Olhar para aqueles que buscam a paz

Apesar do calor do debate em certos círculos, um discernimento moral sobre o conflito entre o Hamas e Israel é constrangedoramente simples: por maiores problemas que a população palestina sofra, nada justifica os ataques terroristas a Israel – que evidentemente tem todo o direito de se defender, mas nem por isso pode causar uma chacina na Faixa de Gaza. Da mesma forma, é evidente que os “senhores da guerra”, que obtêm ganhos políticos e até econômicos a partir dos conflitos, não representam os povos envolvidos. E as vítimas diretas e indiretas dos combates estão sujeitas a uma espiral de ressentimentos mútuos, dores e humilhações que são terreno fértil para o recrutamento de novos combatentes e o incentivo à violência desumana. Posto isso, deve-se reconhecer a dificuldade prática tanto de respostas estratégicas adequadas, baseadas em informações dos serviços de inteligência, com alvos bem definidos, que não impliquem novas atrocidades contra populações inocentes; quanto de programas sociais que levem a um desenvolvimento humano integral, à superação dos ressentimentos e à reconciliação entre os adversários. As dificuldades, contudo, não cancelam o discernimento moral que condena a guerra e pede a paz. Mostra-nos apenas que a superação das visões polarizadas e distorcidas, o envolvimento solidário e os gestos concretos de construção da paz são ainda mais necessários e urgentes. Muito se tem dito para legitimar um lado ou outro do conflito. Reconhecer o mal e indicar claramente onde se manifesta é absolutamente necessário, mas – nessa realidade “poliédrica” em que vivemos – não é possível combater a guerra sem olhar para aqueles que buscam a paz.

Unrwa/Ashraf Amra

As guerras recentes raras vezes terminam com uma vitória exitosa de uma das partes, como poderíamos imaginar pensando, por exemplo, no final da Segunda Guerra Mundial. Os conflitos no Oriente Médio e as intervenções militares recentes dos Estados Unidos, ou mesmo a atual invasão da Ucrânia pela Rússia, têm resultado em intermináveis lodaçais de violência e morte, com custos altíssimos, frequentemente mal-avaliados, mesmo para os aparentes vencedores.

A Igreja proclama o “evangelho da paz” (Ef 6, 15) e está aberta à colaboração com todas as autoridades nacionais e internacionais para cuidar deste bem universal tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa (cf. Ef 2, 14), a nova evangelização incentiva todo batizado a ser instrumento de pacificação e testemunha credível de uma vida reconciliada. É hora de saber como projetar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos, mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões (Evangelii gaudium, EG 239).

Amy Ayalon é um herói de guerra israelense. Foi chefe do Shin Bet, um dos mais eficientes e mortíferos serviços de segurança interna e combate ao terrorismo do mundo. Em 2020, publicou o livro Friendly fire (“Fogo amigo”, em tradução livre). Na obra, mostra que as ações militares e os ataques antiterroristas israelenses, apesar de bem-sucedidos e esmagadores em seu potencial de fogo, não conseguem deter seus inimigos – pelo contrário, parecem torná-los mais numerosos. Ayalon conclui: “Matar líderes terroristas sem considerar o desespero dos seus apoiadores é uma missão tola e produz mais frustração, mais desespero e mais terrorismo […] Quanto mais ‘vencemos’ uma guerra tão mal concebida – quanto mais degradamos a sociedade civil e as normas democráticas – mais transformamos a nossa sociedade numa distopia orwelliana em que a verdade e a mentira são indistinguíveis”.

Benzion Sanders, em 2014, lutou na invasão de Gaza, motivada oficialmente pelo desaparecimento de três colonos israelenses e que terminou com cerca de 70 israelenses e 2.250 palestinos mortos. As atrocidades que presenciou fizeram dele um ativista contrário à ocupação israelense nos territórios palestinos, na organização pacifista de veteranos de guerra Breaking the Silence. Hoje em dia, considera que não haverá paz e segurança na região sem um acordo político em que os palestinos alcancem a liberdade e a independência. Diz que “o terror palestino só pode ser derrotado criando esperança palestina”.

No ataque do Hamas de outubro último, tanto integrantes do Breaking the Silence quanto militantes pacifistas de outros movimentos em Israel também sofreram e até foram assassinados. Noy Katsman, cujo irmão era um desses ex-combatentes mortos nos ataques, declarou: “Não usem a nossa morte e a nossa dor para causar a morte e a dor de outras pessoas e de outras famílias”. Ziv Stahl, diretora executiva do grupo de direitos humanos Yesh Din, escreveu: “Eu estava lá [mas] não preciso de vingança, nada nos devolverá aqueles que se foram. Todo o poderio militar da Terra não fornecerá defesa e segurança. Uma solução política é a única coisa pragmática possível”.

É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla [...] Ali entram os pobres com a sua cultura, os seus projetos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros têm algo a oferecer que não se deve perder (EG 235-236)

Women wage Peace (“Mulheres fazem a paz”) é um movimento em Israel que se define como de “mulheres de direita, centro e esquerda, judias e árabes, religiosas e laicas, todas unidas para demandar um entendimento político para encerrar o conflito israelense-palestino”. Conta atualmente com mais de 44 mil filiados. Juntamente com seu movimento irmão palestino, o Women of the Sun (“Mulheres do Sol”), produziu o Mothers’ Call (“Apelo das mães”), dirigindo-se aos líderes de ambos os lados para que iniciem negociações de paz. De 24 de setembro a 10 de outubro de 2017, promoveram uma jornada, na qual 5 mil mulheres israelenses e palestinas marcharam juntas até Jerusalém, em um esforço para promover a paz na região.

Em seu site, a chamada “Nós precisamos acabar com essa loucura”, remete a seu juízo sobre a situação atual: “Em primeiro lugar, lamentamos o assassinato brutal, num massacre indescritível e imperdoável perpetrado pelo Hamas, de mais de 1.300 civis, bebês, crianças, mulheres, homens, idosos, soldados e mulheres, membros das forças de segurança e salvamento, entre eles civis e soldados árabes. Desejamos total recuperação e reabilitação aos milhares de feridos de corpo e alma […] Apesar da raiva e da dor em face dos atos criminosos e imperdoáveis cometidos pelo Hamas, não devemos perder a dignidade humana. Mesmo nas situações mais difíceis, é nossa obrigação como mães, como mulheres, como seres humanos e como nação inteira não perder os valores humanos básicos […] Lamentamos a morte de palestinos inocentes, entre eles centenas de crianças, que estão sendo mortas nesta guerra maldita. A situação em Gaza está cada vez pior […] Nós, mães judias e árabes, temos dito à liderança em Israel – basta! Temos de virar todas as pedras para alcançar uma solução política. Esta é a nossa obrigação para o futuro dos nossos filhos. Esta é a nossa obrigação para com as crianças israelitas e palestinas. Merecem um futuro de segurança e liberdade, não um futuro de morte, guerra e destruição […] Sabemos que estas palavras parecem imaginárias, ingênuas e irreais, mas esta é a verdade e devemos reconhecê-la. Cada mãe, judia e árabe, dá à luz a seus filhos para os ver crescer e florescer e não para os enterrar […] Que a memória de todas as vítimas seja abençoada”

A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, “pacificando pelo sangue da sua cruz” (Col 1, 20). O primeiro âmbito a que somos chamados a conquistar esta pacificação nas diferenças é a própria interioridade, a própria vida sempre ameaçada pela dispersão dialética. Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será difícil construir uma verdadeira paz social.(EG 229-230)
OMS

O jornalista italiano Andrea Avveduto, num artigo de 2021, foi explícito: “Há muita violência e muitas injustiças sofridas por ambos os povos. São muitas as razões e erros de ambos os lados, que não são capazes de se encontrar, começando por suas classes políticas […] Que caminho seguir? Que tentativa de reconciliação é possível depois que os grandes projetos da política, tão cheios de retórica, fracassaram tantas vezes?”. Encontrou uma resposta, parcial, mas verdadeira, ao entrevistar Abu Omar e Daniel.

Abu Omar cresceu em Jerusalém Oriental. Seu irmão foi morto na repressão a um protesto. Aprendeu, com os amigos de seu bairro palestino, que “a justiça consiste em se vingar devolvendo o mal sofrido” – a Lei de Talião. Mas, para trabalhar e poder sobreviver, teve que estudar a língua do “inimigo”. Era um sacrifício, mas se não o fizesse não teria como sustentar a família. Entrou em um curso para aprender o idioma, “cuspindo nos degraus da escada”.

“Lembro-me – disse a Avveduto – que esperava encontrar militares nas aulas e topar com os rostos daqueles que tinham matado alguns de meus amigos. Assim, ia de cabeça baixa, cheio de medo e de raiva […mas] sentei-me na carteira e vi o rosto dos que me rodeavam, estavam tranquilos. Um deles sorriu para mim e começamos a conversar […] Eles também estavam cansados da guerra. E desejosos de conhecer os que vivem no outro lado do muro. Eram como eu”. Com o passar do tempo, Abu Omar também conheceu o que angustiava seus novos amigos, as histórias de alguns que tinham perdido filhos, maridos ou esposas nos atentados. E se deu conta de que “sua” lei de Talião não funcionava. “Se arrancamos os olhos uns dos outros ajustando contas, acabaremos todos cegos. Por isso decidi perdoar o assassino do meu irmão”.

Para quantos estão feridos por antigas divisões, resulta difícil aceitar que os exortemos ao perdão e à reconciliação, porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos fazer-lhes perder a memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai (EG 100).

Daniel serviu como soldado durante a Segunda Intifada, a revolta palestina contra Israel entre 2000 e 2005. Como tal, se dispôs a matar e ver morrer. Ao terminar o serviço militar, teve que fazer terapia para lidar com toda a dor que havia presenciado. Mas nada respondia à sua pergunta mais urgente: “Como posso viver em paz, esquecer e perdoar aqueles que mataram meus amigos?”. Por outro lado, percebia que seu “inimigo” também não era capaz de perdoar.

Preparava-se para deixar o país quando conheceu o Parent’s Circle (Círculo de Pais), uma associação de mães e pais israelenses e palestinos que desenvolvem atividades conjuntas. “Pareceu-me uma estupidez, mas nunca poderei esquecer os olhos daquela mãe que me deu o folheto no Portão de Jafa, em Jerusalém. Tive que voltar e perguntar-lhe: Por que você sorri? Não vê que não há esperança?”. A resposta mudou para sempre sua vida: “A esperança está no coração de cada um. O meu filho morreu há alguns anos, mas se não tivesse tido a coragem de olhar até o fundo do meu coração, nunca teria podido perdoar. E provavelmente hoje não estaria aqui”. Aconteceu algo que fez com que Daniel não quisesse se separar nunca desses novos amigos. Depois de alguns meses, começou a ajudar nos tours para israelenses e palestinos, todos juntos, para passar alguns dias de convivência e descobrir que “o perdão só pode nascer do encontro consigo mesmo e com os outros”.

A paz “não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca de uma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens” (Populorum progressio, PP 76). Enfim, uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência (EG 219).

Tommaso Saltini, leigo consagrado da Associação Memores Domini, ligada à Comunhão e Libertação, é, desde 2006, o diretor-geral da Associação Pro Terra Sancta, uma organização não governamental ligada à Custódia da Terra Santa, que trabalha promovendo o diálogo por meio de projetos de desenvolvimento, cultura e educação.

Diante dos acontecimentos recentes, ele declara: “A violência que eclodiu nos assusta, nos entristece, nos envolve. Também nos faz sentir impotentes, mas nunca deixarei de dizer que é necessário criar oportunidades de encontro e trabalhar para imaginar soluções novas e criativas que tragam desenvolvimento e paz para todos; além de propostas políticas duradouras. Não é fácil, mas não é impossível, porque vi quantos relacionamentos improváveis nasceram e geraram o bem. Quando olho para trás, a primeira coisa que sinto é gratidão: o Senhor não permitiu que eu estivesse sozinho. Sem companhia humana, eu nunca poderia ter participado desta missão”.

Uma das primeiras e surpreendentes companheiras é Carla Benelli. Historiadora de arte, leiga, de esquerda, escolheu se mudar para Jerusalém porque se apaixonou pela conservação de seu patrimônio cultural. Ela se impressionou com um modo de ser que valorizava a comunidade local: treinava os jovens, envolvia os palestinos em trabalhos desafiadores de restauração e arquitetura, dialogava com todos.

Outro companheiro é Osama Hamdan, um arquiteto palestino. Saltini comenta: “Muçulmano, deu sua vida pela restauração das igrejas cristãs, gerando tanta surpresa e admiração que sua presença favoreceu diálogos e encontros entre pessoas que nem mesmo conseguiam olhar-se nos olhos”.

Saltini conclui: “Aquilo que constrói não são os recursos dados ou os discursos mais ou menos bem elaborados sobre a paz. O que permanece são os laços. Os que resistem mesmo agora enquanto tudo ao redor é destruído”.

O que torna essa fecundidade possível? “Não é um ‘fazer por fazer’, mas um caminhar juntos para construir um pedaço de beleza”, responde Saltini. “Com israelenses, cristãos e palestinos, trabalhamos muito na cultura porque ela ensina isso, uma bela igreja ou uma bela mesquita para restaurar ensinam isso, assim como escolas cheias de crianças que enchem as carteiras em vez de mendigar na rua. A beleza sempre remete ao Verdadeiro”.

Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar nosso diálogo com os crentes das religiões não cristãs, apesar dos vários obstáculos e dificuldades, de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades religiosas (EG 250).

*Com informações dos jornais The GuardianLa Croix e revista Passos.


		
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