o começo dos anos 1980. Na Casa, era significativa a presença de famílias e na porta da mesma agenciadores disputavam mão de obra, por isso consta nos registros da instituição que não bastava encaminhar para o emprego, era necessário garantir que a Doutrina Social da Igreja fosse respeitada pelos empregadores.
Migrantes de velhas andanças. Contrariamente ao ocorrido nos anos de 1970, a década seguinte ficou conhecida como “a década perdida”. O saldo migratório Nordeste-Região Metropolitana de São Paulo foi negativo. As ofertas de emprego foram escasseando, restando os “bicos”, serviços precários. A Casa do Migrante passou a acolher então, majoritariamente, pessoas desacompanhadas, do sexo masculino, procedentes da região Sudeste, com destaque para o interior do estado de São Paulo e da própria capital. Vale registrar que era grande o número dos que apresentavam histórico de trabalho em suas carteiras profissionais, mas que ia mais e mais cedendo ao espaço vazio. Pesquisa realizada na Casa pelo Gt/Migrantes (Centro de Estudos Migratórios e Laboratório de Geografia Urbana da USP) constatou que os efeitos da “década perdida” se abateram com maior força sobre a camada mais frágil da sociedade durante a década de 1990. Se na anterior predominaram os “bicos”, nesta nem mesmo esses sobraram, e para os migrantes das muitas andanças, como alternativa à rua, restou circular pela rede da assistência social. Foi quando a Casa do Migrante foi deixando de ser um “trampolim para cima”. A etapa dos cursos profissionalizantes mostrou-se página virada e a instituição viu-se absorvida pelas demandas internas.
Momento de transição. O perfil dos migrantes internos acolhidos na virada do século e nos anos seguintes pode ser resumido pela trajetória do Tião (nome fictício), colhida em uma longa entrevista. Tião apresentou sua carteira de trabalho e nela constava o registro de mecânico em uma empresa de aviação na qual trabalhou por vários anos. Chama muito a atenção o que ocorreu na sequência. O tempo de permanência nos empregos subsequentes só foi encurtando, até esvair-se. À ruptura com o trabalho, somou-se a ruptura dos laços familiares e os do mínimo convívio social. Restou a ele a solidão, disfarçada em perambulações incertas e inconstantes. E foi o próprio Tião quem definiu de forma cabal a condição social sua e da maioria deseus pares: “Eu fui um cara que perdeu o elo”!
Paralelamente a este quadro, em um processo rápido, até mesmo abrupto, quando os estudiosos das migrações mantinham seus olhares sobre o êxodo dos brasileiros, a Casa do Migrante já se transformava em um termômetro do que viria a acontecer: o Brasil como um país também de imigração, agora não só de hispano-americanos.
Desde os primórdios dos serviços de acolhida até a virada do século, a Casa sempre contou com a presença de imigrantes. Ao longo do período a média anual manteve-se em 5%, inicialmente advindos dos países do Cone Sul e, posteriormente, dos países Andinos. Porém, nos anos finais do século passado, à pergunta “Tudo bem”? na Casa ouvia-se como resposta “Hakunamatata” (tudo ok!); já era a presença dos congoleses e a eles rapidamente foram se somando os de outros países africanos.
Internacionalização dos rostos. Para uma melhor compreensão de como se deu a rápida transição da presença dos nacionais para os internacionais, basta citar que em 2000 os imigrantes e/ou solicitantes de refúgio representavam 13%; em 2004, 50%; em 2008, 75% e, em 2020, 100%. A procedência passou a envolver cada vez mais um número maior de países, com uma nítida característica: a alternância constante ora de uma nacionalidade, ora de outra, como assinalado na página inicial deste encarte.
Cinco décadas em uma frase. A Casa do Migrante, com suas vicissitudes e ambiguidades, foi sempre importante referência para migrantes internos e internacionais e a ela coube ser uma caixa de ressonância ou, noutros termos, um claro microcosmo de processos sociais macro.